As Bestas de Brydenfall - Capítulo 33
Ao entrar na casa de Arthur, Gwyn teve de se conter para não começar uma discussão desnecessária:
— Você ignorou todas as minhas dicas de como arrumar esse seu covil, né?
Blake tropeçou em uma garrafa quebrada. O ambiente estava uma zona, como sempre.
— Pode parar de drama, por favor? Toda essa sujeira é estratégica.
— Realmente. Ninguém conseguiria ficar muito tempo nas proximidades desse chiqueiro. Então não precisamos nos preocupar com espiões.
— Tudo planejado, é claro. Agora vamos direto ao ponto.
A tenente fechou as janelas e se forçou para ignorar a tontura causada pelo cheiro forte de erva thandriana e comida estragada.
— Eu consegui fazer alguns dos guardas reais me contarem sobre os últimos dias do seu pai. A rainha também me falou algumas coisas, mas nada conclusivo. — Deixou que a frustração transparecesse no seu rosto. — Na verdade, por mais estranho que o rei esteja, ele parece lúcido como nunca foi.
— Essa frase não faz o menor sentido.
— Eu estou querendo dizer que ele não faz nada fora da rotina, está sempre cumprindo seus deveres. Continua indo às visitas ocasionais em lugares carentes ou passando horas na biblioteca real. E também não faltou uma única reunião.
— Mesmo assim, até aquela desequilibrada da Nyxia concorda que tem alguma coisa muito errada.
— Antes de sua fuga, que até hoje não foi bem explicada, seu pai parecia mais abatido a cada dia. E agora, sem mais nem menos, se tornou a pessoa mais confiante de Brydenfall.
— E ninguém no reino teria coragem ou permissão para interrogar o próprio rei… Droga! Então nós não temos nada de útil.
Arthur abandonou suas muletas em um canto cheio de papéis amassados. Não sentia mais dores nos membros que deveriam estar quebrados. Em algum momento, desde que chegou na capital e fez seus curativos, ele sentiu dor?
Essa indagação lhe fez suar frio. Suas pernas, antes esmagadas pelo lobisomem do Porto, tinham sido chatas nos primeiros dias de recuperação. Mas o incômodo era pelos curativos, não por qualquer dor. Isso não fazia sentido. Já havia quebrados alguns ossos antes e sabia que era um sofrimento constante, que durava meses.
Enquanto olhava as muletas, recordou-se da batalha contra Herion. A besta se movia com uma velocidade sobre-humana durante a maior parte do tempo, mas quando trocavam ataques, sua visão sempre exibia o alvo com uma lentidão sobrenatural.
Sua recuperação rápida e os instintos aguçados estariam ligados à praga ou ao antídoto dela?
Precisava se manter atento, agora mais do que nunca. Abriu seu armário de equipamentos e recolheu suas novas armas: um sabre e uma espada longa, jamais utilizados.
Estrearia-os em breve.
— Acho que estamos sendo manipulados.
***
Rastejando entre os seus, a entidade divina se acomodou na mais extensa galeria subterrânea. Ainda digeria o que restara de Vortius.
O fugitivo não é mais uma ameaça. Venham até mim.
Lucius e Cael receberam a mensagem de Deus e não a contestaram.
Os dois infectados primordiais adentraram a mina de enxofre, percorrendo o caminho que levava ao túnel mais profundo. Recobertos por um calor e umidade que se prendiam à pele e realçavam o cheiro da degradação, vagaram na expectativa de um novo objetivo.
A presença da entidade os guiou até uma vasta câmara desprovida de luz. Não precisavam enxergar para saber que chegara a hora de parar.
Ajoelharam-se contra as trevas.
Vocês serão meus generais, agora que Bastien concluirá seus propósitos.
Não ousaram falar na presença de Deus.
Nossas forças serão guiadas por generais que nunca enfrentaram nações, mas conseguem ouvir como ninguém. Saibam que a lei da guerra se baseia puramente no engano.
Suas mentes focaram em absorver todas as palavras. Sabiam que as informações seriam cruciais para que não terminassem como o filho de Lissandra.
Um general digno deve gerar situações formidáveis e tirar proveito de qualquer mísera vantagem. Deve fingir ser fraco quando puder matar e ser forte quando estiver enfraquecido.
Deus sabia tudo sobre a guerra. Não porque havia participado de muitas, mas porque obtivera a sabedoria de todos com quem se uniu até agora.
Sua coleção de memórias fazia dele um exército de estrategistas.
A invencibilidade estará na defesa. A vulnerabilidade no ataque. Apostem a vida de seus soldados com muito cuidado. E se as tropas inimigas estiverem ordenadas, façam de tudo para bagunçá-las. Se estiverem unidas, então tratem de semear a discórdia.
Cael se satisfez com as novas ordens. Não precisaria conter suas habilidades contra os frágeis humanos.
Permitam-se atacar o adversário somente quando estiver em desordem. E, para este fim, basta apenas estimular a arrogância simulando fraqueza. Não se esqueçam de usar iscas para atraírem suas presas.
Os dois infectados notaram passos nas trevas. Dezenas de criaturas das profundezas começaram a rir, chorar e gritar. Eram as novas bestas que haviam sido geradas.
Mesmo fazendo parte daquele exército, Lucius parecia descontente.
Cael também se decepcionou ao constatar que a luta seria fácil demais. O psicológico dos hereges seria devastado no momento em que vislumbrassem as novas tropas de Deus.
“Que golpe baixo.”
***
O Concelho de Brydenfall, com a ausência de Evan, formou-se ao redor de uma carta que receberam há poucas horas.
Seu material já havia sido analisado pelo Marechal e Oriana, surpreendendo ambos.
Maximus foi quem iniciou a reunião:
— O Imperador Kato está nos convidando a uma conferência em Faraborr.
Arthur não escondeu sua ignorância.
— E que lugar seria esse?
A princesa abriu um mapa para que todos analisassem o cenário.
— É um território de intersecção na fronteira. Basicamente ele está fazendo questão de nos encontrar nesse forte rodeado por Wymeia e Thandriam.
— Isso soa como uma armadilha. A carta não tinha mais nada de útil?
— O Imperador concordou que uma trégua era necessária. Disse que seu reino também se deparou com a praga, mas conseguiram contê-la.
Nyxia terminou de beber sua taça de vinho.
— Se isso for verdade, então seria uma chance de ganhar mais informações sobre o inimigo. Mas eu também não descarto que pode ser perigoso ir até lá.
Orion apresentou mais alguns documentos e relatórios para Maximus, constatando:
— Nosso povo não está reagindo bem às doses obrigatórias.
— Então proíba todos os cultos teístas da capital, por tempo indeterminado. Não podemos ter padres instaurando a dúvida em um momento como este.
Blake confrontou o pai:
— Mas não foi você que falou de Deus naquele seu discurso surpresa?
— Minha crença e a congregação de fanáticos não se misturam de forma alguma.
Orion os interrompeu.
— Se continuarmos nesse ritmo, logo as bestas estarão batendo à nossa porta. Acredito que devemos ir até o Forte Faraborr, levando a maior parte de nossas tropas. E também metade das gomas thandrianas do estoque, para serem usados em armamentos.
— Calma aí, Marechal! Se isso acontecer e nós perdermos, vamos estar jogando nossas vidas fora! E seria um desperdício total da erva… — Sofreu ao pensar em como ficaria sem sua droga favorita. — Mas afinal, o Imperador de Thandriam realmente ignorou todas as nossas cartas?
— Infelizmente, Blake, este é o caso: o mensageiro que enviamos até a cidade-fortaleza Mabushi não retornou até agora. E os arautos que rumaram às vilas Kashin e Yosai nos trouxeram péssimas notícias: os territórios fronteiriços de Thandriam se tornaram ruínas.
A porta da sala foi chutada por Evan, que jazia de braços ocupados.
Carregava inúmeros rolos de pergaminho, soltando-os pela mesa e desorganizando os relatórios de Orion.
— Foi mal o atraso, mas eu tive que vomitar antes de passar aqui. Acho que todos, exceto o viciado do Arthur, entendem o que eu quero dizer. Não sei como vocês ficaram resistentes tão rápido.
Oriana sentiu empatia pelo companheiro, pois seu estômago se revirava sempre que uma nova dose do antídoto se aproximava.
— Hollow… me diga que você conseguiu pesquisar o suficiente.
— Quer que eu minta para você, minha princesa? Eu estudei cada um dos documentos nos arquivos, mas não encontrei qualquer receita thandriana. O que nós sabemos é que fazem a droga com vários tipos de ervas, sendo que a maioria não é cultivada em Brydenfall.
— Só isso?
— Eu também interroguei alguns estrangeiros e eles disseram algo curioso: cada vila tinha sua receita da goma. Aparentemente eles conseguiam usar ingredientes diferentes e, mesmo assim, ter um efeito idêntico. Isso me leva a crer que as plantas são só para dar sabor.
— Então o óleo que envolve as ervas é que seria o antídoto?
— Isso não passa de uma teoria, mas é o que eu acredito. E essa gordura é extraída de alguma substância marinha. Tem um relatório na biblioteca sobre um pescador brydeniano que foi pago em barras de ouro por mercadores de Thandriam. Trocaram por uma “pequena bolha oleosa que boiava no mar”, com as palavras dele.
O nervosismo de Arthur só aumentava.
— Isso complica muito as coisas. Então esse cara pescou uma bolha de óleo que valia uma fortuna… e que pode ser produzida por um algum animal extinto ou fenômeno raro.
Com o fim das novidades, Oriana e Evan se retiraram para continuar suas tarefas — e vomitarem no banheiro da sala ao lado — permitindo que o restante do Concelho se concentrasse no convite de Kato.
O Marechal acreditava que Blake deveria liderar a vanguarda.
— Se a conferência for uma armadilha, precisamos terminar a batalha com rapidez. Caso contrário, as tropas desanimarão, os equipamentos vão desgastar e serão criadas intrigas entre os homens. Um confronto longo permitiria que as más influências do inimigo se manifestassem entre os soldados.
Nyxia emendou com um famoso ditado:
— Quem sabe usar as armas que tem, não convoca seu exército duas vezes.
— Precisamente. A habilidade suprema da guerra não está em ganhar cem ou mil batalhas, mas sim em vencer o adversário sem ter um único combate.
Arthur tomou um dos vários mapas.
— Então eu acho que nós precisamos estudar um pouco esse terreno do forte. E mesmo com toda a preparação, não tenho certeza se sobreviveríamos a uma armadilha daqueles monstros.
Orion não se deixou abater.
— Diante do inesperado, as pessoas podem fazer o impossível. Você percebeu isso em seu último confronto, não é mesmo?
— Realmente… Então o jeito é nós torcermos para um raio cair duas vezes no mesmo lugar.
Nyxia indagou o Marechal:
— Tem certeza que o bastardo vai dar conta de liderar um esquadrão tão importante?
— Ele divide um amor à vida bem equivalente ao de seus subordinados. São todos homicidas frios e ardilosos.
Arthur socou a mesa, contrariado.
— Ei! Vocês sabem que eu ainda tô aqui, né?!
Orion parecia se divertir enquanto recordava suas lições básicas sobre gestão de tropas.
— Lembre-se: você vai precisar adquirir o apoio de seu esquadrão sem o pedir. Conseguir a dedicação sem a exigir. A lealdade e confiança virão espontaneamente.
Nyxia se juntou ao velho companheiro, provendo mais conselhos valiosos:
— O comandante deve ganhar o respeito sem dar uma de bonzinho, porque seria a mesma coisa que se mostrar fraco.
— Sim! Um soldado bondoso só será bom em sofrer. Entretanto, você deve tratar seus soldados como filhos, assim como Griggs fazia com você, sempre lhe instruindo e pagando suas dívidas.
— Acho que captei a mensagem.
A Rainha exibiu um sorriso provocativo.
— No final, seu maior desafio será manter o pensamento de que seus homens não são mais do que cães de caça. Se vê-los como amigos de verdade, isso será a causa da sua morte. Espero que entenda isso.
Arthur se lembrou de Gwyn e decidiu que não seguiria esta regra, mas decidiu mentir:
— Eu farei o que for preciso.
Com a reunião encerrada, todos se ergueram. Orion pôs a mão no ombro de Blake e desferiu um último conselho:
— Saiba que eu também tenho dificuldades para lidar com a raiva. Todos aqui sabem que você quer vingança pelo que passou na última missão. Mas, diferente de uma nação arruinada por esses sentimentos egoístas, nós dois sempre teremos a chance de nos recuperar.
Os olhos do Marechal e do comandante passaram a compartilhar uma mesma fúria.
— Eu concordo, Marechal. Até dois ressentidos, como nós, podem superar isso um dia.
— Meus herdeiros… Brynevere e Grey… eles serão honrados, isso eu garanto! Assim como Griggs, Niall, Alastor, Corven e todos os outros que assombram suas memórias.
O Rei se juntou aos dois servos.
— Magnífico! Agora preparem suas tropas e conservem as energias. — Exibiu seus dentes amarelos em um largo sorriso. — Nós partiremos ao amanhecer.