As Bestas de Brydenfall - Capítulo 24
Mais confuso do que nunca, Arthur decidiu que seria melhor levar Vortius para longe do hospital.
Caminharam juntos por entre as ruas extensas da cidade, onde o padre pôde admirar a limpeza e ordem da Cidade Alta, repleta de guardas.
Blake não segurou um riso ao ver que o infectado contemplava Neverfall.
— É melhor você aproveitar a vista. O lugar que eu moro é um pouco mais embaixo.
— Pensei que o exército pagava bem.
— Digamos que eu fiz mais dívidas do que deveria.
Cruzaram o beco de uma estalagem luxuosa e desceram por uma escada mal iluminada, que servia de atalho aos habitantes do Inferno.
Durante o trajeto, o padre pediu que Arthur listasse todos os momentos de sua vida que fossem dignos de nota.
Precisavam encontrar a causa da resistência à infecção.
O frio se intensificava conforme a noite fluía. Nem mesmo a luz das constelações conseguia trazer beleza à zona dos bandidos e injustiçados. O aroma passou de um orvalho fresco para o fedor azedo e repulsivo.
Toneladas de lixo dividiam o ambiente com dezenas de animais famintos e abandonados, que lutavam pela comida escassa ou se amontoavam para acumular calor.
Chegaram ao barraco de tijolos que o próprio major construíra, sem nem pintar ou decorar.
Arthur testou se a porta estava destrancada e depois pigarreou, envergonhado.
— Então… Deus realmente não está do nosso lado.
— Você perdeu suas chaves?
— Em algum momento daquela loucura no Porto, eu posso ter… derrubado elas.
— Não entendo por qual motivo uma pessoa levaria as chaves de casa para uma operação militar.
— É muito melhor do que confiar em alguém aleatório e ter tudo vasculhado enquanto está fora — Reuniu fôlego. — Que se foda!
Desferiu um chute contra a porta, arrombando a própria casa.
Vortius não demorou em perceber que estava diante do significado de desordem.
Arthur sorriu orgulhoso.
— Lar doce lar.
— Isso é uma criação de baratas?
Parecia que Blake armazenava sacolas, frascos, garrafas e outras embalagens inúteis que jaziam espalhadas pelo ambiente.
A casa não tinha muitos móveis ou cômodos, apenas uma grande sala com diversos defeitos. A pia era como uma fazenda de fungos, onde as pilhas de pratos serviam de prédio aos mais variados bolores.
O braseiro não possuía combustível, o que significava que conversariam no escuro.
Blake deitou em seu colchão repleto de manchas. Não se importou em prover conforto a Vortius, pois não havia cadeiras ou qualquer outra mobília que fosse minimamente confortável.
— Pode ficar à vontade — Aproveitou a escuridão para tomar uma adaga que escondia embaixo do travesseiro. — E abre o jogo de uma vez. Você sabe que a Gwyn não tem muito tempo.
— Nós dois estamos com pressa. E eu já quero começar descartando a possibilidade de sua mãe ter alguma coisa a ver com isso.
— Ela era bem diferente das outras pessoas. Os cabelos, os olhos…
— Mas você não parece ter herdado nem os cabelos e nem os olhos dela. Sem contar que essa seria a pior opção possível. Se realmente sua linhagem for a causa da resistência, então todos os outros infectados estão perdidos.
— É… você tá certo. Tem que ser outra coisa!
— Também podemos descartar que seu encontro com o tal infectado do marechal tenha alguma coisa a ver com isso. Mas você comentou que teve um desmaio súbito no caminho para a capital.
— Sim, só que eu estava exausto e tinha perdido muito sangue. Não foi nada sobrenatural.
— Mas teve febre alta quando acordou, o que me leva a crer que a infecção te debilitou quase tanto quanto fez com a Gwyn. Mas, em algum momento da sua estadia na capital, você deve ter sido exposto a uma cura.
Teorizaram em silêncio por alguns segundos, até o padre retornar ao raciocínio:
— Tente se lembrar do que andou consumindo nos últimos dias.
— Eu comi e bebi exatamente as mesmas coisas que estão dando para a Gwyn. — Arthur se ergueu, irritado. — Merda!
— O que houve? Se lembrou de alguma coisa?!
— Não é isso… Você já deve ter percebido que eu coleciono problemas. E chegou num ponto em que é meio impossível pensar direito quando minha mente está sóbria — Coçou a cabeça, tentando aliviar a ansiedade. — Você trouxe algum dinheiro?
Vort arregalou os olhos.
— Seja sincero, Arthur… — Encarou o major, pronto para captar qualquer potencial mentira. — Você usou alguma droga desde que chegou à capital?
— Eu não vejo como isso seria importante para a… — Os pontos se ligaram em sua mente. — Você acha que esse seu Deus insano pode ter alguma fraqueza contra drogas?!
— Preciso saber de qual estamos falando. Ela por acaso é produzida em Thandriam?!
— Sim! Você sabe de mais alguma coisa, não é?
Vortius sorriu pela primeira vez em anos.
— Quando eles ainda confiavam em mim… Deus ordenou que um dos primeiros infectados, Bastien, viajasse até a sua terra natal. Seu objetivo era destruir todas as rotas de tráfico.
— Que filho da puta! É por isso que o preço triplicou nas últimas semanas. Se essa realmente for a cura… nós estamos fodidos! Não tem o suficiente para todos os cidadãos.
— E pior: eu sinto que você suprime a infecção até um ponto em que não é uma ameaça aos outros. Mas agora, se você parar o seu vício… você vai se transformar.
***
Passada a euforia de conseguir uma pista, Arthur invadiu a sala de Oriana, interrompendo suas anotações.
— Eu preciso saber uma coisa: o quanto você está disposta a pagar para salvar o mundo?
— Esse é o seu novo jeito de me pedir dinheiro?
— É questão de vida ou morte, dessa vez.
— Você sempre diz isso — a Chefe da Guarda sacou sua bolsa de moedas. — Depois sai daqui e vai sustentar o tráfico que mata seus colegas todos os dias.
Arthur engoliu seu orgulho e deixou que a irmã continuasse as provocações.
— Eu sei que as coisas não têm sido fáceis para você. E depois da reunião com o marechal, não preciso mais de provas para saber que lutou com demônios e viveu para contar a história — Contou cinco dezenas de moedas e entregou ao major. — Esse é o momento em que você tem que pagar as suas dívidas e ficar realmente sóbrio. Não gasta esse dinheiro em drogas, tá me ouvindo?! Você precisa recomeçar a sua vida para lutar ao meu lado quando a guerra começar.
— Essa guerra já começou. E pode ficar tranquila, maninha. Não vou gastar em drogas. — Sentiu prazer em mentir.
***
Enquanto aguardava o retorno do major, o padre focou em sentir a presença de seus semelhantes.
Havia doze deles, somente na cidade. E cerca de oito centenas amontoados na mesma mina decrépita, aguardando pelas ordens de sua líder, que detinha o aroma mais característico e exótico.
Lissandra e Deus possuíam o mesmo odor.
Uma junção de água salgada, flores murchas, carne decomposta e fezes de diversos animais. Era uma mistura que parecia feita para perturbar qualquer um que tivesse o olfato aguçado.
Vortius começou a tremer. Ela estava próxima. Buscava por ele, com toda a certeza.
Quase deu um grito quando Arthur tocou em seu ombro.
— O que deu em você?! Viu algum deles por aí?
— Não é isso… Mas nós temos que nos apressar.
Correram de volta ao Inferno, adentrando a zona do mercado negro.
O padre ficou recuado, enquanto o major abordou seu fornecedor usual, um obeso mal encarado.
— Eu quero cinquenta da erva.
O traficante descalçou uma de suas botas furadas e retirou a sacola com drogas variadas.
Olhou para o cliente, de forma provocativa.
— E cadê a sua namoradinha?
— Eu terminei com a sua mãe, ela não te contou?
Os viciados em volta gargalharam, calando qualquer retrucada que o criminoso poderia dar.
Arthur guardou as gomas em frascos e caminhou de volta para o aliado.
— Missão cumprida.
Blake notou em Vortius uma melancolia maior que o normal.
— Que cara é essa?
— Agora eu tenho certeza. Oito dos doze infectados da cidade estão neste mesmo beco que nós e todos eles estão suprimindo a doença. Você encontrou a cura.
— Isso não deveria ser um motivo de comemoração?
— Se fosse fácil assim. E o que você pretende fazer agora que sabe da cura?
— Eu tenho um contato direto com o marechal. Ele com certeza vai distribuir para todos que precisarem.
— Você está esquecendo algo crucial. Seu corpo não criou qualquer imunidade, Arthur. Esse remédio é o que está te mantendo vivo. Se a escassez aumentar, não vai demorar muito para essa sociedade entrar em colapso.
— E o que você pretende fazer?
— Eu vou embora. Se continuar aqui, além de não poder ajudar em nada, ainda vou estar correndo o risco de infectar outras pessoas. Sem contar que, mais cedo ou mais tarde, o próprio Deus virá atrás de mim.
Arthur percebeu que era o momento de resolver uma última ponta solta.
— Do jeito que esse mundo está na merda, é bem provável que não aja um terceiro encontro entre nós dois. — Sacou a adaga e ameaçou perfurar o estômago do padre. — É hora de você me contar o que aconteceu com o Griggs e o Niall.
Vortius segurou a mão do soldado e puxou contra si, deixando-o atravessar sua barriga. O ferimento não liberou uma única gota de sangue.
Blake não soube como reagir.
— Você é realmente um monstro.
— Eu sei muito bem disso. — Seus olhos brilharam, revelando nada além de tristeza. — E não faço ideia do paradeiro de Griggs. Ou ele foi devorado ou se tornou um devoto como os outros. Mas não precisa se preocupar com o Niall. — Deu um passo para trás, descravando a adaga e deixando o ferimento cicatrizar numa velocidade absurda. — Com exceção do fedor que Deus emana, seu tenente é quem tem o cheiro mais forte. É um potencial esmagador, sabia? Ele será nosso trunfo quando a hora chegar.