As Bestas de Brydenfall - Capítulo 28
Parte 3: Eclosão
Deus e seus pastores expandem o rebanho dos famintos, preparando-se para a tomada de Brydenfall.
Em desespero, o exército de hereges planeja seu contra-ataque, na esperança de vencer um inimigo incompreensível.
A união do mundo está para começar.
Maximus Brydenfall já foi declarado como o maior dos cavaleiros. E ele acreditava firmemente nessa mentira.
Aproveitava o gosto de cada vitória, sem saber quantos se sacrificavam para que sua armadura permanecesse intocada, batalha por batalha.
Mas nem todos os soldados do mundo conseguiriam afastá-lo da verdade. O rei era um homem medroso e previsível.
Antes do Cataclisma, ele dominava milhares. Após o desastre, percebeu que era um alvo de Deus.
Correu em direção às muralhas, sendo perseguido por um membro da guarda real.
O perseguidor jazia tomado pela confusão, enquanto sua majestade queria gritar por socorro, mas sabia que ninguém o salvaria.
Todos poderiam ser o inimigo.
Tentou escapar pela Cidade Alta, mas havia muitos guardas. Muitos suspeitos.
Desceu uma longa escadaria até chegar ao Inferno. Uma zona hostil que mal conhecia, tendo passado por ela apenas em carruagens escoltadas para agradar a plebe suja.
Entrou em um beco sem saída e virou-se para o guarda de armadura dourada e capa vermelha. A espada do homem ainda estava embainhada, mas isso não amenizou o desespero do rei.
— NÃO SE APROXIME! — Puxou uma adaga ornamentada, que mal cortava pão. — É UMA ORDEM!
Sem fôlego, o guarda estacou.
— Alteza, por favor… o que está acontecendo?!
— Eu não vou morrer aqui. — Maximus começou a contornar o soldado. A adaga tremia em sua mão frágil. — Esse reino ainda precisa de mim!
E voltou a fugir.
***
Dezenas de tropas foram enviadas para todos os pontos civilizados de Brydenfall. O rei permaneceu foragido, sem deixar qualquer vestígio. Seu guarda real acabou preso por traição, ao deixar que Maximus escapasse de seu dever.
Alguns nobres já o acusavam de assassinato.
O reino estava em crise e a maioria de seu povo mal sabia o que se passava. Não foram avisados da praga e muito menos da fuga inusitada de seu soberano.
Cinco dias após a fuga do rei, Oriana foi encarregada de tomar as rédeas.
Sua mãe visitou seus aposentos enquanto ainda dormia. A princesa acordou com o aroma de chá e pão fresco. A janela de seu quarto estava aberta, deixando entrar uma brisa morna e aconchegante.
Nyxia ofereceu-a uma xícara antes que pudesse se levantar.
— Bom dia, meu bebê.
— Como você entrou aqui?!
— Eu tenho todas as chaves dessa torre. De que outro modo eu poderia protegê-los?
— E consegue me proteger do que vai acontecer hoje?
A rainha segurou o rosto da filha, virando-o para que pudesse vê-la no fundo dos olhos, sem desvios.
— Você ainda parece uma criança. Se eu tomar as suas obrigações, o que será de você caso seu pai seja encontrado morto? O povo só te conhece como uma militar.
A princesa tomou um gole do chá e começou a tossir. Era amargo e azedo, mesmo sendo insosso. Ele havia abaixado sua guarda e esquecido que sua mãe desdenhava de qualquer atividade tranquila.
Fazia chá apenas quando queria tirar uma careta de alguém. Cozinhava somente ao ver que o rei merecia uma indigestão. Seus dons não eram voltados para a tranquilidade.
Serviam todos para um único propósito: proteger a integridade do reino, matando todos que entrarem no caminho.
Nyxia gargalhou da filha até seus pulmões esvaziarem. Apoiou-se em uma estante, tentando manter o equilíbrio.
— Vamos, admita… você precisava de um pouquinho mais de leveza no seu dia.
Oriana lutou para manter a compostura e não xingar a própria mãe.
— E isso deixou o dia leve para quem?! Sua bruxa velha…
Os olhos verdes da rainha passaram a refletir a Cidade Alta, repleta de mercadores, templos, bibliotecas, escolas.
Olhava para o futuro e o passado do reino.
E para os órgãos que mantém uma nação viva, sempre em crescimento, longe de qualquer decadência… Até agora.
— O povo de um domínio pode levá-lo à ruína, se bem manipulado. Nossos inimigos, ao que tudo indica, podem transformar os enfermos em armas. Mesmo assim, eu não posso aceitar que o exército sacrifique inocentes. Esse sempre foi o objetivo de um soberano: proteger as pessoas que confiam nele. É como a humanidade conseguiu sobreviver no topo, até hoje. Confiando nos fortes e protegendo os fracos.
— Tem certeza de que nós ainda estamos no topo? — Ergueu-se da cama, preparando-se para vestir a armadura. — Ou que alguma vez estivemos?
— Não é hora de perder a cabeça.
— Nem todo mundo consegue ser tão otimista quanto você. É provável que meu pai tenha descoberto o mesmo que Arthur. O inimigo pretende nos destruir de dentro para fora.
— E quando essa crise interna começar, a nação precisa estar preparada.
— A Vila Daggerden se foi. Nós não temos suprimentos para o inverno e você fala como se a crise ainda não estivesse aqui?! Brydenfall já está caindo aos pedaços…
Nyxia fechou a manopla de aço e desferiu um soco contra o estômago da filha.
— Já chega disso! Um reino acabado não precisa de uma nova rainha que desespere o povo. O seu realismo não nos trará benefício algum, está me ouvindo? Nós precisamos de alguém idealista, nem que você precise fingir. O dia de hoje vai ajudar a moldar esse seu caráter. — Caminhou até a saída do quarto. — Agora trate de amadurecer e venha!
***
Até a plebe do Inferno foi convocada para o discurso de Oriana. Uma multidão se aglomerava em volta da Torre Real, todos prontos para ouvir e disseminar o anúncio da princesa.
Em uma varanda do segundo andar, a nobre surgiu diante do povo. Não conseguira esconder a feição abatida e as olheiras.
— Filhos de Brydenfall… agradeço por virem hoje. Gostaria de anunciar que nossa guerra com Wymeia está para se encerrar! Enviamos hoje um pedido de trégua.
A multidão reagiu de forma unânime. Todos ficaram perplexos.
— Eu pretendo esclarecer algumas de suas dúvidas. Vocês já sabem que os portões da capital foram selados e não haverá partidas sem permissões. — Notou que o terror se espalhava entre os ouvintes. — Nós não perdemos a batalha contra o Imperador! Nossa nação não está interrompendo a guerra pelo medo da derrota. O objetivo do marechal é unir forças com todos os reinos, contra um inimigo em comum.
Dezenas de cochichos começaram a ressoar. Grupos de incrédulos se perguntavam onde diabos estava o rei para confirmar as loucuras de sua filha.
— O Porto de Carvalho e a Vila Daggerden foram assolados por uma praga mortal. Perdemos o Cavaleiro da Paz e nossa rota de suprimentos.
Tentou continuar a falar, mas o caos se instaurou entre o povo.
As pessoas entenderam rapidamente o que significava a queda do Porto e da Vila. Crianças começaram a chorar, enquanto seus pais confrontavam guardas que não sabiam o que fazer.
Alguns deles estavam ouvindo as notícias pela primeira vez e ficaram tão furiosos quanto a plebe.
Não demorou muito até que membros do exército também se unissem à revolta, sentindo-se enganados.
— Por que não disseram isso antes?! — gritou um dos sargentos próximo ao Portão da Torre.
— O que mais vocês estão escondendo?! — uma mercadora complementou.
Oriana se encheu de coragem para prosseguir. Quando abriu a boca, sentiu um braço leve repousar em seu ombro.
Entrou em choque, sem compreender o que seus olhos lhe mostravam: o rei Maximus surgiu na sacada, ao lado de sua filha.
Trajava sua lendária armadura ornamentada que o povo não via há mais de uma década. Suas intrincadas joias como rubis e safiras reluziam ao sol da manhã, provendo-lhe uma aura radiante.
Levantou os braços para sua população, sorrindo como um pai caridoso. Todos se calaram quando sua voz surgiu enérgica.
— Meu povo! Estamos diante de uma peste catastrófica, como sua princesa lhes advertiu. Este desastre é novidade até mesmo para nós, eu garanto. E se espalhou numa velocidade nunca antes vista. Eu sinto em dizer que o adversário é mais perigoso do que qualquer exército já enfrentado!
Ninguém entendeu por que o rei dava as notícias com tanta empolgação. Ele não parava de sorrir.
— Mas nós já recuperamos o controle! Sabemos quem está por trás de todo esse esquema. Eles querem nos derrubar, para depois atacarem Thandriam e Wymeia! Fazem isso porque sabem que somos os mais fortes! E NÓS REALMENTE SOMOS!
Alguns dos soldados — com os nervos à flor da pele — urraram de ansiedade, sendo contagiados pelo ânimo do rei.
Sabiam que estava para vir uma guerra diferente de todas as outras.
— Nossa capital, a Cidade Intrespassável, continuará fazendo jus ao seu nome! Neverfall nunca cairá! E essa peste não passará de nossas muralhas, eu prometo.
Incrédula, Oriana ainda tentava compreender como seu pai havia surgido do nada. Sentia-se vítima de uma piada sem graça.
— O que aconteceu com você? — sussurrou, sendo ignorada.
— NÓS CONTINUAREMOS SENDO A MAIOR NAÇÃO! E com a ajuda de nossos vizinhos, formaremos o maior exército que este mundo já viu.
Entre a multidão, Arthur estava tão atônito quanto a princesa. De onde o rei surgiu?
— Vamos estabelecer novas divisões do exército, novas armas, novas táticas…
Correndo pelas escadarias, Nyxia se aproximava do segundo andar. Precisava ver para crer que Maximus estava de volta. Como ele entrara na Torre Real sem ser visto?
— Fortalezas serão erguidas. Teremos mais hospitais para comportar os doentes, sendo que os médicos não descansarão até encontrar uma cura!
O marechal Orion viu seus soldados serem dominados por uma confiança que poderia ser letal. Como Maximus pôde elaborar um discurso tão perigoso e ingênuo?
Só pôde ouvir em silêncio, enquanto o velho continuava:
— Brydenfall nunca deixará de ser a maior. Como representante de cada um de vocês, eu prometo…
Todos os membros do Conselho Real perceberam que estavam perdendo o controle da situação.
— Haverá união e paz! Nós passaremos por essa calamidade juntos. E nossas vidas… estarão protegidas por Deus.
O rei havia retornado.