As Bestas de Brydenfall - Capítulo 13
Antes do Cataclisma
O chicote estalou contra as costas da escrava.
Sir Elliot, um velho corpulento e conde do Vilarejo Blake, cuspiu contra a mulher exótica, de cabelos cor de prata e olhos violeta.
Ela tinha uma beleza única no mundo. Ele queria espancá-la e arrancar alguns gritos, mas sabia que essa era sua única posse que deveria ser mantida intacta, com exceção das costas repletas de cicatrizes.
O mestre dos cativos dera sorte que o amante dela não a via por trás, quando estava nua.
Respirou fundo, controlando a raiva para não quebrar sua passagem a um título de nobreza maior.
— Se eu souber que tem outra criança no seu ventre, nós vamos ter sérios problemas. — Segurou-a pelo pescoço. — Agora se mantenha no seu lugar! Sempre que eu olhar para você, quero que esteja no chão.
Ela rastejou para o lado de fora, enquanto segurava as lágrimas. Sabia que elas só aumentariam o prazer de seu torturador.
Com ovos podres sendo arremessados contra seu corpo desnutrido, cambaleou até uma casa decrépita, feita de barro vermelho e palha. Os aldeões a chamavam de vadia e culpavam-na pelo mau humor de Elliot.
Ela protegeu a barriga e abaixou a cabeça, começando a correr.
Quando adentrou o barraco e trancou a porta, ouviu seu pequeno filho:
— Mãe… Eles disseram que eu também não posso ter um nome.
Ela suspirou aliviada.
Dentro da casa, com todas as janelas fechadas, a escuridão reinava. O jovem não enxergava o estado em que sua mãe se encontrava.
— Você já tem um nome, Arthur. Não importa o que eles digam, é impossível tirar isso de você, agora que tem.
— Mas se é tão fácil assim, então eu vou te dar um.
Ela sentiu vontade de abraçá-lo, mas pensou melhor e decidiu que o pouparia do fedor dos ovos.
Despiu-se e afundou em um barril de água, sem nem se importar com a baixa temperatura do banho. A criança permanecia sentada nas trevas.
A escravizada sorriu.
— Você já me deu um. Vem cá.
O pequeno se levantou e caminhou desengonçadamente até o barril.
Tinha apenas cinco anos e um corpo frágil. Ela o pegou pelas bochechas, apertando como sempre fazia.
— Eu sempre vou ser a mãe do Arthur. Essa é a minha importância no mundo. Cuidar do meu bebê.
— Eu não sou mais um bebê! — Ele enrubesceu.
— Ai, desculpa! — Ela riu enquanto limpava o corpo com uma esponja. — Logo menos você vai ser um cavaleiro do rei, não é mesmo?
— Eu quero ser um cozinheiro…
— Ah, é? Então vai ser isso. Tenho certeza que você vai ser o melhor cozinheiro de toda Brydenfall — ela mentiu.
***
Arthur, ensanguentado e repleto de feridas, chutou a porta da Casa Grande.
Maduro pelos vinte anos de escravidão, ele já estava determinado a deixar sua marca no mundo: executaria o conde do Vilarejo Blake e iria aproveitar cada grito daquele porco obeso.
Os últimos três guardas da área investiram contra o jovem que não tinha nada a perder.
Ele tomou uma jarra de vidro e arremessou na testa do primeiro alvo, deixando-o completamente atordoado.
Puxou uma faca e perfurou o peito direito do soldado, dando-lhe a chance de sobreviver, caso fosse forte o bastante.
— Sai da minha frente! — Desferiu uma rasteira contra o segundo, derrubando-o.
O terceiro sacou sua espada e investiu com um corte, penetrando fundo no braço de Arthur.
Ambos trocaram um olhar de ódio recíproco.
O invasor não queria matar inocentes, mas não perderia mais tempo desnecessário. Antes que o vigia descravasse a lâmina, o jovem a segurou com a mão livre, prendendo-a enquanto seus dedos eram lentamente rasgados.
— Agora!!! — o guarda gritou para o companheiro, que atravessou as costas do escravizado.
Arthur sentiu mais fúria do que dor.
Atingiu uma cabeçada contra o inimigo à sua frente, seguida de um chute no estômago.
Virou-se contra o homem que o cortara pelas costas. A perda de sangue o enfraquecia mais a cada segundo.
O último guarda deu um passo para trás, arregalando os olhos.
— Eu… atravessei as suas costelas… Como você ainda consegue respirar?!
— Porque enquanto vocês estavam bebendo no bar e fingindo trabalhar, eu erguia as suas casas e caçava suas ceias. Vocês tiveram sorte na hora de nascer, mas não são melhores do que eu em nenhum aspecto — respondeu, mentalizando qual seria o jeito mais fácil de eliminar os obstáculos.
Quando terminou de esfaqueá-los, já não compreendia mais a magnitude de seus próprios ferimentos.
Não distinguia seu sangue e o das vítimas.
Começou a chorar quando se lembrou da mãe.
— Eu já tô indo… — Caminhou até o quarto onde Sir Elliot se escondia.
Abriu a porta e sentiu um vazio permanente se espalhar em seu interior.
Encontrou a escravizada em uma poça do próprio sangue, coberta de hematomas, segurando um feto mal formado.
Seus desejos, sonhos, orgulhos e acertos, tudo perdeu o sentido. Não poderia mais sonhar em ter um irmão. Não seria mais abraçado ao voltar de um dia sufocante de trabalho dobrado.
Foi-lhe tirado o único porto seguro, que mantinha sua instável sanidade.
Fitou o velho armado com uma espada de duas mãos — a lâmina que perfurou o busto de sua mãe. Arthur tinha apenas uma faca de caça.
Apontou-a contra a virilha de seu último alvo.
— Ela achava que esse bebê era seu.
— Isso é um ultraje! Eu nunca encostaria minha pele na de uma escrava.
— Pode ter sido o senhor Geoffrey também. Ou lorde Irons. Ou qualquer outro desgraçado que passou por essa terra de merda! Ela era sua mina de ouro, não é? Se não fosse por ela, não investiriam uma única moeda nesse vilarejo patético!
— Controle sua língua! Você é o único erro aqui. Se eu pudesse… teria matado você e ela bem antes de todo esse desastre!
Elliot precisou intervir, quando o escravo começou a chorar pela mãe.
— E não ouse sujar a minha sala com o lixo dos seus olhos!
O nobre arremeteu contra o invasor, utilizando uma técnica decapitadora que nunca lhe decepcionou nas suas inúmeras batalhas.
Mesmo com os olhos marejados, Arthur enxergou perfeitamente as aberturas do velho, que não estava mais em seus tempos de glória.
Abaixou-se, perdendo apenas alguns fios de cabelo quando a lâmina passou por cima de seu corpo. Com uma facada, perfurou o estômago do obeso, deleitando-se com seus grunhidos de dor e agonia.
***
O chicote estalou contra a face do conde.
Amarrado em sua poltrona, o antigo cavaleiro já estava praticamente sem fôlego, após uma castração dolorosa.
— Meu… único arrependimento… é não ter chutado aquele útero antes. — Mirou Blake com seu único olho, já que o outro estava inchado demais para se abrir. — Assim… eu teria impedido o mundo de ver essa aberração que você é!
— Tá vendo isso? — Mostrou o reflexo do velho em um espelho de mão, que destacava o seu estado deplorável. — Você parece uma almôndega mastigada. Até os mortos vão rir, quando você for pro inferno. QUEM É A ABERRAÇÃO AQUI?!
Antes que o conde pudesse responder, foi atingido por uma nova chicotada no rosto.
O escravo se preparou para continuar, quando foi acometido por uma tontura repentina. Suas costas sangravam muito e seu tempo estava acabando.
Podia ouvir o trotar de vários cavalos, por uma das janelas.
“Os outros guardas chegaram” pensou, lamentando-se por não poder aproveitar mais alguns momentos.
Vingar sua mãe era seu único objetivo.
Ou seria torturar e matar o conde?
Haveria diferença entre as duas coisas? Arthur quase desmaiou, quando fechou os olhos para pensar.
Na pressa, agarrou um dos olhos de Sir Elliot e simplesmente o arrancou da órbita, rompendo os nervos e fazendo-o gritar o mais alto que podia.
Percebeu que a boca do homem era enorme e decidiu se aproveitar disso, pegando sua faca e cravando-a contra a carne do torturado, mantendo sua mandíbula aberta.
O mestre do Vilarejo Blake rezava por um infarto, para acabar logo com a humilhação que sentia, maior do que qualquer dor.
Seus braços e pernas estavam atados a uma cadeira encharcada de suor. Arthur caminhou até um balde de sangue suíno que havia guardado para esse momento.
Faria o nobre porco se alimentar com um de seus semelhantes.
— Vamos acabar logo com isso… — Começou a despejar o conteúdo, enquanto o conde se contorcia, tentando se soltar.
Agora que sua mãe estava morta, a vida perdeu a importância. O mundo não tinha mais cores.
Arthur não viveria como o brinquedo de um velho fraco que lhe tirara tudo.
Morreria enquanto observava seu nêmesis se afogar com o sangue que era despejado em sua garganta.
Ambos choraram pela última vez em suas vidas.
***
O escravo se lembrou de quando ganhara seu nome.
O dia que sua mãe lhe contou uma história antiga do Além-Mar, sobre cavaleiros, cálices e reis.
Era a crônica de Arthur Pendragon, o camponês humilde que ganhou um reino inteiro após provar o seu valor. Ela dizia que um dia seu filho seria como ele.
Só se esqueceu de avisar que o protagonista da história havia alcançado o título supremo somente por ser filho do antigo rei.
Blake abriu os olhos e percebeu que não estava morto.
Olhou ao seu redor, percebendo que dormiu em uma cabana de linho e garoava intensamente no lado de fora, criando um clima gélido e melancólico.
O corpo de Arthur estava enfaixado, recoberto de ervas curativas por baixo dos panos. Utilizou suas escassas forças para se erguer e procurar o maldito que o privara da morte.
Quando saiu da cabana, encontrou uma jovem forte, com um olhar frio.
Ela trajava roupas leves de seda, peças da nobreza, que jaziam encharcadas pela tempestade que assolava o bosque de salgueiros.
Abriu um sorriso amigável quando percebeu que estava sendo observada.
— O que você fez lá trás foi incrível. Eu só… sinto muito pela sua mãe. — Demonstrou uma simpatia inesperada.
— Você me conhece?
— Infelizmente. — A jovem loira lhe estendeu a mão. — Pode me chamar de Oriana.
— Calma aí… — Ignorou o gesto de simpatia. — Por que você me salvou?
— O certo era deixar você sangrar até a morte?
— Um pouco de liberdade pra escolher como eu morro… isso é pedir demais?
Ela perdeu as palavras ao pensar sobre a vida de um escravizado. Talvez também preferisse a morte, se estivesse no lugar dele.
Decidiu apressar a situação.
— Não foi minha ideia, então me poupe dessa agressividade toda. Se vier comigo, você vai encontrar o culpado.
A nobre ajudou o criminoso a caminhar pelo matagal úmido, iluminado pela pálida luz da alvorada.
Ouviam os pássaros cantarem, junto do tilintar de diversas armaduras de placas.
Arthur notou que o local estava cercado de guardas brydenianos que o olhavam feio.
— Pretendem me executar em praça pública ou o que?
— Eu realmente sinto muito pela morte da sua mãe. E eu acho que o reino todo vai sentir, para falar a verdade. Aqui está o porquê.
Oriana apontou para um campo gramado além das árvores.
Havia um homem forte, trajando uma armadura completa de aço reforçado, tingida de púrpura, a cor mais valiosa de todas.
Seu elmo se assemelhava a uma torre de castelo. Nas costas, carregava uma lança ornamentada com joias que voariam ao primeiro impacto de uma batalha, o que denotava que não era um guerreiro de verdade.
Jazia em frente a um pedaço de solo revirado… Um túmulo.
A figura altiva não se virou para ver o filho de sua amante.
— Arthur… Venha aqui. Você vai me contar exatamente o que aconteceu com ela. Eu preciso saber.
De costas, o homem tentava esconder suas lágrimas.
Reuniu coragem e se voltou ao criminoso, caminhando até ele.
Blake já havia reconhecido o rei Maximus Brydenfall, pelas vestimentas extravagantes. Ao vê-lo cada vez mais perto, começou a sentir um misto de angústia, desespero e fúria.
Sabia que, para si, o velho também representava algo ainda mais importante.
Lembrou-se novamente das histórias que sua mãe contava. Não conseguiu segurar a raiva.
— Seu imprestável! — Tentou investir contra a majestade, mas seus braços foram imobilizados por Oriana. — Ela morreu por sua causa! Era você, não era?! O motivo daquele porco ter nos dado uma vida diferente… e exigir que ela não engravidasse de novo…
— Com quem você pensa que está falando? — Maximus tentou manter seu orgulho na frente dos soldados. Arrependeu-se imediatamente do que estava dizendo, mas prosseguiu: — Eu… Exijo respeito, antes de tudo. Ponha-se no seu lugar.
Blake se desvencilhou da meia-irmã e acertou um soco na cara do pai, quebrando o próprio pulso ao bater no elmo.
O rei tombou em lágrimas, enquanto os guardas derrubavam seu bastardo.
Novamente, Arthur se tornaria o brinquedo de um velho fraco que lhe tirara tudo.