As Bestas de Brydenfall - Capítulo 17
Antes do Cataclisma
O covarde esmurrou a criança, lhe tirando um dente.
— Seu inútil! — gritou, perdendo o equilíbrio e quebrando uma garrafa vazia de grogue.
Niall permaneceu no chão, cuspindo sangue.
Não se importava mais com o gosto dos ferimentos e das lágrimas fartas.
Gwyn, já completamente tomada por hematomas, não podia defender seu irmão. Não podia defender nem a si mesma.
— Essa casa… — O homem sujo apontou para as paredes descascadas do barraco. — São tudo o que vocês têm. — Pegou a criança pela camisa, rasgando parte da roupa. — Mas se não fizerem por merecer, vão terminar igual àquela vaca que criou vocês. Na sarjeta.
— Sim, senhor…
— Se pode viver sem a minha ajuda, então cai fora daqui. Vocês dois não aguentam nem uma madrugada no Inferno! Acha que os mendigos vão tratar sua irmã bem? Vão virar brinquedos… igual aquela vagabunda. — Deu um soluço alcoólico, antes de prosseguir. — E eu mesmo vou me certificar disso, se você continuar sendo um imprestável!
Gunther nem sempre foi o homem cruel e brutal que se mostrava aos enteados.
Quando conheceu Erica Vesper, a mãe das crianças, ele era um exemplo de cidadão. Atencioso, engraçado, solidário… Ele fingia como ninguém.
Já era tarde demais quando a mulher percebeu que, assim como o pai de seus filhos, Gunther não conseguia controlar sua raiva interior, que parecia infinita.
Após diversas brigas e muitos ferimentos, ela foi acometida por uma infecção que não conseguiu vencer. Foi abandonada nas ruas, na primeira chance que o marido teve.
Começavam tempos sombrios para os pequenos, que teriam de trabalhar para continuar vivendo, sem nunca saber ao certo o que acontecera com a mãe.
Aos quinze anos, Niall poderia ser ótimo em dezenas de atividades, devido ao seu porte físico avantajado, com facilidade para ganhar peso. Mesmo tendo as oportunidades, permanecia na inércia, sendo um ninguém.
Não tinha coragem para ser mais do que isso, temendo o fracasso, a dor e a frustração. Seu medo lhe impedia de viver e ele apenas se contentava em sofrer todos os dias.
Gwyn, muito longe de ser indefesa como seu irmão, defendia-o de todos os pivetes que moravam no Inferno.
Quando não tinha que socorrer Niall, ela exercia seus dotes culinários. Seu padrasto lhe dizia que as mulheres nasceram para servir, e acabou se contentando com o emprego que a enteada obtivera em uma taverna imunda.
Se aproveitava dela para beber de graça.
— Peça que ele desconte do seu pagamento — ele sempre dizia.
Para Gunther, ela parecia perfeita para a cozinha, pois assim eles não se encontrariam em grande parte do dia.
Ambos se odiavam profundamente.
E mal sabia ele que a jovem não dava a mínima para servir os outros. Adquirira o emprego por um único motivo: a caça.
O velho Ygor, seu patrão e dono da taverna, era o responsável pelo abate de todos os animais que servia nos pratos. Ele também contava com um grande arsenal de facas e habilidades para desossar, limpar e fatiar uma criatura.
Todos os dias de Gwyn lhe exigiam foco, precisão e cálculo. Desperdício era punido com a fome. Se deixasse um único pedaço de peixe preso na espinha que seria descartada, ela era obrigada a trabalhar faminta, salivando frente aos pratos que preparava.
Enquanto seu tímido irmão ia de ponto em ponto na cidade, sendo caçoado, humilhado e impedido de encontrar um emprego, Gwyn era frequentemente levada às caçadas de Ygor.
O velho, escondido atrás de uma árvore, aproveitava para ensinar os princípios da caça, utilizando um javali como exemplo.
— Todo cuidado é pouco perto de um desses — sussurrou.
— Mas ele é… pequeno.
— Não subestime uma criatura pelo tamanho dela, sua energúmena! Uma investida desse bicho já pode quebrar suas costelas ou arrancar suas tripas com as presas. Você gostaria disso?
Chocada, ela meneou negativamente a cabeça.
— Então pare e pense: como você caça uma criatura dessas? Vai trocar flechas, com a chance dele te matar e fugir? Ou vai botar essa cabeça para funcionar? — Deixou ela pensar por alguns segundos, mas perdeu a paciência. — Pescoço, têmpora, olhos e pulmões. Não importa qual seja o animal, esses sempre vão ser os melhores alvos.
Deixou que ela tentasse caçar.
O arco deslizava pelas mãos suadas da jovem. Seus braços tremiam com dificuldade para puxar a corda e estabilizar a flecha.
Controlou a respiração, observando o animal que vagava entre as árvores do bosque.
Mirou na cabeça criatura, tentando esquecer que era um ser vivo inocente.
O suor escorria farto pela lateral de seu rosto, enquanto o velho Ygor examinava os trejeitos da garota.
Alheio aos caçadores, o javali encontrou uma maçã suculenta e passou a saboreá-la. Gwyn pensou em seu padrasto no lugar do alvo e disparou.
A flecha passou longe e a oportunidade foi perdida.
***
Gunther cambaleou para dentro da casa, soluçando após tantas bebidas. Abriu a porta da frente e foi recepcionado por uma visão que despertava seu mais puro desprezo.
Os agora jovens Niall e Gwyn se alimentavam de uma sopa rala, conversando sobre algo fútil.
Interromperam o assunto quando o padrasto chegou. Ele jurava que a adolescente estava rindo, antes de sua chegada.
Nos poucos segundos que passou apenas encarando os dois, ele chegou à conclusão de que ela estava rindo dele, mesmo sem qualquer indício do fato.
— Eu sou uma piada para vocês?
Niall abaixou a cabeça, enquanto Gwyn se arrependeu de estar segurando uma colher e não uma faca.
Ela sabia reconhecer o momento em que, mesmo sem motivos, ele estava prestes a explodir.
Não sabia mais quantos desses momentos suportaria calada.
— Não, senhor.
— NÃO SE FAÇA DE IDIOTA! — Arremessou uma garrafa, que explodiu na parede atrás dos irmãos.
Um dos cacos cortou o rosto de Gwyn, lhe rendendo uma cicatriz.
— E você, seu frangote… — Aproximou-se de Niall. — Já aprendeu a ser útil?
— Eu… acho que sim… Me aceitaram no exército, senhor.
Gunther não esperou para ouvir o resto.
Acertou um soco no estômago do adolescente.
— Isso é algum tipo de piada? — Segurou-o pelos cabelos. — O que eu te disse sobre os militares? ELES NÃO PASSAM DE LIXO! SÓ SABEM DAR ORDENS!
Jogou o enteado contra o chão de palha.
— Sai da minha frente. Amanhã você vai desistir disso e arrumar um emprego de verdade. — Acertou um chute nas costas do garoto, para que sumisse mais rápido. — Onde já se viu?!
Gwyn, com a bochecha sangrando, permaneceu sentada.
Seus olhos estavam frios e ela já havia traçado o melhor caminho até a gaveta de facas.
Gunther notou-a.
— E você aí? Vai encher um prato para mim ou vai continuar com essa cara de bunda?!
— Desculpa…
Ela caminhou até a cozinha, onde recolheu um prato e uma faca.
— Toma o seu jantar! — Estourou a porcelana contra a testa do bêbado.
Niall, que se arrastava até seu quarto, paralisou no meio do caminho. Para ele, a paciência de Gwyn se esgotou no pior momento possível. Ela iria arruinar o seu plano.
O velho se ergueu, com a cabeça sangrando.
— Sua filha da… — Antes que terminasse, a garota investiu contra ele.
O pescoço, a têmpora, os olhos e os pulmões.
Eram muitos alvos e todos pareciam vulneráveis, agora que o homem estava desnorteado.
Sem hesitações, ela se preparou para matar.
Vingaria sua mãe. Vingaria Niall e a si mesma.
Errou a apunhalada.
No último instante, o bêbado saltou para o lado e a faca atravessou a cadeira. Gunther a derrubou com um chute na perna. Arrastou-se para cima da jovem e lhe atingiu o primeiro soco, quebrando o nariz.
O segundo soco fez sangue espirrar contra a parede.
— SUA VACA! EU DEVIA SABER QUE ISSO IA ACONTECER, PORRA! — Mesmo ofegante, ele não parava de deformar o rosto da garota. — Você é igualzinha àquela piranha. E vai terminar do mesmo jeito!
Preparou-se para executar a enteada.
E teria o feito, se a porta da frente não tivesse sido arrombada por um chute.
Niall, que já estava se preparando para investir contra o bêbado, suspirou aliviado.
***
Duas horas antes
O jovem Vesper havia sido aceito entre os aspirantes do exército.
Não pelo seu porte físico ou pela determinação em entrar, mas porque a nação se preparava para a guerra.
Boatos diziam que o Imperador Kato de Wymeia havia impedido suas caravanas de cruzar as fronteiras de Brydenfall.
Interromper o comércio, como todos sabiam, era o primeiro passo para algo maior.
Depois de se inscrever para um treinamento intensivo, o garoto analisava o militar que o atendia. Era um soldado ruivo, com a barba por fazer e diversas cicatrizes distribuídas pelo corpo musculoso.
Parecia um herói das lendas cantadas por bardos.
O tenente sorriu amigavelmente, esperando que o jovem se retirasse.
— Volte aqui amanhã e eu te mostro como começar.
— Eu posso te perguntar uma coisa?
— É… claro. Só não garanto que vou poder responder da melhor forma.
O homem tinha um bafo de ervas. Claramente não estava sóbrio.
— Qual é o trabalho do exército, se não estamos em guerra?
— Ué… — O soldado coçou a cabeça, pensando na pergunta. — Isso não é óbvio? Um reino pode existir por séculos sem entrar numa guerra, como é o caso de Thandriam… E, mesmo assim, ele ainda vai ter um exército. Os criminosos sempre vão existir.
— Então o trabalho é punir os bandidos?
Sua pergunta causou alguns segundos de reflexão.
— Eu ia dizer que esse seu olhar é um pouco infantil, mas você é um adolescente mesmo. E, pensando melhor, até os soldados mais velhos têm umas óticas meio heroicas para o que fazemos. Eu gosto de pensar que, quando Brydenfall não está em guerra, o exército ajuda as pessoas.
Niall juntou coragem para o primeiro ato ousado de sua vida.
Descobriria se Gunther estava certo.
Se os soldados eram, de fato, um bando de inúteis que só sabiam dar ordens.
— Eu quero te contar uma coisa…
***
Quando o soldado invadiu a casa, não deixou tempo para que o bêbado reagisse.
Não precisava de suas duas espadas para o que viria a fazer.
Chutou o peito do velho, retirando-o de cima da adolescente ensanguentada.
Atordoado, Gunther tentou argumentar:
— Eu só estava…
— Cala essa boca. — O segundo chute foi certeiro contra o queixo do criminoso, criando um rasgo profundo e lançando dentes para longe.
Gwyn, com os olhos inchados, lutava para mantê-los abertos.
Não conseguia parar de admirar o soldado.
— Quem… é você?
Niall correu para ajudar sua irmã.
— Arthur… você acreditou em mim…
— Eu não acredito que alguém mentiria sobre ter um covarde misógino se aproveitando de crianças aqui no Inferno. — Quando percebeu que Gunther ainda estava consciente, finalizou o trabalho com sua bota de ferro.
Pisou contra o rosto do abusador, afundando o metal contra a carne do criminoso, agora deformado para sempre.
— Gente assim não merece piedade. — Os dois jovens não poderiam concordar mais. Os três tinham seus motivos para nutrir uma sede de sangue. — Eu só não esperava que as coisas aqui fossem escalar tão rápido.