As Bestas de Brydenfall - Capítulo 23
Três anos após o incêndio, a mente de Skar ainda se resumia ao trauma.
Não conseguia se desprender do ódio que sentia por Deus, por seus fanáticos e, principalmente, por si mesmo.
Como muitas das almas sem rumo que chegam à Neverfall, em busca de uma vida ou morte fácil, ele passou a viver no Inferno, onde poderia vagar entre os seus.
Todas as noites ele sentia fome. Todas as manhãs eram tempos de roubo.
Em um de seus delitos matinais, após roubar um cesto de frutas no Mercado Central, Corven acabou sendo flagrado por um soldado à paisana.
Gerou uma perseguição em plena luz do dia, levando o militar por entre vielas escuras, becos estreitos, ruas movimentadas, desembocando em um pátio repleto de detritos.
O ladino julgou o cenário como sendo aberto o suficiente para uma luta justa.
Quando percebeu que o tenente Niall sacava sua espada, conseguiu ser mais rápido que o adversário. Tomou um saco de lixo pesado e arremessou contra o alvo, estourando a sacola e libertando um fedor desnorteante.
Vesper não teve tempo de reagir.
Foi atingido por dois socos diretos. Um dos punhos de Corven deslocou sua mandíbula, enquanto o outro afundou na boca do estômago.
Niall tombou inconsciente, mas a batalha de Skar ainda não havia acabado.
Arthur tentou ser furtivo, mas a sobriedade não estava ao seu lado. Pisou em um caco de vidro que alertou o ladino, agora armado com a lâmina do tenente caído.
Utilizando suas duas espadas, Blake arremeteu contra Corven.
— Vai ter que ser à moda antiga!
O drogado se movia de forma imprevisível, com múltiplos golpes pesados que obrigavam o ladrão a permanecer sempre na defensiva.
Skar bateu as costas em uma parede de tijolos, encurralado.
Blake planejou um corte desabilitador, algo que apenas paralisasse o ladino. Desferiu uma estocada, mas sua preocupação com a vida do inimigo lhe custou caro.
Errou o golpe, cravando a espada contra os tijolos. Corven sorriu ao perceber que o soldado não era tão perigoso quanto parecia. Sua postura agora continha falhas na guarda.
Arthur subestimou seu inimigo.
O criminoso concentrou todo o seu peso em um único golpe, forte o suficiente para desarmar uma das mãos de Arthur e jorrar faíscas contra o chão.
Corven estava disposto a matar.
Derrubou Blake com um chute nas costelas e preparou uma estocada fatal, quando sentiu que suas costas estavam sangrando.
Foi atingido por uma flecha.
O ladino teria de improvisar novamente. Virou-se contra Gwyn, pronto para arremessar sua espada em direção à garganta da arqueira intrometida.
Seu corpo paralisou. Sentiu vontade de chorar.
Ela tinha os mesmos olhos verdes, os cabelos ruivos, as sardas…
— Lavínia…
Era como se Deus a tivesse permitido crescer e se tornar uma mulher.
Com os olhos marejados, Corven sorriu, antes de ser alvejado na barriga.
Desmaiou.
***
Arthur invadiu a sala de Oriana, carregando dois tipos de drogas.
— O que você quer dessa vez?! — A princesa não tinha paciência para lidar com o meio-irmão.
— Trouxe erva aqui.
— Eu deveria te prender?
— Tem cerveja também.
Ela não recusou. Deu um gole farto, para evitar o desperdício.
— Seja rápido. Eu não sou uma vagabunda como você.
— Claro…
Desconfortável, Arthur se sentou em uma cadeira próxima à grande mesa de trabalho, repleta de documentos, mapas e carimbos.
— Como a Chefe da Guarda, eu imagino que você consiga destrancar algumas celas, se for preciso.
— Já estou odiando o rumo dessa conversa.
— Eu vou direto ao ponto: tem um cara na Prisão Periférica… um ladrão de frutas, basicamente. E um dos bons.
— Um bom ladrão de frutas?
— Ele conseguiu derrubar o meu tenente em alguns segundos.
— Está falando do cara que quase te matou?
— Esse maluco não me acertaria nem se eu fosse um soldado de Wymeia. Só me faltou um pouco de…
— Sobriedade?
— Perversidade, talvez seja a melhor palavra.
— Olha, Arthur… Eu posso até ignorar o seu desrespeito com algumas leis, desde que elas não atrapalhem a vida dos outros. O único motivo de não te prender por ser um viciado é porque, por enquanto, você está fazendo mal apenas a si mesmo. — Deu mais um gole na cerveja. — Mas eu não posso soltar um criminoso só porque você quer uma revanche!
— Calma aí, maninha… O tarado hesitou quando viu a Gwyn. Certeza que ele tem um fraco por mulheres. E, como eu te falei, esse garoto é forte! Acho que dava para eu me aproveitar disso, treinar ele e…
— Não vem me dizer que isso é só para ajudar um jovem com potencial. Nós dois sabemos que você só quer provar para si mesmo que não seria morto por um ladrão aleatório.
— É impossível não ficar ofendido com o seu simplismo!
— Se ele é tão forte quanto você diz, acho que não teria problema colocar todas as ações dele sob a sua responsabilidade. — Desferiu um sorriso maligno.
— Calma… O que?
— Se o Griggs estiver de acordo, eu abro essa exceção.
— Sério?
— Eu pareço estar brincando?
Arthur ficou desconcertado. Não deveria ter se drogado antes da negociação.
— É que… eu não entendo… O que te fez mudar de ideia? Qual é a armadilha?
— Essa é a primeira vez que você me pede algo que não seja dinheiro. — Esvaziou a garrafa. — Me deixou curiosa para ver aonde isso vai dar. E, caso você tenha esquecido, o Griggs fez a mesma coisa por você, alguns anos atrás. — Se levantou da poltrona. — Ele aceitou um assassino que só sabia bater nos veteranos e dormir na prisão.
— É, você tem um ponto… Talvez ele se pareça comigo, de alguma forma.
Oriana caminhou até Arthur, fitando-o no fundo dos olhos.
— Só não faça eu me arrepender.
***
Atualmente
A mulher se debatia e grunhia, implorando para que a poupasse.
Corven segurava sua presa com as garras, ameaçando cortar seus pulsos caso ela forçasse demais.
Já a encharcava de saliva, quando sua consciência foi tomando o controle.
— Arthur… Gwyn… — Cada sílaba chegava acompanhada de uma dor diferente. — Eu… desisto.
Amaldiçoou a fome insaciável que lhe corrompia. Abriu sua boca, revelando dezenas de agulhas retalhadoras.
Fechou a mandíbula com toda a sua força, mordendo a própria língua e jorrando seu sangue pestilento contra a grávida.
Movida apenas pelo instinto de sobrevivência, a mulher conseguiu se desvencilhar da criatura e cambalear até os portões da muralha, sua única rota de fuga.
Percebeu um homem imóvel no meio da passagem. Conseguia enxergar pouco mais do que uma sombra caminhando. Era Cael.
— Um instante, por favor. — O infectado a fez começar a tossir. — E nem mesmo respire até que eu volte, tudo bem?
Não esperou que a vítima respondesse. Partiu em direção ao aliado que tentara se matar.
Corven jazia numa poça de sangue. Seu corpo inchado não possuía mais forças para se erguer. Os ossos permaneciam estalando, torturando-o. Era como se alguém estivesse remontando seu interior, usando somente as mãos, sem qualquer cuidado.
Cael pisoteou a barriga de Skar, fraturando uma costela e amplificando a dor.
— Você achou que morder a língua iria te matar?! — Ergueu o aliado pelo pescoço. — Isso só acabaria com alguém muito fraco, seu morcego patético. Infelizmente não é o seu caso.
A feição de Corven já não era mais dotada de ódio, medo ou dor. Tinha os olhos vazios de quem perdera as esperanças.
Cael se certificou de que permanecesse assim:
— Caso tenha esquecido, você é um de nós agora… e só vai morrer quando Deus quiser.