As Bestas de Brydenfall - Capítulo 26
A pele inchada de Grey borbulhava com o estalar de nervos e ossos.
Seus olhos negros já não denotavam qualquer sinal de consciência, até que exibiu suas fileiras de dentes ensanguentados, sorrindo como um predador frente à presa.
— Então não tem problema se eu me unir a ele?
Lucius saltou para trás e suas asas bateram até que pousasse no telhado de uma taverna.
— Nossos dias estão contados, príncipe Grey. Aproveite a liberdade como bem quiser.
Niall se ergueu com dificuldade.
O peso do novo corpo, com um par de braços amolecidos que nem mesmo sentia, tornava desafiador até mesmo o mais simples comando.
Abriu a boca para argumentar com o príncipe, mas não teve tempo de formular as palavras. O inimigo investiu com voracidade, deixando um rastro de saliva sob o ar gélido.
As pernas de Grey executaram tanto esforço que cada passo afundava no chão de ladrilhos, destruindo as pedras pelo caminho e formando um rastro de destruição.
Saltou contra o tenente, derrubando-o enquanto cravava suas presas no ombro encouraçado. Imobilizou dois dos quatro braços que o insectoide possuía.
Inúmeros dentes quebraram na primeira mordida, mas a carapaça também não resistiu. O devorador forçou ainda mais sua mandíbula, criando rachaduras extensas na armadura negra.
Sentiu a carne tenra por trás dela.
Niall se debateu até fazer seus braços sangrarem, mas não conseguiu resistir às garras do príncipe, firmes como as correntes de um calabouço.
Afastado do combate, Lucius observou luzes serpenteantes em uma rua paralela. Tochas, com toda certeza.
Os últimos guardas se aproximavam.
— Isso vai acabar mais rápido do que eu pensava.
Preso como um inseto em uma teia de aranha, o tenente lutava inutilmente pela sua liberdade.
Ouviu o som macabro da própria carne sendo mastigada.
Sentiu seu ombro esquerdo ser destruído por incontáveis perfurações que escavavam a pele, sorviam a gordura e quebravam os ossos.
Roendo a clavícula suculenta, Grey olhou novamente para Niall, analisando o que poderia herdar quando finalizasse a comunhão.
— Como você ficou assim? — As palavras vinham com dificuldade, enquanto saboreava a medula do osso. — Andou comendo besouros?
— Por que partir para o diálogo agora?!
— Meu próximo alvo… — Cuspiu a clavícula para longe. — É a sua garganta. Não vamos conseguir conversar depois disso.
Niall soltou uma risada rouca, já sem forças.
— Você não parecia um assassino da última vez que nos vimos. Eles conseguiram te mudar definitivamente, não é?
— Eu não matei ninguém. Ele não te contou o que acontece quando nos unimos aos fracos?
— Se com “Ele” você quer dizer aquela voz irritante, então não. Acho que acabou percebendo que não ia mudar nada. Um assassinato sempre vai ser apenas isso. Não importa que palavras ou motivos bonitos ajam por trás de todo esse sangue!
— É uma pena que tenha a mente tão fechada. Suas respostas não me agradaram nem um pouco. — Forçou ainda mais as garras, pronto para o golpe final. — Você nem é mais uma pessoa. É só um inseto ferido esperando por misericórdia. Sendo ou não assassinato, eu não vou sentir nada quando isso acabar.
O tenente tentou mover os novos braços, mas não exerceu mais do que espasmos. Estava sendo entorpecido pelo cheiro da saliva do príncipe.
O cheiro viciante de sangue.
Grey abocanhou a garganta de Niall e forçou seus dentes uma última vez contra a couraça.
Vesper percebeu que morreria como um inútil.
Fugiu quando foram atacados na floresta do Porto. Baixou a guarda quando confiou em um traidor. Reuniu informações cruciais sobre os inimigos, mas somente para servir de alimento a um genocida enrustido.
Seu interior ferveu como uma fornalha.
Quando abriu a boca para gritar um último insulto contra os fanáticos, não saíram palavras de sua garganta. Expeliu contra os olhos de Grey uma rajada do que pensava ser saliva, mas não era.
As garras que o prendiam no chão se afrouxaram na mesma hora.
Gritando em agonia, o traidor tentou limpar o veneno que derretia seus olhos.
Niall não conteria mais a fome. Percebeu que havia males que vinham para o bem.
Dezenas de tochas iluminaram a rua em que estavam, quando Lucius saltou para os ares.
— Eles chegaram.
Enquanto os dois infectados se trucidavam, o comandante voou contra o pelotão de soldados.
Fez crescer uma lança óssea, ejetando-a contra a cabeça de um cavaleiro que parecia liderar o grupo. O elmo foi atravessado e ele morreu com uma estaca entre os olhos.
Caiu sob os subordinados, abalando a moral de homens que nem mesmo sabiam contra o que estavam lutando.
Viram o monstro pousar atrás deles, recolhendo suas asas e adotando uma forma mais forte e imponente.
Seus braços eram largos, com músculos pulsantes e uma pelugem espessa de primata. Espinhos cresceram por toda a extensão de seu corpo, prontos para serem lançados em quem tivesse coragem de se aproximar.
Os olhos do infectado arderam no momento em que gerou dois chifres de touro.
Lucius tinha todas as armas que precisava. Seu corpo era um quadro em branco, que poderia ser sempre alterado.
Enquanto os soldados gritavam sendo massacrados pelo comandante, seus dois prisioneiros lutavam para saber quem seria o canibal e quem seria a carne.
Os olhos de Grey se tornaram cascatas de sangue e ácido, após serem atingidos pela cusparada. Desferiu dois golpes cegos, tentando reencontrar o oponente.
O inseto atacou o tubarão pelas costas.
Niall firmou seus braços contra o pescoço do príncipe, em uma técnica de estrangulamento sem brechas. Sua carapaça resistiu às garras da vítima, recebendo apenas arranhões superficiais.
Enquanto matava pela primeira vez, Vesper sentiu mais do que espasmos em seus novos membros. Eles tremeram e se ergueram, enquanto o infectado se acostumava com a sensação perturbadora de controlar quatro braços.
— Obrigado, príncipe Brydenfall. Eu poderia estar me sentindo culpado pelo que estou fazendo… Mas foi como você disse: nós não somos mais pessoas. Não vou sentir nada quando isso acabar.
— Por… fa… vor…
Foi o máximo que o tenente teve paciência de ouvir.
Enquanto ainda usava dois de seus braços para asfixiar o traidor, ergueu os novos para acelerar o abate.
Afundou seus dedos contra os olhos corroídos do devorador, cravando-os até sentir as córneas.
Atravessou ambas, perfurando ainda mais.
Grey não conseguia mais falar ou gritar, apenas grunhir enquanto os últimos resquícios de ar abandonavam seus pulmões.
O tenente tentou alcançar o cérebro da criatura, mas quanto mais escavava, mais difícil se tornava o desafio.
— Que se foda!
Desistiu da técnica, forçando as mãos em duas direções opostas, estourando o rosto do príncipe e o partindo ao meio.
Não esperou que o corpo tombasse ao chão para começar o banquete.
Descobriu que o cérebro de uma pessoa tem um gosto suave, quase como de manteiga fresca. Os ossos eram insossos, mas a textura crocante compensava a falta de tempero. A gordura e os músculos praticamente derretiam na boca…
Niall foi atingido por um chute no estômago, sendo arremessado para longe do falecido Grey.
— Já chega! — Lucius havia finalizado os vinte soldados e estava de volta, encharcado no líquido vermelho que mais amava.
O tenente se contorceu no chão, sem sentir qualquer dor. No lugar dela, foi tomado por um formigamento prazeroso no ombro devorado.
Suas células se replicavam através da comunhão com a vítima.
— Eu não entendo… Você não disse algo sobre aproveitar a liberdade enquanto ainda dava tempo?
— Exatamente. E como toda ação tem uma consequência, você vem comigo agora. É tarde demais para voltar atrás.
Os braços monstruosos de Lucius não deram chance para Niall recusar o convite.
Foi arrastado em direção ao banho de sangue no fim da rua, onde montanhas de corpos desmembrados esperavam para serem consumidas.
No horizonte, o Sol já estava para nascer.
Entre os cadáveres de seus colegas, Niall foi obrigado a se prostrar. O comandante já estava sem paciência.
— Agora você sabe, não é? Quanta sorte nós temos por podermos experimentar esse prazer. Tanto dessa união enlouquecedora quanto da força sobre-humana. Não pertencemos mais à escória chamada Humanidade! Isso não é ótimo?
Niall se recusou a responder, mas também não iria resistir. Teria de mudar sua estratégia, se quisesse continuar vivo.
Seria agora um lobo entre os cordeiros de Deus.
***
O dia amanheceu silencioso em Daggerden.
Nem mesmo os pássaros cantaram na região que já não tinha mais humanos ou cadáveres, apenas poças de sangue e marcas de luta.
As plantações permaneceram intocadas, agora servindo de lar para a peste divina. Todos que se alimentassem das colheitas se tornariam devotos.
Depois de cumprida a missão, Cael obrigou que Corven retornasse à carruagem. Sentia-se orgulhoso pelo que seu escravo fizera. Nem mesmo os idosos e as mulheres foram poupados.
Niall e Lucius voltaram em silêncio, ambos maquinando seus próprios planos para o futuro. O comandante carregava o corpo do único que havia fracassado na provação.
Quando os dois prisioneiros entraram na carruagem das bestas, o veículo partiu tendo Cael como condutor, deixando Lucius para trás.
O comandante permaneceu com Grey em seus braços, enojado com o odor de peixe apodrecendo.
— Faça o que quiser com ele. — Soltou o cadáver decapitado, quando sentiu a presença de Deus.
Lissandra surgiu pela mata densa, sendo acompanhada por centenas de ratos, lacraias, baratas e vermes infectados.
Quando seus olhos começaram a brilhar, ela abriu os braços para o fracassado da missão.
O príncipe reagiu à mulher.
Seus músculos exerceram um último esforço para erguerem o corpo. Lentamente, passo a passo, o morto caminhou até o abraço derradeiro.
— Por mais que ele tenha compreendido a nossa vontade, acabou voltando à estaca zero. Nós não vamos esquecer que você foi responsável por isso, Lucius.
— Eu não fiz nada!
— Exatamente. — Ela abraçou Grey, sentindo cada parte do seu corpo.
— Esse pedaço de lixo morreu mais rápido do que eu pude agir. Será que não foi você que se enganou sobre o príncipe?
— Se você soubesse as coisas que nosso Brydenfall ainda vai fazer… — Inspirou o aroma repulsivo do cadáver. — Desejaria que ele estivesse realmente morto.
Grey estava sendo absorvido pelo abraço. Sua pele, músculos e até mesmo os ossos derreteram e foram sendo drenados por cada poro da mulher.
Estavam se tornando um só.
Lucius virou as costas, gerando as asas e preparando-se para partir.
— Eu não tenho medo de você.
— Porque não sou eu que você precisa temer. Você sabe que um deles ainda vai ofuscar o seu brilho, criança.
O comandante partiu com rapidez, sem retrucar.
Concentrou-se no ódio que fervilhava a cada encontro com Lissandra. Agora que se aproximavam do clímax da guerra, usaria esse sentimento ao seu favor.