As Bestas de Brydenfall - Capítulo 22
Seis anos antes do Cataclisma
A igreja estava em chamas. O fogo consumia as entradas e janelas com uma rapidez premeditada, parte de uma estratégia que não planejava deixar sobreviventes.
Corven pôde ouvir os gritos do padre se elevarem acima dos demais. Todos os fanáticos estavam ardendo nas chamas que mereciam. O jovem só se lamentava por não poder apreciar as feições desesperadas de suas vítimas.
Imerso nas sombras da noite, ajoelhou-se no gramado à frente da Casa de Deus.
— Pai… Mãe… não adianta gritarem. — Seu interior era pura tristeza, mas sem remorsos. — Onde está seu Deus agora?
***
Alguns anos antes do incêndio, Corven era feliz.
Não conseguia nem pensar na ideia de acabar com uma vida humana. Habitava uma existência pacata, onde sua única preocupação era a irmã mais nova e fiel escudeira: Lavínia.
Seu amor por ela o transformaria em um assassino.
Aos oito anos de idade, arruinar a vida do padre Lupus era seu passatempo principal. Costumava invadir a grande capela quando estava desprotegida.
Com o rosto encoberto por uma sacola de pão, Corven já se sentia um profissional na arte da furtividade.
Começava roubando a chave da porta nos fundos e entregando para a pequenina Lavínia que, por sua vez, instalava armadilhas que facilitariam a fuga.
O ladino se esgueirava ao altar das oferendas, sempre repleto de doces, pães e bebidas alcoólicas. Tomava o que lhe apetecia e, normalmente, tudo terminava em uma missão cumprida com perfeição.
Não fora o caso de seu último roubo na juventude. A cesta de guloseimas já transbordava quando o padre chutou a porta da frente, revelando a heresia.
— Que Deus tenha piedade da sua alma! — falou com desprezo ao encontrar o pequeno ladrão.
Corven não esperou por sermões.
Disparou para os fundos, sendo perseguido pelo velhote corpulento.
Saltou pela porta da cozinha, ouvindo pregações sobre as desgraças que aconteciam a jovens revoltados como ele.
Não controlou um riso ao ouvir Lupus tropeçar na armadilha. Uma simples corda amarrada aos dois lados da porta, na altura específica para uma queda cômica.
Naquele dia de roubo, Lavínia e Corven voltaram para casa se achando os mestres do crime.
Não pensavam nas palavras de seus pais, sobre um Deus que castiga.
***
Para a cultura brydeniana, Deus é uma figura controversa.
Vilarejos, feudos e até as grandes cidades têm seu povo dividido entre os que vivem em prol da fé e os que não ligam para o sagrado.
Brydenfall não possui uma pluralidade de religiões, sendo dividida apenas entre os teístas e os ateus.
Aqueles que acreditam que há um Criador observando a tudo e todos, recompensando e fazendo milagres, e aqueles que creem ser apenas obra do acaso. Enxergam a vida como nada mais do que uma coincidência cósmica.
Corven, em especial, não dava a mínima para a crença de um Deus benfeitor, patrono dos justos e inimigo do maléfico Diabo.
O jovem nunca conseguiu ignorar as visões perturbadoras que a vida lhe oferecia de soslaio. Um mendigo desnutrido à beira da morte. Cachorros se alimentando de seus filhotes para sobreviverem. Crianças partindo de forma precoce, vítimas da ignorância e desleixo de seus próprios pais.
Provas concretas de que se Deus existia, então não se tratava de uma entidade bondosa.
Era o criador das dores, do medo e da própria morte. Corven não conseguia entender como alguém assim poderia ser idolatrado por tantos.
Eles o temiam ou amavam?
O jovem não conseguia sentir nada além de medo pela ideia de um juiz invisível que observava cada injustiça, cada pecado.
Em menos de dois dias após o roubo da igreja, seu medo se tornou ira.
Essa semente do ódio brotou quando o garoto se levantou para tomar café da manhã com seus pais.
A mãe de Corven era responsável pela organização das missas e divulgação dos eventos. O pai trabalhava ferrenhamente na marcenaria do vilarejo, fabricando desde móveis até relíquias para a igreja.
Era uma família extremamente teísta e, por este motivo, rezaram antes de começar a comer.
O adolescente estranhou que sua irmã demorava em levantar da cama e se juntar a eles.
Lavínia estava ardendo em febre, ele constatou após terminar a refeição e correr para o quarto que dividiam.
Envolveu-a no cobertor mais aconchegante, enquanto ouvia de seu pai:
— Eu já sei o que é isso. Acharam que Deus não ia castigar vocês pelas besteiras que andam fazendo?! O padre me contou tudo. E você é o próximo, moleque!
Corven não se deu ao trabalho de responder.
Preocupava-se com o fato de que Lavínia nunca havia estado tão mal.
A garota já fora linda, com olhos brilhantes cor de esmeralda e cachos vermelhos como fogo. Com o passar dos dias, jazia cada vez mais distante daquela beleza que lhe parecia intrínseca.
Sua garganta inchara e ela não conseguia mais falar. Mal podia respirar. Sua pele, tomada por irritações, provocava coceiras que não paravam nem ao rasgar a carne.
Chegara a hora do irmão mais velho tomar uma providência.
— Tem um apotecário há duas horas daqui — alertou os pais durante o almoço. — Ele vai saber um jeito de curar ela, eu tenho certeza!
Sua mãe não escondeu uma careta.
— Eu estou tão preocupada quanto você, meu querido. Mas essas pessoas mexem com bruxaria. Vão sujar a alma da sua irmã, tenho certeza.
— Mas… ela não vai resistir…
O pai se levantou da mesa, sem terminar o jantar. Benzeu-se antes de falar:
— Padre Lupus virá nesta noite. Nós não temos com o que nos preocupar… se Deus quiser.
***
O pesadelo começou no momento em que o padre executou seu carisma contra os pais de Corven.
— O cheiro desta casa… eu não tenho dúvidas. Tragam-me a garota amarrada em uma cadeira, por favor.
O pai carregou sua filha até a poltrona mais confortável, atando suas mãos e pés ao assento. O irmão não conseguiu ficar calado.
— Vocês enlouqueceram?!
Antes que os fanáticos pudessem corrigir seu filho, Lupus segurou-o pelo colarinho.
— Sua casa abriga um demônio! É ele que fala e faz essas bobagens por você, garoto. Eu sempre desconfiei disso. Sempre pareceram crianças maravilhosas, mas perdidas. Todos os filhos de Deus são naturalmente puros… É o Adversário que nos corrompe! — Voltou-se aos pais. — Ela ainda pode ser purificada. Apenas tirem o garoto para que não atrapalhe, tudo bem? A mente fraca dele é praticamente uma porta de entrada aos pecados.
Sem forças para retrucar, Corven foi trancafiado no porão, onde ainda podia ouvir a cerimônia.
Não fazia ideia de como estava sendo conduzida, mas já parecia ter dado frutos. Lavínia voltara a reagir, mesmo com tanta febre.
Agora ela gritava, chorava e implorava para que parassem.
E quando o ritual atingiu seu ápice, a porta do porão foi aberta para que os pais se juntassem ao filho, confiando nas capacidades de Lupus.
— Aquele velho não vai ajudar em nada… — O garoto tentou chamar a atenção dos pais, que rezavam sem parar. — E TÁ MACHUCANDO ELA!
Os adultos trocaram olhares de preocupação e resolveram que o melhor seria amordaçá-lo, para que o Demônio não usasse a criança para abalar suas crenças.
Enquanto estava sozinha com o padre, Lavínia gritou ainda mais alto… Até que simplesmente parou.
Um silêncio sepulcral invadiu a casa e permaneceu por minutos que, para Corven, soaram como séculos de angústia e agonia.
Padre Lupus abriu o porão e abaixou a cabeça.
— Eu fiz tudo o que podia, mas… estava fora do nosso alcance. O Diabo a fez morder a língua. — Fez uma pausa para que a informação fosse digerida por todos.
Quando percebeu que os lamentos rotineiros estavam para começar, prosseguiu com a frase que já virara costume:
— Mas a alma dela foi salva. Eu a levei para o Paraíso, em nome de Deus.
A mordaça de Corven foi retirada. Em prantos, seus pais o abraçaram.
Sua voz era pouco mais do que um sussurro:
— Seus assassinos… foram vocês que mataram ela.
Lupus não demonstrou qualquer condolência ao olhar para Corven.
— O Demônio consumiu a garota antes de ser exorcizado. Se me permitirem, eu mesmo cuido do corpo. Faremos um enterro digno.
A mãe tentou sorrir, abençoada pela ignorância.
— Ela foi… para um lugar melhor.
— Exatamente. Se Deus quiser — o padre pontuou.
Corven desistiu do diálogo.
Afundou-se na aflição, com a certeza de que poderia ter salvado sua irmã caso tivesse sido mais inteligente.
Se não confiasse nos fanáticos que o cercavam.
Dividia a culpa com eles, mas os malditos não pareciam sentir qualquer arrependimento, nem mesmo seus pais.
Ele os faria sentir na próxima missa.