As Bestas de Brydenfall - Capítulo 21
Na calada da noite, os aldeões descansavam em suas casas humildes, sem saber que bestas sedentas se moviam nas trevas, cercando-os.
Cael deixou que Corven agisse primeiro.
O antigo capitão investiu contra um dos quatro soldados que guardavam a muralha. Em um bote sanguinário, derrubou a caça e arrancou sua jugular com os dentes, sorvendo o sangue como um néctar.
Antes que uma espada o atravessasse pelas costas, Lucius cuidou de sua retaguarda.
A lança óssea do infectado entrou pela nuca do espadachim, saindo pela órbita de um olho que acabou preso na ponta da arma.
Os outros três soldados tentaram gritar, mas foram acometidos por uma tosse violenta, tendo o ar drenado de seus pulmões. Antes que morressem asfixiados, Corven garantiu que nenhum alimento fosse desperdiçado.
Quanto mais devorava, mais fome sentia.
Niall e Grey ficaram de frente para Cael, que os ordenou:
— Em cinco horas vocês devem unir esta vila, tanto as fazendas quanto a cidade. — Permitiu novamente que os escravos se movessem sem o controle dos fungos. — Mas não toquem nas crianças, está bem?
Lucius terminou de mastigar o olho que obtivera.
— Cada um de vocês deve seguir o próprio caminho. Se não partirem separados, será impossível vencer essa provação no tempo desejado.
Niall lutou contra o pensamento nefasto de que seria uma boa ideia cumprir a missão e matar sua fome.
— E o que vocês dois vão fazer?!
Cael apoiou seu braço no ombro do comandante das bestas.
— Vamos cuidar para que não sejam mortos. E talvez nos unir aos guardas que atrapalharem. Alguns deles fariam um bom adendo se vivessem em nosso interior. Não é mesmo, Lucius?
Esperou por uma confirmação do aliado, que nem mesmo ouvira suas palavras. Estava com o olhar distante e parecia imerso em uma divagação interna.
Quando voltou à realidade, o comandante percebeu que todos o observavam.
Estavam perdendo tempo.
— Chega de perguntas. Saiam logo da minha frente.
***
Grey correu o máximo que pôde. Olhou em volta e não percebeu nenhum sinal dos infectados, mas sentia as presenças malditas espalhadas pelo local.
Suas pernas começaram a bambear, incapazes de continuar andando.
Depois de olhar a verdadeira face de Lissandra, sabia que não tinha a menor chance de escapar sem ajuda. Sua única opção, se quisesse continuar vivendo, era se juntar aos canibais e se tornar, definitivamente, uma aberração.
Não há o que temer. Nenhuma vida será tirada nesta noite. Você deve apenas absorver os indignos e deixar que os fortes ouçam a minha voz. Ninguém o conhece melhor do que eu, meu filho. Quer ser invencível como os devotos que conheceu? Pois saiba que pode ser ainda maior. Não lhe disse que o tornaria um deus?
Basta apenas se unir aos fracos e você deixará de ser um deles.
— As pessoas da vila não me fizeram nada! — Tentou esquecer que já havia matado alguns inocentes, mas as lembranças o corroíam por dentro. — E não tem como eu devorar uma pessoa sem fazê-la sofrer… Eu não quero virar esse monstro!
A fé na mudança que eu proclamo já está se espalhando entre os seus. E um de vocês me disse uma frase que pode lhe ajudar a entender como se tornará invencível: o todo vale mais do que a junção das partes.
Grey ficou revoltado com a voz na sua cabeça, que só o confundia ainda mais.
— O que isso quer dizer?!
A Humanidade vive no caos. Vocês não conseguem se unir devidamente, nem que suas vidas dependam disso. Por este motivo, acabar com bilhões de humanos não é uma tarefa árdua. E não é o que eu desejo. Nosso objetivo é um só…
Deus o assolou com a verdade.
Grey desatou em um riso histérico, compreendendo a vontade do Pai e a aceitando como sua.
— Sabe… até que isso não é uma má ideia. Parece muito melhor do que apenas viver e morrer… Agora eu consigo entender.
Distinguiu um pequeno pelotão de soldados passando pelos portões da cidade.
Não tinha mais motivos para controlar a fome.
O primeiro dos guardas que o avistou já sabia que não se tratava de um simples invasor. Percebeu, pela luz das lamparinas na rua, todas as deformidades de Grey.
— Um demônio!!! — o arqueiro alertou os companheiros, enquanto disparava a primeira flecha.
Conseguiu perfurar o ombro direito do infectado, derrubando-o.
Antes de se erguer, Grey conseguiu abrir e fechar a mão. Um ferimento desses teria paralisado seu braço, se ainda fosse um mero humano.
Agora tinha certeza de sua superioridade.
Dois lanceiros investiram contra o príncipe. A arma do primeiro atingiu o alvo na cabeça, quase arrancando um olho. Já o segundo soldado acabou subestimando o adversário, ao desferir uma estocada previsível.
Grey usou a própria palma para interromper o golpe. A ponta de aço atravessou sua carne e quebrou os ossos dos dedos, mas não lhe causou qualquer dor. Aproveitou a surpresa do inimigo para puxá-lo contra o chão e começar o banquete.
Entre o sangue e a lama, o monstro abocanhou o rosto do soldado, lhe arrancando toda a pele e deixando os músculos engordurados à mostra.
Enquanto a vítima urrava de agonia, uma das lanças perfurou o príncipe pelas costas. Ele se voltou ao adversário, impedindo-o de recuperar a arma.
Segurou o inimigo pelo pescoço e se deleitou com a satisfação de quebrar uma traqueia pela primeira vez.
Já não sentia qualquer culpa ou receio, pois sabia que estava apenas salvando a Humanidade.
Um dos atiradores, mirando com sua balestra, conseguiu um tiro limpo. Seu virote entrou por uma têmpora do infectado e saiu pela outra.
Com o cérebro perfurado, Grey perdeu a visão.
Sentiu o impacto de seu corpo contra o solo.
— Capitão Garret! — Um dos arqueiros correu ao soldado caído, percebendo que estava morto, diferente do monstro ao seu lado.
O pobre guarda teve tempo soltar um berro antes de ser derrubado e dominado pelo príncipe faminto.
A execução começou pelas estranhas, com o monstro usando suas garras para escavar a barriga do arqueiro e levar suas tripas à boca. Triturou a carne em instantes.
Mesmo que o alimento mal tivesse gosto, essa união lhe oferecia um prazer inigualável.
Não precisava mais de vícios, mulheres ou títulos fúteis. Queria apenas descobrir como cada criatura alteraria seu corpo e lhe deixaria mais próximo da perfeição.
Trêmulo e desajeitado, o último atirador tentava recarregar sua balestra. Os olhos negros de Grey se cruzaram com os do soldado.
— Aquele seu tiro… quase me matou.
A vítima paralisou quando percebeu que o monstro podia falar. Todos os seus companheiros foram mortos, sem qualquer explicação.
Não importava o quanto ferissem o adversário, ele continua se erguendo e se regenerando. Percebeu que não tinha chance alguma nesta batalha.
Caiu de joelhos.
— Piedade… por favor, eu imploro!
O infectado não impediu que um sorriso hediondo viesse à tona. Definitivamente não era mais o almirante fracassado que todos zombavam pelas costas.
— Até que você pode ser útil. Nós seremos irmãos, por um tempo… O que acha disso?
***
Corven era apenas um espectador de seu próprio corpo. Uma marionete presa aos fios de algo muito maior.
Viu-se entrar em uma casa e percebeu que havia muita comida disponível. Os pedaços de carne tentaram fugir, mas eram tão lentos comparados com o jeito que seu corpo caçava.
Não sentia qualquer peso nos movimentos. Deixava que o vento lhe guiasse até a presa, como se puxado por um magnetismo.
Era tão fácil matar os outros.
A dificuldade começou após comer a décima oitava vítima, que fez seus ossos estalarem na digestão. Toda a carne devorada iniciou uma mudança no organismo do infectado.
Sentiu uma fragilidade nos fios que o manipulavam.
Lutou para voltar ao controle, enquanto se lembrava de que não estava simplesmente apreciando um jantar.
Tinha devorado famílias.
A décima nona vítima já estava imobilizada, prestes a se unir aos parentes. O objeto que Skar enxergava apenas como carne, agora começava a tomar forma em sua vista.
Percebeu que segurava os braços de uma mulher desesperada. Ela se debatia e gritava, tentando inutilmente ganhar a liberdade.
A mente de Corven lutou pelo controle do corpo, mas fracassou no esforço.
Estava sendo regido pela fome sem sentido, depois de comer mais de dez vezes o seu peso.
Não demoraria muito para se transformar de novo.
Sua boca entreaberta salivava sangue, ansiando por mais e mais daquela euforia profana.
Sentiu vontade de morrer quando percebeu que devoraria uma mulher grávida.