As Bestas de Brydenfall - Capítulo 18
Um dia antes do Cataclisma
O mundo estava em chamas.
No centro da destruição jazia o Porto de Carvalho em ruínas. Vortius sentiu o calor insuportável e não controlou as lágrimas.
— Pai… por que a cidade está queimando?!
Você irá queimá-la.
— Eu não consigo entender…
Os humanos não foram feitos para terem cidades. Não podem dominar os mares e os outros seres do mundo. Isso é apenas um erro natural que exige conserto. Você não percebe a insignificância dessas criações? A Humanidade existiu muito antes de seus monumentos macularem o mundo. E continuarão vivendo por eras após a queda da última casa. O mundo lhe agradecerá por esse feito… você verá. Este é o seu propósito, meu filho. Sua ação será seguida por muitos no caminho.
As palavras do Pai lhe deixaram ainda mais aflito. Diante das chamas cada vez maiores, o padre se sentia no Inferno, sob a presença do próprio Diabo.
— Eu não quero destruí-la!
O fogo não destrói. Ele transforma. Você verá.
***
Atualmente
Imerso em seus pensamentos, Vortius repousava no canto de uma cela escura e úmida.
Seu corpo pálido como uma ossada jazia repleto de hematomas e cortes, marcas que não deveria esquecer, se valorizava sua vida.
Dominado pela fome, questionava-se sobre as últimas ações. Devia ter devorado os soldados que entrassem no caminho, como lhe fora ordenado?
Cerrou os punhos.
Não se arrependeria de entregar a essência de Deus para Niall. Precisava de aliados, agora mais do que nunca.
Uma voz grave invadiu a cela:
— Nós vamos partir ao anoitecer. A maioria dos nossos irmãos se encontra em mutação agora. — A figura misteriosa destrancou a porta. — Espero que você saiba ser furtivo.
***
Niall não tinha opções além de seguir os dois infectados que se apresentaram como Bastien e Cael.
Sentia em ambos uma presença assassina e sabia que havia outros por perto, provavelmente muito piores.
Caminhou por um túnel largo de pedra escavada, repleto de lamparinas à óleo. O ambiente estava infestado por um cheiro de ovo podre. Não demorou muito para constatar que vagavam por uma velha mina de enxofre.
A tensão do silêncio foi rompida por uma pergunta do tenente:
— Então vocês pretendem destruir a Humanidade? Ou querem dominá-la?
Bastien perdeu seu característico sorriso.
— Tenha um pouco de paciência, por favor. As coisas ainda vão ficar bem mais estranhas do que isso.
Pelo trajeto, o jovem pôde perceber que os dois haviam escolhido o caminho mais longo.
Queriam mostrá-lo, através dos labirínticos túneis, a magnitude do problema em que o tenente se entranhava.
Passou por centenas de bestas aberrantes, com variados tamanhos e aspectos.
Algumas semelhantes a animais, com penas, escamas e carapaças, enquanto outras possuíam folhagens parasitando suas peles e galhos criando caminhos intrincados sob a carne humana.
Estavam ultrapassando um corredor repleto de câmaras, quando Niall paralisou. Cometeu a burrice de analisar o interior de uma delas.
Encontrou dezenas de crianças deformadas, todas amontoadas como formigas, acumulando calor enquanto seus ossos estalavam numa orquestra sepulcral.
Bastien o pegou pelo braço.
— Falta pouco, eu prometo.
***
Grey se concentrava em apreciar o retrogosto de seu último alimento.
Lucius ordenou que os monstros lhe dessem comida, mas não imaginou que seria tão mal tratado. Os ratos entregaram apenas um velho assustado, que foi facilmente abatido e digerido, sem saciar nem metade da fome.
No momento em que pediu por mais, foi levado a uma grande câmara rochosa, por onde um vento frio carregava o aroma fresco da chuva. Estava sendo acompanhado para uma saída alternativa, mas não pôde chegar ao exterior.
Quando seus olhos enxergaram a luz do Sol, foi acometido por uma tosse áspera, sentindo como se os pulmões estivessem lotados de areia, rasgando-se mais a cada tossida.
Sua cabeça ficou dormente e os pensamentos se tornaram confusos, como se estivesse drogado. Seu corpo já não respondia aos estímulos e comandos mais básicos.
Niall encontrou o príncipe Brydenfall caído no chão, completamente imóvel.
Bastien desapareceu nas trevas da mina, enquanto os olhos negros de Cael fitaram os do tenente.
— Reconhece o príncipe Grey?
— Puta que pariu…
Não controlou o choque ao perceber que o monstro à sua frente era o segundo príncipe na sucessão real.
Cael se abaixou para analisar o espécime de perto.
— Então… o que você acha que ele herdou? Fileiras de dentes afiados, pele azulada, olhos completamente pretos.
— Quer dizer que tem uma lógica por trás disso?
— Você já devia ter percebido. Se bem que a sua transformação foi algo à parte. Ao meu ver, você parece ter herdado algum tipo de besouro. Enquanto ele… um tubarão, talvez?
Ouviram passos e correntes se aproximando.
— Desculpe a demora, ele estava agitado. — Bastien surgiu por um túnel, arrastando um infectado grotesco.
A criatura tinha o corpo repleto de pelos arrepiados, com uma orelha desproporcional à cabeça. Sem um dos braços e metade do rosto, parecia mais um morto-vivo se debatendo e soltando urros agudos. Suas centenas de dentes eram pontiagudos como agulhas.
Niall não demorou muito para perceber que o prisioneiro de Bastien havia herdado um morcego, seja lá como.
O thandriano jogou a besta acorrentada contra o chão, próximo a Niall.
— Acho que isso vale uma reapresentação. Corven, este é Niall. E Niall… você já sabe.
O antigo capitão salivava aos pés do tenente.
Tentava se levantar, mas as forças de Bastien e das correntes lhe impediam.
Ele não lembrava Corven em nada além dos músculos.
— O que vocês fizeram com ele?!
Cael tocou a besta e Niall pôde ver os esporos do imediato invadindo a respiração do seu antigo companheiro. Não demorou muito até que Skar caísse em um transe semelhante ao do príncipe.
Bastien soltou a corrente.
— Não se preocupe, ele não está inconsciente, como os outros que viu por aí. É apenas um estado transitório. Enquanto ele não se alimentar, a fome vai falar mais alto que qualquer pensamento.
— E por que eu não passei por isso?
— Não passou ainda. O corpo de Corven estava em um estado deplorável quando o encontramos. E, mesmo assim, ele resistiu. Mas agora seu organismo naturalmente anseia por um pouco de vida.
A aura embolorada de Cael empesteava toda a sala. O infectado fez um gesto com a mão e tanto Grey quanto Corven se ergueram como bonecos.
Ele completou o raciocínio do colega:
— A fome vai te dominar também. Mais cedo ou mais tarde. E sempre foi assim, não é mesmo?
— Eu… — Niall estava cada vez mais tenso, com dificuldade para encontrar até as palavras mais simples. — Ainda não consigo entender onde você estão querendo chegar.
A conversa foi interrompida pelo som de cavalos.
Uma carruagem se aproximava pela saída alternativa da mina. Os animais eram obedientes, sem precisarem de qualquer rédea, enquanto estivessem satisfeitos.
O couro deles, bem diferente dos equinos normais, se assemelhava à pele humana. Herdaram de sua última refeição: seus condutores e passageiros.
Niall não obteve mais explicações de seus raptores. Sentiu a respiração ser tomada pelos esporos de Cael, apresentando-lhe a uma asfixia lenta e dolorosa.
Além de dominarem seus pulmões, os fungos passaram a exercer um controle perturbador sobre cada nervo, após se alojarem no cérebro.
O antigo imediato ordenou aos três infectados que manipulava:
— Subam na carruagem. Há um banquete esperando por vocês.
***
A Vila Daggerden.
Santuário de todas as espécies nativas de Brydenfall. Lar das mais extensas fazendas do reino e também o maior pilar de sustentação da capital.
Era dividida em três partes: os desertos verdes, onde se plantavam todos os tipos de frutos, legumes e verduras que abasteciam a nação; os casebres humildes que abrigavam parte da população fazendeira; e também a pequena cidade dos nobres e comerciantes que lucravam fortunas toda semana.
Sugavam o máximo que podiam da natureza à sua volta, sem se importar com erros e consequências.
Lissandra se recordou do nojo que sentia daquele lugar.
Atualmente, não conseguia achar nada mais do que engraçada a situação que a vila se encontraria em breve.
No topo de um penhasco, seus olhos rubros julgavam os fazendeiros que infestavam a flora local com os mais diversos químicos. Alteravam o mundo à sua volta para uma forma artificial, sem sabor e sem vida.
Soltou um riso leve ao pensar que todo aquele desastre estava chegando ao fim.
Lucius se aproximou da mulher, parando na beira do precipício.
Juntos eles contemplaram a vila vermelha, colorida pelos frágeis raios de um Sol se pondo.
— Disseram que você queria conversar.
— Os três cordeiros estão chegando. E parece que meu filho conseguiu escapar do refúgio. Você teria alguma coisa a ver com isso?
Insultado, Lucius confrontou Lissandra.
— Perdeu a cabeça de vez?! — Ela não respondeu. — Se bem que eu não descarto a ideia de haver outros traidores… Bastien e Cael estão ficando cada vez mais calados. É como se escondessem algo.
Lissandra analisou o aliado por um longo momento.
Tentou encontrar um pingo de hesitação, mas o homem se manteve firme em suas palavras.
— Vou acreditar em você. Mas não se precipite quanto a eles. Ainda são extremamente valiosos para todos nós.
Ambos ficaram em silêncio, aguardando a chegada da carruagem.
Suspiravam, vez ou outra, tentando aliviar a ansiedade que se formava em um assassino sempre que planejava uma carnificina.