As Bestas de Brydenfall - Capítulo 14
“Não pareça um drogado… Não pareça um drogado” Arthur repetia em sua mente, suando frio.
Sentiu sua pressão despencar em queda livre.
Concentrou-se em não vomitar na frente do homem mais poderoso na hierarquia militar de Brydenfall, o marechal Orion. Trajando uma armadura de setenta quilos, o líder do exército parecia ter mais de dois metros, repleto de cicatrizes na face envelhecida pelos seus sessenta anos.
Mesmo que seu rosto não escondesse as marcas da idade, ele conseguia intimidar qualquer pessoa com apenas um olhar incisivo.
Arthur foi atingido por ele, conseguindo se apoiar na porta de entrada e observar a sala soturna, iluminada apenas por uma lareira. Pensou ter ouvido um grito abafado em algum lugar.
Frente aos militares de mais alta patente na capital, forçou-se em manter a compostura.
Oriana se serviu com uma taça de vinho, enquanto o marechal ofereceu um lugar para o major Blake se sentar.
— Poderia repetir o que foi dito no último relatório sobre o Porto de Carvalho, major? Sei que seus últimos dias não foram nada fáceis, mas nós precisamos saber de todo o ocorrido, com o máximo de detalhes possível.
— Vocês querem saber se a minha versão se mantém? Tranquilo. — Sentou-se, enquanto tentava organizar as palavras que vinham confusas à mente. — De cara, a cidade tava vazia. Aí o Griggs me mandou num grupo e partiu no outro. — Tentava ignorar a dor na mandíbula, após o soco da irmã. — Tinha eu, o coronel Alastor, os irmãos Vesper, o capitão Skar e um padre maluco que tava perdido pelo caminho. E a maluquice mesmo começou quando nós fomos… Investigar uma casa no mato. Foi quando apareceu um homem-lobo.
Apático, Orion afagou a sua barba imensa.
A princesa parecia mais preocupada com a imprevisibilidade do irmão, em uma reunião tão importante, do que com o teor do relato, que foi interrompido com rapidez.
A porta da sala foi escancarada pelo homem que Arthur mais odiava. Com fios de ouro penteados num topete que levava horas para produzir, o comandante Hollow vestia uma armadura de escamas, com diversas insígnias que sinalizavam seus inúmeros feitos.
Com apenas vinte e cinco anos, o prodigioso Sir Evan, antigo veterano de Blake e também discípulo de Griggs, já era conhecido como O Comandante da Apoteose, pois todas as batalhas que travava se tornavam lendárias.
Enquanto limpava da bochecha o batom de seu último encontro – que o fizera se atrasar – o jovem cavaleiro analisou o ambiente intrigante.
— Alguém pode me resumir o que está acontecendo aqui? E por qual razão nós marcamos nesta sala minúscula? Vamos fazer algum ritual maluco ou o quê?
Orion puxou um assento para Evan.
— Major Blake está nos repetindo o relatório.
— Tem certeza? Do outro lado da porta, parecia que vocês estavam ouvindo um bêbado contando alguma história de pescador.
Oriana pigarreou, interrompendo a conversa. Fitou seu irmão, percebendo que estava desconcertado, com a expressão cada vez menos sóbria.
— Abre a boca, Arthur.
— Quê isso?! Não vai nem me pagar uma bebida antes?
Com um movimento rápido, a princesa fez o que mais amava.
Agrediu Blake ao prensar sua face contra a mesa de madeira. Torceu o braço direito do major para trás, somente o suficiente para que ele abrisse a boca e deixasse escorrer a goma thandriana, já quase dissolvida completamente.
Mesmo tendo tirado a força do maxilar de Arthur, o maldito não desistiu do vício. “Logo agora que ele parecia ter ganhado um pouco de ânimo para ajudar”.
Evan não conteve os risos.
— Continua o mesmo vira-lata de sempre, meu amigo Arthur! — Recostou-se com as pernas em cima da mesa. — Agora tudo se encaixa. Imagino que você já estava drogado na hora dos relatórios. Por isso inventou a parte dos monstros, bem criativa, por sinal.
— Já chega! — No momento em que Orion encarou Arthur, o major sabia que teria de sobreviver a intermináveis minutos de um sermão extremo.
***
Passado o sofrimento de ser ensinado novamente sobre responsabilidade, determinação e foco, Blake já se sentia sóbrio o suficiente para continuar o relato.
— Aquela aberração que parecia um lobo… Ela ergueu o Alastor em uma árvore e nos atraiu para dentro da floresta. Sinceramente, eu não sei quantas daquelas coisas haviam na cidade, mas ali onde nós fomos… — Engoliu em seco, lembrando-se da sensação de estar diante de uma batalha impossível. — Tinha pelo menos uns cinquenta deles. E mesmo que o meu primeiro golpe tenha acertado o monstro em cheio… as espadas quebraram. As duas, ao mesmo tempo! Eu pensava que esse lobo gigante era o líder dos monstros. E depois… nós vimos que tinham bestas muito maiores. Todas pareciam pessoas com partes de animais.
Tomou um gole de água, percebendo os olhares de incredulidade vindos de Evan e Oriana.
O marechal permanecia estoico e impassível.
— Prossiga, por favor.
— Certo… Eu derrubei o lobo atravessando o olho dele. Depois os outros bichos vieram devorar o colega, sem nem esperar o corpo dele esfriar. E veio uma onda de ratos… literalmente uma onda. Milhares deles, correndo uns por cima dos outros, gritando, grunhindo e abrindo caminho para o maior dos demônios… ou seja lá o que forem. — Seus olhos perderam o brilho, se lembrando da pior parte. — Ele teria nos dilacerado, se não fosse pelo capitão Skar. E mesmo sendo ágil, ele só manteve o inimigo ocupado por uns cinco segundos.
A princesa anotou alguns pensamentos em um pergaminho.
— Você acha que os invasores são inteligentes? Eles se moveram com algum tipo de estratégia bem elaborada ou pronunciaram um dialeto?
— O lobo parecia bem previsível. Mas eu seria um imbecil se não reconhecesse a inteligência desses monstros. Eles nos atraíram para uma armadilha e nos fizeram voltar correndo, com o rabo entre as pernas.
Evan cruzou os braços, sentindo sua paciência se esgotar.
— Eu sou o único que não está comprando essa história?
— Me diga, Hollow… Por mais que sempre quisesse que eu fosse um traidor… Você já me viu abandonar algum companheiro para morrer?! Acha que eu abandonaria o Griggs por causa de uns soldados wymeicos ou coisa do tipo?
— Existe uma primeira vez para tudo. Eu acho mais fácil acreditar que você nos traiu do que num exército de demônios que vieram dominar o mundo. Alguém aqui pensa o contrário?
Oriana fechou seu pergaminho.
— Eu queria ter algum jeito de te defender, Arthur. Mas você não facilita a minha vida chegando drogado em uma reunião.
— Se você tivesse me dito que era um depoimento, talvez eu tivesse usado só metade. E eu nem teria vindo, se não fosse pelo seu convite extremamente gentil!
O marechal socou a mesa com toda a força. Sua manopla fez com que a sala inteira vibrasse.
— PAREM COM ISSO, OS TRÊS! Isso já está me dando dor de cabeça! Nem parece que viraram adultos. — Ergueu-se, para encarar a todos com seu olhar mais austero. — Atualmente, o major Blake é um dos únicos que tem alguma noção do que estamos lidando. Não vamos perder tempo duvidando de suas palavras.
Contrariado, Evan acendeu um cigarro para empestear a sala.
— Então o senhor acredita nessa história?! Sem mais nem menos?
— Vou te mostrar o que eu acredito, comandante Evan. — Apontou para um tapete encardido no canto da sala. — Oriana, poderia me fazer o favor?
Curiosa, a princesa afastou o tapete, revelando um alçapão com um trinco simples de ferrolho.
Ouviu gritos abafados e correntes sendo forçadas.
— É por isso que o senhor escolheu essa sala… — Olhou para Orion, enquanto destrancava a passagem. — O que você está escondendo, tio?
Ela caiu para trás quando fitou a criatura no fundo do poço.
Não havia escada para descer o alçapão. Era uma fossa feita às pressas para aprisionar o soldado da marinha que, dias antes, chegou à cavalo para avisar que o Porto de Carvalho estava sob ataque.
Fora de si, o infectado gritava com uma voz grave que não poderia ser produzida por um ser humano.
Tentava bater seus chifres contra a parede, mas o corpo inteiro estava aprisionado por correntes e pesos de chumbo. Possuía cascos nos pés e uma aparência bovina que o fazia parecer um autêntico demônio.
Evan se aproximou do poço, enquanto Oriana permanecia no chão, com os olhos arregalados e a mente viajando por diversas possibilidades para explicar o inconcebível.
Hollow paralisou na beirada, sem nem perceber que sua boca havia soltado o cigarro e seu corpo estava tremendo.
Orion também caminhou até a beira do alçapão, rangendo os dentes de raiva, enquanto encarava o acorrentado.
— Ainda quer saber no que eu acredito? Acredito no que meus olhos veem. Acredito que muito mais do que uma cidade será perdida, se não nos apressarmos! — Voltou-se para a princesa, o major e o comandante. — Acredito que teremos guerra.