As Bestas de Brydenfall - Capítulo 34
O exército de Brydenfall estava formado.
Marcharam pelos casarões da nobreza que se erguiam aos céus como torres de incontáveis andares. Ultrapassaram a Cidade Baixa e seus edifícios uniformes, todos idênticos e colados um ao outro, como se fizessem parte de uma mesma construção.
Aldeões dos bordéis, tavernas, estalagens e mercearias saíram para observar a comitiva do Rei, composta pelos cavaleiros prateados do Marechal Orion e os atiradores escarlates da Rainha Nyxia.
Os soldados partiram em suas carruagens, levando estoques de comida e equipamentos que poderiam durar meses. A retaguarda acompanhava armamentos de cerco, canhões, catapultas e os poucos explosivos que conseguiram fabricar em um tempo tão curto.
Estavam preparados para praticamente todo tipo de emboscada.
Saíram da costa acompanhando uma brisa gélida que anunciava a chuva. A viagem lhes permitiu observar uma Brydenfall rara, que só podia ser encontrada durante uma viagem para longe da capital.
Era um lugar sereno, com uma vasta vegetação rasteira que coloria com flores o terreno de planícies gramadas.
Uma fina garoa fez com que poucas conversas se formassem ao longo da viagem, deixando todos com um ar introspectivo, quase melancólico.
Ao raiar do sol já haviam deixado para trás os campos verdejantes de Neverfall, seguindo pela estrada que os levaria à Fortaleza Arthorius, um edifício monumental construído na base do Monte Drachma.
Para acessar a fortificação, o exército composto por trezentos e vinte homens teve de atravessar uma ponte de granito, erguida sob uma ravina profunda. Os portões de aço foram abertos ao Rei e sua comitiva.
Arthorius Hollow estava do outro lado dos portões, pronto para recepcioná-los.
Era um sujeito robusto e austero, que sorria apenas aos superiores. Comandava a fortaleza com punho de ferro, sendo — além de um general habilidoso — um pai extremamente abusivo para Evan, e responsável pela personalidade exótica do filho.
— SINTAM-SE EM CASA, MAS NÃO OUSEM BAGUNÇAR NADA, ESTÃO ME OUVINDO?! — O homem gritava a cada sílaba, evidenciando que estava ficando velho e surdo. — DIRIJAM-SE AOS QUARTÉIS OU DIVIRTAM-SE NOS BORDÉIS, PARA MIM POUCO IMPORTA! SÓ NÃO SE AVENTUREM PELAS BEIRADAS DA MURALHA, PRINCIPALMENTE NESSA CHUVA TRAIÇOEIRA!
Evan revirou os olhos. Já estava com vontade de ir embora.
Acompanhou Arthur e seu esquadrão de caça para o local mais reservado que se lembrava. Ultrapassaram um pátio infestado por mercadores querendo vender suas armaduras e armas surradas, além de guardas que protegiam cada viela e beco.
Fez questão de que se acomodassem em uma torre de teto abobadado, na muralha traseira da fortaleza. Um lugar próximo das hortas e rebanhos, onde os serviçais trabalhavam todos os dias.
Sabia que seu pai desprezava o lugar tanto quanto o fazia com seus servos mais pobres.
Entraram na torre fria e mal ventilada, cuja acústica deixava cada mísero som ecoar por toda a sua extensão.
Mas era uma troca justa, levando em conta que não teriam de ouvir a gritaria de Arthorius.
Evan abordou um grupo de serviçais que descansavam abaixo da muralha, protegidos da chuva.
— Ei, vocês! — Fez um gesto para que se aproximassem, e assim o fizeram. — Tragam cinco beliches e baús para a Torre da Lua, certo?
Entregou-lhes um saco com oitenta denaros, moedas de prata que, para alguém de seu calão, eram uma quantia insignificante.
Para um plebeu, significava duas semanas de comida farta.
Quando as mobílias chegaram, Hollow foi o primeiro a jogar suas bagagens em um baú. Deitou-se na cama sem nem tirar a armadura.
— Agora é contigo, “comandante”. — desferiu contra Arthur, antes de iniciar um cochilo.
Blake dispôs seus oito soldados lado a lado.
— Sentido! — Todos entraram na posição rígida, com as mãos espalmadas às coxas e pernas esticadas. — Nós somos a vanguarda de Brydenfall. Se uma eventual batalha acontecer amanhã, estaremos na linha de frente.
Os militares trajavam a máscara da peste e as armaduras recém-criadas, faltando apenas os explosivos de encaixe.
Arthur vestiu sua máscara.
— Nosso inimigo pode estar em todos os lugares. Lutaremos contra algo que nem mesmo conseguimos compreender por inteiro. Algo que se espalha como uma doença, tornando perigoso até mesmo o ar que respiramos.
Todos permaneceram estáticos. Não se deixaram que as informações os abalassem.
— Certo, parece que vocês são loucos ou não entenderam minhas palavras. De qualquer jeito, podem relaxar agora. — Desfez o gesto de continência e pediu que tirassem as máscaras.
Notou que Gwyn estava sorrindo. Ela admirava o lado responsável que Arthur estava adotando, sem soltar piadas ou desrespeitos.
Ele prosseguiu:
— Não quero que se apresentem à mim. Sei que são todos perturbados de alguma maneira, assim como eu.
O sorriso da tenente se desfez e todos ouviram um riso de Evan ecoar pela torre.
— Volte a dormir, seu miserável! — Arthur chutou a cama do subcomandante e se voltou aos soldados. — Vamos ao que interessa: todos aqui leram meus relatórios e sabem que eu e a tenente Vesper somos aqueles que viram os monstros em campo. Nós sabemos, melhor do que ninguém, que soldados de mente fraca não suportariam a vanguarda contra aqueles infectados.
Agora sem as máscaras, o comandante percebeu que nem todos os homens pareciam calmos. Um deles transbordava de ódio.
— Sendo assim, eu mesmo vou apresentá-los. Começando pelo coronel Connor Ahlen. Foi responsável pela evacuação de todos os brydenianos que residiam em Wymeia, quando a guerra foi declarada.
O coronel tentou se manter sério, mas a fúria lhe consumia.
Fechou os olhos e focou em causar uma boa impressão ao novo comandante.
Sua face era sisuda, tomada por uma barba negra. Mais alto que muitas portas pelas quais passara, fazia um par perfeito para a lança que carregava nas costas.
— Você não estaria aqui, nesse esquadrão suicida, se não fosse pelo acontecimento de duas semanas atrás. Para os que não sabem, o coronel e sua família moravam na Vila Daggerden. E sua terra natal foi massacrada enquanto ele visitava a capital.
Connor jazia tomado pela culpa. Queria apenas dar um novo sentido à sua existência fracassada.
— E temos outro membro que também perdeu tudo durante o ataque das bestas.
O coronel ficou surpreso ao ouvir as palavras de Blake. Finalmente reconheceu um dos companheiros, agora que estava sem a máscara.
— Capitão Adran Ascarioth é outro sobrevivente de Daggerden. E só está aqui entre nós porque aceitou a missão de escoltar uma caravana de mercadores. Quando retornou, foi o primeiro a descobrir o que havia acontecido.
Adran sorriu para seu antigo mestre, tentando fingir que não estava com o psicológico devastado.
Nas suas costas repousava um escudo pesado, o acompanhante da arma em sua cintura: um machado de guerra com duas lâminas.
Connor percebeu que o jovem era agora uma montanha de músculos, como ele mesmo fora há algumas décadas.
— “Capitão Adran”… quem diria.
— Tudo graças ao senhor.
Quando estavam prestes a se abraçar, Arthur pigarreou.
— Quero ouvir suas histórias assim que formos ao salão comunal para jantar. Antes disso, precisam conhecer seus novos irmãos e irmãs.
O comandante fitou a segunda mulher do grupo e acabou sendo acometido por um calafrio.
Percebeu que, se tratando de músculos, ela ficara muito mais forte do que ele. Não atoa, levava consigo uma espada bastarda que devia pesar mais de dez quilos.
Seu rosto era o mesmo de anos atrás.
Tentou afastar as memórias assustadoras que vinham à tona. Falhou. Sorriu sem graça ao olhar para os olhos azuis que o apaixonaram um dia. As tranças em seus cabelos castanhos permaneciam lindas como sempre foram.
— A coronel Petra Ryder foi subcomandante do Cavaleiro da Paz. Acredito que todos aqui já tenham ouvido falar da melhor discípula de Griggs. Além de ter se destacado em todas as batalhas que lutou, ela também salvou a vida de nosso comandante incontáveis vezes. Nós lutamos lado a lado contra o Gigante de Wymeia, aquele brutamonte nojento. — Percebeu que suas lembranças não a emocionaram de nenhuma forma. — E, se não fosse por ela, eu teria sido esmagado como um inseto. Não tenho vergonha de admitir isso.
Ao lado da coronel estavam seus três discípulos mais fiéis, que a seguiriam à morte, se necessário.
Um deles, apresentado por Arthur como Rodrik Wallace, era corpulento, com uma barba mal feita e cabelos desgrenhados. Portava um escudo de torre com mais de dois metros. Tinha espinhos na frente e na lateral do equipamento, para que servisse de arma ao mesmo tempo em que defendia sua mestra.
Era notável por ser o único guerreiro que usava apenas uma defesa robusta, sem qualquer arma adicional.
O segundo, sir Maximilian Beckett, era um clássico membro da nobreza.
Possuía cabelos curtos e loiros, além de um ar galanteador que evidenciava sua paixão pela coronel, que ia além do respeito. Quem o visse de longe, pensaria que não esteve perto de uma batalha sequer.
Poucos sabiam que o lanceiro já havia ceifado centenas de wymeicos, com uma sede de sangue que beirava a loucura.
Já o terceiro, Elric Balthazar, parecia ter menos de vinte anos. Era o mais jovem do esquadrão, com olhos vazios e diversos hematomas pelo corpo que ainda estava em fase de crescimento.
Foi mantido como prisioneiro por meses, quando soldados de Wymeia assassinaram seus pais e o usaram como refém. Por um motivo que Blake desconhecia até hoje, Petra decidiu adotá-lo como um de seus cavaleiros.
O comandante ficou sério ao analisar os três soldados.
— Espero que saibam onde estão se metendo. Se formos atacados, vocês não estarão lutando pela admiração de uma mulher. Vão arriscar suas vidas para que suas famílias não precisem fazer o mesmo.
Arthur foi intimidado quando o trio lhe atingiu com um olhar inquisidor.
Sabiam de seu relacionamento conturbado com a coronel? Será que o viam como um concorrente? O que diabos ela contou para eles?!
Limpou o suor e manteve a postura rígida, tentando afastar suas teorias internas. Sua visão repousou no último membro que restava apresentar.
— Sargento Kaji Yaketsu. Exilado de Thandriam após sua nação descobrir que vendia informações ao nosso amado Marechal. Já chegou ao exército com um alto posto, mas isso não levantou nenhuma polêmica na época. Imagino que seja pela sua habilidade invejável com essa espada aí.
Apontou para a lâmina exótica que o soldado levava na bainha. Era uma arma feita somente em Thandriam, conhecida como katana.
Fora da torre, os relâmpagos começaram a estourar junto a chuva torrencial.
— De uma forma ou de outra, todos aqui provaram suas forças quando foram postos em provação. Vocês sabem como resistir ao medo e ao desespero. Conhecem a dor da perda e da derrota. Assim como eu, vocês entenderam que a morte é apenas uma vírgula.
Sua voz se elevou acima do rugido tempestuoso da natureza.
— Em nossa primeira batalha, eu faço questão que vocês não se contenham! Quero que gritem, que explodam, que matem! Quando terminarmos isso, teremos salvado milhares de inocentes. Nossas vidas não terão sido em vão!
***
Nos pântanos de Brydenfall, centenas de infectados vagueavam em uma marcha lenta, longe das estradas e vilarejos.
Niall observou seres crocodilianos, com armaduras pesadas, rastejando na água como animais traiçoeiros. Outros, com aparências mais semelhantes a primatas, saltavam pelas árvores mortas.
Havia até mesmo aqueles que não se assemelhavam a animal algum. No lugar disso, suas carnes exibiam raízes nas pernas, folhas pelo corpo e até galhos em suas costas.
Viajaram por trilhas lamacentas que exalavam fogo fátuo. Algumas partes do brejo possuíam um ar tóxico que, para desavisados, parecia apenas uma névoa comum.
Sem qualquer parada, as bestas avançaram para as fronteiras. Não ligavam para os que saíam da formação. E ninguém se importou com os que morreram afogados em buracos, sufocados pelo nevoeiro ou enterrados em areia movediça.
Vesper sentia sua cabeça cada vez mais pesada. Seu estômago exigia carne fresca. Uma dor de cabeça pulsante também o alertava que era hora de se alimentar.
Perdeu o fôlego quando estavam no limiar entre o pântano e uma região montanhosa.
Quando se estabilizou, pôde perceber que havia perdido outra coisa: Corven.
Onde diabos ele se metera?
Seus olhos fizeram uma varredura rápida, mas só encontraram as mesmas aberrações grotescas, sem qualquer sinal de um morcego com quatro olhos.
Pôde ouvir o rugido de uma besta entre a multidão, seguido de um estrondo cuja vibração rompeu centenas de metros.
— E eu achando que não tinha como ficar melhor. — Encontrou o companheiro cercado por infectados famintos.