As Bestas de Brydenfall - Capítulo 29
Nas entranhas de Brydenfall, por entre túneis rochosos e galerias inundadas, as bestas se preparavam para a próxima chacina.
Já na superfície, Cael desceu de sua carruagem, admirando uma vila de casebres destruídos pelo tempo, todos tomados por fungos e cupins.
A garoa fina banhou os monstros, elevando o cheiro azedo da praga.
— Sejam todos bem-vindos ao vilarejo de Blake. Em pensar que vocês do exército seriam burros o suficiente para abandonar um lugar tão útil. Perfeito para comportar nossas tropas. — Flexionou os joelhos e saltou para o topo de um telhado, onde pôde ver as centenas de infectados. — Agora podem ficar à vontade.
Niall, mesmo cercado pelos cavalos pustulentos, achou que seria o momento mais oportuno para abordar Corven.
O antigo capitão, agora uma besta vampírica, estava recolhido em um canto da carruagem, trêmulo, com seus olhos brilhantes e sangue seco ao redor da boca.
— Corven… esse realmente é você?
Lágrimas de sangue verteram pela face de Skar.
Suas bochechas começaram a rasgar e se dividir, evidenciando um novo par de pálpebras, que se abriram para revelar olhos leitosos.
Seu corpo já mudava novamente, e ele não dera qualquer confirmação, resposta ou reação à pergunta de Niall.
O tenente não precisou de nada disso para ter sua certeza de que era o amigo. Quebrado por dentro e desfigurado por fora, como ele próprio.
Ambos dividiam o mesmo tormento, mas reagiam de formas diferentes.
Corven perdera a vontade de viver, mas não tinha forças para morrer quando bem quisesse. Passou a existir apenas.
Niall agora detinha o controle de seus quatro braços, e sentia a barriga fervilhar com um veneno ácido. Por mais deprimido que estivesse, não deixaria de lado essas novas forças.
Só conseguia pensar na vingança.
***
Tristam, o arqueiro que atingira a cabeça de Grey e acabou poupado, um dia achou que poderia ser comandante.
Treinara a vida toda para o momento em que humilharia tropas wymeicas e teria suas habilidades reconhecidas por todos.
Agora sem flechas, tendo seu corpo obrigado a caminhar por uma vila decrépita, percebeu o quanto seu sonho era ridículo.
Rodeado por aberrações que remetiam a uma amálgama doentia de humanos com crocodilos, ursos, cervos e até mariposas, Tristam se arrependeu de não ter aproveitado a vida.
Se passasse mais tempo com quem amava e menos com seu arco, talvez não estivesse carregando tantos arrependimentos.
Caiu de joelhos, sentindo o sangue escorrer por cada poro de seu corpo.
Sua mutação estava para começar.
Alheio ao renascimento do irmão, Cael vasculhava uma das casas, buscando por qualquer espécie de mofo que ainda não tivesse saboreado.
Sua atenção foi conquistada por Tristam, no momento em que o arqueiro começou a gritar.
— Será que ele vai dar sorte? — O infectado dos fungos caminhou para fora da casa, encontrando o soldado se contorcendo no chão de terra. — Vamos logo com isso!
Fez com que seus esporos invadissem o organismo do novo companheiro, se instalando no cérebro e acelerando o processo de transformação.
A boca de Tristam abriu bem mais do que deveria. Sua mandíbula quebrava enquanto a carne ia se rasgando.
Pensou que não suportaria mais a dor quando o novo bico lhe subiu a garganta, quebrando seus dentes e substituindo o maxilar.
O sangue em seus poros começou a escurecer, perdendo sua textura viscosa e adquirindo a forma de penas negras.
Não demorou muito para Cael estourar em um riso histérico.
— ELE HERDOU UMA GALINHA!
As outras bestas uivaram, coaxaram, latiram e riram das mais variadas formas, criando um coro animalesco que ressoava por quilômetros de distância.
Cael buscou pelo maior irmão que pudesse encontrar na vila. O fracasso de Tristam acabou lhe atiçando a fome.
Suspirou decepcionado ao encontrar o que procurava.
— Parece que Lucius não te tratou muito bem. — Seus fungos se alojaram no organismo do decapitado Sullyvan, que repousava abaixo de uma árvore morta. — Me empreste o seu corpo, por um instante.
Fez com que o gigante crustáceo investisse contra o galináceo, usando sua pinça para desmembrar o coitado que ainda nem conseguia se mexer.
Cortou em pedaços para que todos em seu rebanho de famintos obtivessem algo para enganar a fome.
De braços cruzados, Lucius surgiu voando acima de Cael. O bater de suas asas jogava toda a água da chuva contra o companheiro.
Sua face era pura decepção.
— Você não devia ter feito isso.
O infectado dos fungos fez uma mesura forçada, com um ar de deboche.
— Sinto muito, meu grande capitão. — Elevou seu dedo do meio contra o comandante das bestas. — É o que você gostaria que eu te respondesse? Nós somos iguais, não se esqueça disso. E pense duas vezes antes de me ameaçar.
— Eu não perderia meu tempo ameaçando alguém tão deplorável quanto você, que não é nada sem a ajuda dos outros. Lissandra é quem tirará a sua liberdade se continuar agindo assim.
Uma pena negra ensanguentada voou até Cael, que tratou de pegá-la. Lambeu o sangue pestilento que ela carregava.
— Mas é como dizem: o que os olhos não veem, o coração não sente. E afinal, onde Bastien foi parar?
— Ele está encarregado de organizar a nossa próxima batalha. — Lucius tremeu de ansiedade. — A que decidirá quando a capital irá cair.
***
Queimado pelo Sol escaldante, Vortius vagava pelas areias do deserto. Chegara na fronteira da região conhecida como Eleynora, onde o calor era contínuo e torturante.
Se caminhasse mais um pouco, chegaria até Thandriam, mas não importava o quanto corresse, Deus parecia cada vez mais perto.
O cheiro insuportável alertava que o encontro dos dois era iminente.
A fome já começava a drenar sua racionalidade. Não pretendia mais fugir e rezar para que desistissem de persegui-lo.
Passou a esperar pelo criador das bestas, ao pé de um desfiladeiro vermelho.
Pôde ver uma serpente se arrastar pela areia. Teve de prender a respiração para não perder o foco e devorar o animal. Quase deixou que um tentáculo lhe escapasse pelo tórax.
Uma voz feminina ecoou entre os paredões de arenito:
— Está ficando difícil de se controlar, não é mesmo?
Os olhos de Vort varreram todo o ambiente, mas não havia sinais de sua pior adversária.
— Mostre as caras de uma vez! Eu não vou ter sossego até morrer, não é mesmo?!
Pensou em gastar as últimas energias contra Lissandra, mas já era tarde demais.
Seu corpo não se movia.
Sentiu dois braços quentes e macios o envolvendo pelas costas. Ela lhe abraçava carinhosamente, com a suavidade de uma mãe.
As próximas palavras foram ditas a centímetros de seus ouvidos:
— Você precisa da minha ajuda. Sempre precisou.
Vortius lutou para conseguir controlar a própria voz. As veias saltavam em seu rosto, enquanto as cordas vocais lentamente voltaram a vibrar.
— Eu… sempre tive… medo de você. Desde antes de você aceitar… ESSE MONSTRO!
Cada palavra lhe causava dor.
Lissandra ficou corada, sorrindo como se tivesse recebido um elogio.
— Não acha que isso é um pouquinho injusto, meu amor? Existem muitas mães piores por aí.
— Quer saber o que eu acho?! — Vortius também sorriu. — Você devia olhar para cima antes de morrer.
No topo do desfiladeiro, doze soldados se ergueram por trás das rochas que usavam como cobertura. Os arcos e balestras já estavam carregados, mirando contra a família mais próxima de Deus.
Todos dispararam ao mesmo tempo.
E todos acertaram.