As Bestas de Brydenfall - Capítulo 15
Os demônios festejavam.
Andarilhos e mercadores eram o banquete do dia, com direito a crianças, idosos e animais indefesos que cruzaram a procissão das bestas.
Todos os monstros lutavam por um pedaço de carne ensanguentada, com exceção dos mais fortes, que se reuniam para decidir os próximos passos.
Lucius ordenou que Grey fosse levado para dentro do covil, onde seria devidamente alimentado. Observou o ambiente decrépito que seus aliados escolheram para o breve descanso: uma mina exaurida de seus minérios.
Procurou por Bastien e Cael, mas foram eles que o encontraram.
— Você foi rápido. — Bastien analisou as dezenas de infectados que inundavam o local. Nenhum se atrevia a interrompê-los. — E tudo está acontecendo exatamente como ela previu.
— Já conversaram com o último escolhido de Deus? — Lucius buscou o espécime, mas não o encontrou à vista.
— Ele já entendeu a situação.
— E quanto à loucura de Vortius?
— Foi devidamente punido. Devemos nos livrar do imprevisto?
— Não há razão para isso. Vocês dois devem levá-los ao local da provação. Levem o príncipe também. Em quanto tempo acham estaremos prontos para atacar?
— Em dois dias, capitão.
— Você sabe que já não há mais necessidade desse título — Lucius tentou esconder o ódio por não ser mais o líder. Virou de costas. — Façam com que esses dois dias se tornem apenas um. Não mais do que isso.
Cael estava prestes a investir contra Lucius, aproveitando sua guarda baixa. O ataque surpresa foi interrompido quando seu companheiro parou entre os dois.
Trocaram olhares suspeitos, que não foram percebidos pelo líder dos infectados. Não era hora de atacar.
— Que assim seja, irmão. — Bastien fez uma reverência ao antigo capitão, antes de partir para os confins da mina.
***
Imerso nas sombras, Sullyvan parecia o único que não estava interessado em devorar algo.
Ele observava os favoritos de Deus planejarem o futuro da humanidade, se não do mundo inteiro.
Reconheceu Lucius, mesmo que agora o infectado estivesse com um traje inusitado. Vestia uma armadura completa do exército brydeniano, com exceção do capacete, que fora substituído por um grande chapéu de pirata.
Mesmo com tanta força e disposição fluindo em suas veias, Larosse não conseguia esquecer que foi apenas uma marionete dessa trama confusa.
Não controlou um rosnado ao lembrar da viagem que mudou sua vida.
***
Um continente vivo, onde o ambiente mudava em segundos.
No lugar de plantas e ervas daninhas havia cabeças de ratos, peixes, pessoas e também de bestas incompreensíveis, extintas há milhões de anos.
Antes do Cataclisma, Larosse viu uma parcela de Deus, com seus próprios olhos.
Apenas uma parte, pois – em meio às névoas – sua visão nunca alcançaria toda a magnitude da entidade. Seu navio jazia encalhado, anunciando que a jornada chegara ao fim.
Bastava agora arrancar alguns espécimes e levar para a cliente misteriosa.
Mesmo frente ao objetivo da missão, Sullyvan recuou.
— NÃO SAIAM DO NAVIO!!! — alertou à sua tripulação.
Demetrius, o primeiro-imediato, parecia estar em outro mundo.
Não ouviu a ordem de seu capitão, saltando do Sonly Morne até o solo fibroso, feito inteiramente de carne.
Larosse estava pronto para fugir, quando seu corpo parou de respondê-lo.
Congelou.
Todos os outros haviam corrido para dentro do porão, onde Herion ainda aguardava seu capitão, com a porta aberta. Ambos observaram uma pequena silhueta em meio às brumas, produzindo o som de pegadas.
A figura caminhava em direção ao primeiro-imediato, que após cair de uma distância de cinco metros, permanecia com a face enterrada no chão.
Cada passo do infectado deixava uma funda pegada de sangue fresco. Trajava roupas velhas e rasgadas, com um chapéu de pirata que escondia sua palidez cadavérica.
— Vocês demoraram.
Enquanto Lucius erguia Demetrius, Sullyvan conseguiu controlar suas cordas vocais o suficiente para fazer uma pergunta:
— O que é você?!
Os olhos do infectado brilharam quando sorriu para o velho.
Desenterrou alguns ratos e pôs nas mãos do primeiro-imediato, que permanecia num transe.
— Suba. — ordenou. — À todos do Sonly Morne, muito obrigado pela cooperação. — Fitou diretamente Larosse. — Acredito que nos encontraremos de novo, capitão.
***
Sullyvan cruzou o tráfego de monstros que o separava dos infectados comandantes da insurreição.
Antes que os alcançasse, viu Bastien e Cael se despedirem de Lucius, com uma reverência.
Deixou que se afastassem, para poder abordar o homem que dominou muitos de seus pesadelos.
— Você estava certo. Aqui estamos nós, de novo.
— Mais interligados do que nunca.
— Posso fazer uma pergunta?
— Imagino que queira refazer a que me fez meses atrás.
— Precisamente.
— Pois bem. Eu já posso adiantar que isso vai ser decepcionante para você. Não sou Deus. Na verdade, nós somos praticamente iguais. Dois sortudos nadando acima de uma onda de azar. A única diferença é que tenho um pouco mais de sorte, já que não herdei partes de uma lagosta. Não me tornei uma aberração grotesca como você.
— Como ousa…
“Os egocêntricos são tão previsíveis” Lucius pensou, quando reagiu mais rápido que Sullyvan.
Antes que o infectado gigante pudesse usar sua pinça dilaceradora, o antigo capitão do Crib Sona demonstrou sua superioridade.
Estendeu a mão contra o pescoço de seu adversário, recriando um chifre afiado – o mesmo que usara para matar os guardas da muralha.
Sua lança óssea perfurou a couraça, sujando-se com o sangue do rebelde.
O corpo do monstro crustáceo era quase três vezes maior que o do oponente. Mesmo assim, estava paralisado.
Novamente seu corpo deixara de respondê-lo, como se algum tipo de força se condensasse em cada articulação de seus membros.
— Olha só… — o Devoto de Deus lambeu sua lança, saboreando as células do irmão.
Para ele, sangue era mais importante do que a carne.
Era um jeito fácil e rápido de sentir os desejos essenciais e primitivos de sua presa.
“Conheça o inimigo antes de planejar contra ele”
Um dogma não só dos piratas, mas de qualquer sobrevivente nato.
— Então você quer ser o rei dos meus cordeiros? — Retraiu a lança e esticou o braço contra Larosse.
Sua pele começou a borbulhar, adquirindo um tom vermelho enquanto seus dedos se fundiam, formando uma pinça ainda maior que a de Sullyvan.
Abriu a nova arma, deixando-a contra o pescoço do paralisado.
— Você ainda tem um longo caminho se quer ser um rei. E ele pode ser interrompido por qualquer erro que cometer. Essa é a vida em sua essência. Desejos, ambições, nada disso faz sentido, entende? Todos podem morrer a qualquer momento. Mas nós dois temos a sorte ao nosso lado. — Deixou escapar um sorriso de dentes afiados. — Mesmo em uma idade tão avançada, o senhor conseguiu sobreviver à manifestação mais pura de nosso Deus.
Sua arma gigante era desproporcional ao corpo humanoide.
O peso não parecia incomodá-lo de forma alguma.
Fechou a pinça contra o pescoço de Larosse, mas parou a execução no último centímetro, deixando que o velho lhe respondesse uma última pergunta.
— Vivemos num mundo onde devoramos ou somos devorados. Isso desde antes do despertar de nosso Deus. E me diga, irmão, que chance um humano comum teria contra qualquer marujo do seu Sonly Morne? Nós temos a graça divina ao nosso lado!
— Isso não é o suficiente. Muitos de meus marujos foram mortos por soldados comuns!
Larosse se sentiu forçado a cair de joelhos.
Seu pescoço não parava de sangrar, graças à perfuração da lança, como se o ferimento estivesse tomado por uma substância anticoagulante.
Parecia que o infectado primordial estava mais do que preparado para eliminar seus semelhantes, mesmo alguém tão significativo quanto o autoproclamado Rei dos Monstros.
— Tão velho, mas ao mesmo tempo tão imaturo… Você está nos subestimando e isso é patético. Eu odeio sofrer esse tipo de decepção. E se tem uma pessoa que te impede de realizar esse seu sonho banal, é você mesmo. Quer ser um rei a partir da força? Então eu vou te dar uma última dica: pare de falar e faça!
Lucius fechou sua pinça, decapitando o monstro crustáceo.
Litros de seu sangue fétido jorraram contra o teto da mina, que agora parecia estar no meio de uma tempestade.
E Larosse permaneceu ajoelhado mesmo depois da execução. Seu carrasco parecia aproveitar o momento.
— Agradeça pela sua sorte. Nós fomos agraciados com a fome ao invés da dor. A ira ao invés do medo. Pertencemos à raça suprema, que não teme à Deus, à Morte e muito menos ao Homem. Se quer mesmo saber: nenhum de seus marujos morreu. Eles continuam vivos, dividindo suas energias com nossos irmãos. Se sua cabeça não nascer de novo, esse será o seu destino. Servirá de escada para alguém realizar o seu sonho. — Olhou em volta, observando os curiosos homens-rato que se acumulavam em volta da discussão. — Foi bom revê-lo, Larosse.
O líder das aberrações se afastou, deixando que seus aliados agissem contra a carne fácil.
Quando o primeiro dos infectados tentou a sorte, foi partido ao meio pela pinça de Sullyvan.
Erguendo-se diante dos carniceiros, o gigante crustáceo ainda estava determinado a lutar pela sua liberdade.
De fato, não precisava da cabeça para continuar vivendo.