As Bestas de Brydenfall - Capítulo 31
O primeiro virote perfurou o olho esquerdo de Lissandra. Os disparos seguintes acertaram suas costas, pernas e também os braços que seguravam Vortius.
Se desvencilhando dos membros amolecidos, o filho recuou com rapidez. Viu sua mãe se reclinar para frente, dobrando a coluna, mas deixando os pés fixos no chão.
Sabia o que isso significava.
— Ela… — gaguejou. — ELA NÃO MORREU!!!
Já era tarde demais.
Doze braços surgiram pelas costas da infectada, rompendo parte do manto negro e se esticando trinta metros acima do corpo.
Quando chegaram ao topo do desfiladeiro, eram pouco mais do que membros esqueléticos. Alguns dos soldados paralisaram, enquanto outros correram por suas vidas.
Nenhum deles conseguiu impedir que um dos braços se agarrasse a alguma parte de suas armaduras. Começaram a ser puxados e arrastados para a morte certa.
Já de joelhos, Vortius se questionava quanta carne havia por trás daquele manto negro que cobria a preferida de Deus.
Quais eram os limites de sua imortalidade?
Observou calado enquanto os soldados despencavam um a um, com seus corpos sendo atravessados por pedras afiadas ou tendo as cabeças estouradas pelo impacto da queda.
Cada grito se calou, até que restasse apenas o sibilar do vento pelo deserto vermelho.
***
Antes do Cataclisma
A Vila Daggerden era um lugar de pluralidade. Sendo um território-chave de Brydenfall, graças às suas vastas plantações, atraía dezenas de trabalhadores todos os meses.
Eles tinham diferentes manias, ambições e segredos. E mesmo em uma vila com ideais tão miscigenados, havia o preconceito pelo desconhecido, pelo macabro, e por tudo que lhes parecia complicado de alguma forma.
Enquanto alguns poucos chamavam Lissandra de doutora, a maioria lhe enxergava como uma das bruxas mais horrendas que já existiu.
E embora soubesse os riscos que assumiria, ela não deixou que a repressão dos ignorantes entrasse no seu caminho.
O filho da doutora, quando criança, não conseguia compreender o que a movia de forma tão impetuosa. Ela sempre parecia estar com pressa, desde que seu pai fora vítima de uma das diversas pestes que se disseminavam por Daggerden.
Vortius nunca a via em casa. Pela manhã, encontrava sacolas com compras para que fizesse seu próprio almoço. Dormia sem ouvir uma única voz durante o dia inteiro.
A cabana em que morava, ilhado entre plantações de legumes, lhe permitia interagir somente com pássaros, lagartos e insetos.
Contemplava o ambiente durante a maior parte de seu tempo, tentando fazer com que os animais, as plantas e o ambiente preenchessem sua carência por companhia.
Nas raras ocasiões em que Lissandra e Vort se encontravam, ela sempre estava sorrindo, com olheiras profundas e um carinho de mãe coruja.
Lembrava-o de que devia estar sempre cuidando da casa, regando as hortas sem nunca abandonar o local que seu pai lutara tanto para conquistar.
Um dia, enquanto vagava pelos limites do terreno, Vortius pôde ouvir o grito de crianças.
Movido pela curiosidade, percebeu um grupo delas brincando de esconde-esconde em uma floresta de eucaliptos.
Foi o primeiro dia em que se lembra de ter chorado.
Imaginou como seria ter pais normais que lhe provessem conforto, sem bombardeá-lo diariamente com as responsabilidades da vida.
Durante a adolescência, tudo perdeu o sentido.
Já fazia mais de uma década que seguia as ordens de uma estranha, tentando honrar um homem que nunca conhecera.
Foi quando decidiu que sairia para brincar.
E assim o fez durante o dia inteiro, rindo enquanto corria atrás de garotos medrosos, que sempre se afastavam o chamando de bruxo e demônio.
Quando perdeu de vista os novos amigos, resolveu explorar os arredores. Não entraria na cidade, pois a infestação de pessoas lhe parecia sufocante e desconfortável.
No lugar disso, resolveu explorar outras fazendas, descobrindo esquilos, porcos e galinhas pela primeira vez. Seguiu pela trilha mais longa, que terminou em uma mata densa, composta por salgueiros escuros e pinheiros ancestrais.
A Floresta dos Apotecários, com toda a certeza. Sua mãe lhe dissera que, nas fronteiras da vila, havia o lugar em que ela trabalhava. Só nunca o informou o que fazia em um lugar tão fúnebre. Dizia apenas que estudava um jeito de salvar as pessoas.
Vortius sentiu que era hora de descobrir se ela estava mentindo.
Caminhou mata adentro, onde tropeçou em diversas raízes, foi perseguido por lacraias do tamanho de cobras e até cercado por um bando de micos que tentaram roubar suas chaves de casa.
Quando venceu todos os obstáculos, encontrou o que procurava.
Foi atraído por um som inconstante, que lembrava o canto de um pássaro noturno. Era, no mínimo, macabro. O som levava até uma cabana velha, muito parecida com a que morava.
As mesmas técnicas e estética, mas sem o mesmo cuidado, já que as janelas jaziam quebradas e a natureza vazava para dentro do recinto, dominando os móveis, o chão e as paredes.
Estava abandonada, mas Vortius tinha certeza que o barulho vinha de seu interior.
Quando saltou por uma das janelas, pensava que já conhecia tudo de ruim que o mundo tinha para oferecer.
Ter de cuidar do almoço, da janta, das plantas, da faxina, era tudo tão chato. Mas nada daquilo o preparou para o real problema do mundo. As regras absolutas que poderiam ou não ter sido forjadas por Deus.
Leis como a morte e o preço da vida. E também o custo de se fazer uma cura e salvar as pessoas.
As cobaias, os experimentos e todos os outros atos repulsivos que um ideal bondoso exige para ser alcançado.
Vortius não sabia o que era o verdadeiro desespero, quando encontrou um alçapão na cabana.
O som agora ganhava forma. Era um choro feminino.
Com a boca seca e um frio crescente, o jovem abriu a porta sem fazer barulho e começou a descer as escadas, entrando em um túnel iluminado por velas.
Poucos metros à frente, em sua sala de trabalho, Lissandra dissecava um cadáver enquanto se lamentava. Não aguentava mais o sono.
Acabou rompendo a artéria errada e fez sangue jorrar contra o seu rosto.
— Mãe… — Vortius caiu para trás, ao vê-la virar com os olhos arregalados e a feição de uma assassina.
Não demorou para que toda a raiva virasse tristeza e a mulher tombasse de bruços, soluçante.
— Uma hora ou outra isso ia acontecer, não é mesmo? E eu já estava prestes a desistir… — Quando ela fechou os olhos, teve de lutar contra a vontade de dormir. — Não importa o quanto eu tente, o resultado é sempre a mesma coisa. Eu vou perdê-lo assim como perdi seu pai!
Vortius não sabia o que responder. Olhou para cima e viu o corpo de um velho deitado na maca de operações.
Quando sua mãe começou a se levantar, ele já estava correndo. Subiu as escadas, pulou a janela e correu pela mata, sem olhar para trás.
Agora sabia por que o chamavam de bruxo e demônio.
O que ela faria com ele agora que sabia a verdade? Por que viveu todos os anos de sua vida isolado da sociedade, sendo proibido de ser visto?
Lissandra era realmente a sua mãe ou Vortius estava apenas sendo usado?
***
O adolescente a denunciou aos guardas, que encontraram a doutora dormindo no túnel subterrâneo. Também descobriram os corpos de quase vinte pessoas, quando investigaram os arredores do local.
Em seu julgamento, Lissandra disse que sacrificava os doentes para encontrar uma cura. Foi chamada de monstro tantas vezes que quase acreditou que estavam certos.
Sua sentença não foi a morte.
Decidiram que a mulher seguiria uma missão arriscada, junto a outros que perderam seu lugar em Brydenfall.
Foi forçada a viajar em uma caravela que planejava o impossível: navegar para além de qualquer mapa. Iriam a uma região de onde ninguém jamais pôde retornar.
***
Sem a presença de sua mãe, Vortius pôde envelhecer como desejava, por mais que sua cicatriz lhe impedisse de criar vínculos ou encontrar o amor. Tinha uma dificuldade absurda para acreditar nas pessoas e se aproximar delas.
Tudo mudou quando ouviu sobre Deus.
Alguns de seus devotos, notando que o homem agora sem-teto parecia desprovido de felicidade, decidiram que seriam seu apoio.
Deram-lhe comida, abrigo e ensinaram sobre como a bondade é o pilar principal para se criar uma comunidade saudável. Ouviu pela primeira vez uma frase que os padres repetiriam todos os dias: generosidade gera generosidade.
E se todos começassem a pregar por isso e serem gentis um com o outro, todos se sentiriam acolhidos como Vortius estava.
Parecia tão fácil e lógico.
Com esses ensinamentos, pôde se reerguer na vila. No início, as pessoas retribuíam sua generosidade com olhares de desconfiança ou fazendo piadas sobre possíveis bruxarias na região.
Após alguns anos, Vortius fez com que sua sede por redenção lhe trouxesse frutos. Os preconceitos dos aldeões foram sendo sobrepujados por todo o esforço do jovem em auxiliar nas colheitas, alimentar os desnutridos e abraçar os inconsoláveis.
Conheceu o amor e passou a viver com uma mulher doce que exaltava suas qualidades e o fazia suprimir os defeitos. Era uma vida confortável, do tipo que não dura muito tempo.
***
O dia estava frio, mas ensolarado. Nada no clima alertava sobre a tormenta que se aproximava.
A chuva trouxe ventos cortantes e relâmpagos por toda a parte. Junto à tempestade, uma sombra indesejada bateu na porta de Vort.
— Me disseram que você mora aqui agora, meu amor. — A voz de Lissandra fez com que a tempestade se acalmasse. — Eu finalmente encontrei a cura! Nós precisamos conversar.
Ela forçou a porta, mas estava trancada.
Ouviu passos do outro lado. O som da tranca. A maçaneta girou, mas não foi Vortius quem lhe recebeu. Era uma mulher linda, com um olhar odioso.
Carregava o cheiro de seu filho amado.
— Desculpa, mas eu acho que a senhora confundiu a casa.
Lissandra não respondeu. Quando um relâmpago estourou no horizonte, seus olhos brilharam como o fogo do inferno.