As Bestas de Brydenfall - Capítulo 20
A carruagem das bestas chegou ao destino final.
Seus cavalos sentiram o cheiro de raposas e esquilos vagando pela floresta que cercava o ambiente. Ansiaram para quando seu mestre não estivesse por perto, para que pudessem devorar.
Cael foi o primeiro a descer. Inspirou o aroma dos pinheiros, tentando sentir a presença de Lucius.
Quando percebeu a direção do aliado, o infectado dos fungos se voltou aos três escravos que o acompanhavam.
— Saiam de uma vez! — Exerceu controle sob o corpo deles, obrigando-os a saltar da carruagem. — Ela está esperando.
***
Na beira do penhasco, Lissandra abriu seus braços para receber os devotos que se aproximavam.
Cael obrigou os reféns a se ajoelharem no chão lamacento, enquanto ela sorria.
— Isso não é mais necessário. Deixe que eles sejam livres.
O infectado cortou o controle de seus esporos.
— Se é o que você deseja… pronto.
Num piscar de olhos, Corven investiu contra a mulher pálida que trajava apenas um vestido negro.
Faminto, Skar exibiu suas presas vampíricas em um urro agudo. Não aguentava mais conter a fome.
Quando as mentes de Niall e Grey processaram a cena, ela já havia se encerrado.
Lissandra parou Corven com apenas uma mão, usando-a para afagar a face deformada do infectado, que agora parecia completamente domado. Lágrimas verteram de seu único olho, relembrando a doutora o quanto os humanos são dignos de pena.
— Calma, criança… — Ela o abraçou. — Você passou por muita coisa, não é mesmo? Eu sei que sim.
Niall e Grey estavam em choque. Ambos trocaram um olhar de confusão.
Lucius deu um passo à frente.
— Vocês dois. Venham até aqui.
Eles caminharam a passos lentos em direção ao comandante das bestas. Pararam na beira do precipício que detinha uma vista privilegiada da Vila Daggerden.
Grey imediatamente reconheceu o lugar.
— O que aconteceu no Porto de Carvalho… nós vamos ser obrigados a repetir?!
Lucius não demonstrou qualquer sentimento. Estava estoico, como um guerreiro que já ceifara milhares de vidas.
— Com exceção de um irmão, todos os outros que nasceram no Porto perderam algo que vocês ainda têm.
— A nossa mente… não é?
— Vocês foram afortunados com a crítica. Não carregam o fardo da ignorância que, para os tolos, é uma bênção.
Niall não controlou a raiva.
— O que diabos isso quer dizer?! Tudo que eu ouvi até agora não faz o menor sentido!
— Eu vou ser mais claro: vocês controlam plenamente as suas ações. Deus julgou que seus corpos têm a maturidade necessária para divagar sobre o certo e o errado. Possuem consciência, enquanto muitos se contentam em pensar no que vão comer amanhã.
Enquanto o comandante discursava, Lissandra manteve o abraço aconchegante em seu novo irmão.
Olhou para os outros dois, expondo seu sorriso suave, com um tom maternal na voz:
— Estamos dispostos a abraçá-los por seus méritos. Nosso Deus os escolheu para serem pastores ao invés de cordeiros. Se aceitarem essa tarefa divina, então unifiquem a vila corrupta! Devorem vivos aqueles que forem fracos. Poupem os que se mostrarem merecedores, deixando-os sangrar até o ponto em que o Pai os alcançará. — Olhou para a lua no céu, percebendo que já se aproximava da meia-noite. — Nossos irmãos da Vila Daggerden devem ascender até o amanhecer. Se não no organismo e na essência de vocês, então em nosso exército de devotos.
Niall sentiu seu sangue ferver ainda mais. Achava simplesmente absurdo que a mulher pregasse aquelas atrocidades com tanta naturalidade.
— Então vocês pretendem entrar em guerra com a Humanidade?!
— O universo não gira em torno do Homem, sabia? Deus trará a paz ao mundo inteiro. Todas as espécies serão salvas.
Grey também não conseguia entender onde os fanáticos queriam chegar.
— Se o objetivo é paz, então por que montar um exército?
— Nenhuma mudança se faz por um mero ideal. — Ela lambeu seus lábios vermelhos como sangue. — Nós mudamos o mundo através de nossas bocas.
— E eu imagino que você não está falando de usar elas para um diálogo… — O príncipe começou a se afastar dos devotos. — Você quer nos obrigar a continuar com isso… de comer pessoas vivas?! Para mim já chega!
— É uma pena que você não consegue entender. — Lissandra soltou Corven, que permaneceu pacífico aos seus pés. — Então venha… pequeno Brydenfall.
Grey já estava preparado para correr, quando percebeu que suas pernas o levavam em direção aos braços da mulher. Desnorteado, começou a suar e tremer enquanto caminhava.
Os olhos da doutora brilharam no mesmo tom de seus lábios.
— Eu prometo que não vai doer.
Cada passo dado pelo príncipe o enchia de um terror incomensurável.
Lissandra, ficando cada vez maior aos olhos de Grey, exercia um controle diferente de Cael. Não era uma dominação brutal, que forçava os músculos e ossos da vítima.
Seu poder fazia com que uma guerra se instaurasse na mente do infectado.
Ele queria abraçá-la ao mesmo tempo em que lutava para não fazer.
Desejava a morte que encontraria nos braços da mulher.
Rezou internamente para que rompesse o controle e continuasse vivendo.
Suas intenções conflitaram entre fugir e morrer.
A mente de Grey começou a se fragmentar.
Abaixou a cabeça, tentando recobrar sua sanidade. Percebeu que a vasta beleza da doutora era apenas um véu. Quando fitou novamente a mulher, pôde ver através dele.
Percebeu um olhar intenso e psicótico. Seu sorriso, antes suave, agora possuía dezenas de presas em uma mandíbula escancarada.
Se o Diabo tivesse um rosto, seria o que Lissandra adotara naquele momento.
Grey estava a três passos de distância do seu fim. Sentiu uma parcela do que seria de si caso encostasse nela.
Um vazio escuro, sem dor, sem luz, sem felicidade, sem companhia.
— ESPERA!!! — ele conseguiu gritar, com o rosto tomado de lágrimas. — Eu faço… É isso que você queria ouvir?! EU FAÇO!!!
Niall teve de se apoiar em uma árvore para não cair. O nervosismo lhe impedia de respirar diante de criaturas com poderes tão inconcebíveis. Tinha certeza de que estaria na mesma situação do príncipe, caso os desafiasse.
Cael, afastado da conversa, situava-se no alto de um salgueiro, mastigando pedaços de líquen. Sentia-se decepcionado com o desenrolar dos planos.
— Parece que o lordezinho não é tão tolo quanto se mostrava. Será que os outros dois vão ser tão obedientes quanto ele?