As Bestas de Brydenfall - Capítulo 35
As pessoas que Corven devorou ainda gritavam em seu interior.
Quando fechava os olhos, podia ver seus rostos atormentados o amaldiçoando. Tentou se concentrar em algo que não lhe despertasse a angústia.
Notou um aroma chamativo.
Saiu do pântano sem se importar com a chuva forte ou com o fato de que estava se afastando da marcha.
O ambiente era repleto de pequenos montes, paredões e colinas. Seus pés descalços pisaram em rochas pontiagudas e as quebraram como se fossem de areia.
Não excretava mais os alimentos, fazendo com que cada célula de suas presas fossem absorvidas de alguma forma. Era simplesmente perturbador quando percebia o quão grande estava se tornando.
Já havia ultrapassado os dois metros de altura, então não se intimidou quando percebeu a fonte do cheiro que o convidava.
Era o cadáver de um leão das montanhas.
Acima do corpo, um crocodilo repulsivo mastigava uma das patas que arrancou da presa. Cuspiu os ossos quando percebeu a aproximação indesejada.
Skar era maior do que o oponente.
— Não quer dividir?
A criatura urrou como resposta.
— Foi o que eu pensei.
Investiram um contra o outro.
O crocodiliano fechou sua mandíbula contra o braço esquerdo de Skar, enquanto era atingido por repetidos socos nos olhos negros.
Seus dentes começaram a quebrar os ossos do oponente, mas teve de soltar a mordida quando sentiu que seu rosto também não resistiria.
Corven flexionou os joelhos. Quando estava prestes a saltar em um bote e derrubar o adversário, sua luta foi interrompida por Niall.
A besta reptiliana urrou ainda mais alto quando um jato ácido lhe atingiu a face, derretendo suas escamas como se feitas de açúcar.
Vesper esperou que o aberrante tombasse ao chão para então enterrar seu pé contra o crânio deformado.
Após um estalar de ossos e miolos, a aberração foi livrada de seu sofrimento.
— Por que você me interrompeu? E de onde surgiu todo esse ácido?!
— Então você lembrou como é que se fala?
Corven percebeu que estavam cercados por outros aberrantes atraídos pelo cadáver.
— Acho que não é um bom momento para discutirmos isso.
— Não me diga.
Niall confrontou um infectado com presas de felino e uma pelugem dourada.
Sem a bênção da consciência e intelecto, a besta avançou com a guarda abaixada.
Vesper aterrissou seus quatro punhos contra as partes vitais da criatura. Fraturou costelas e fez dentes voarem, forçando o oponente a recuar.
Assistiu Corven se esquivar da arremetida de um homem-búfalo.
— Eu preciso saber de que lado você está!
Na segunda arremetida, o infectado foi atingido por um contra-ataque. Skar aplicou uma rasteira que lançou seu inimigo contra um paredão de rocha maciça, fazendo seus chifres quebrarem com o impacto.
— Precisa mesmo perguntar? — Lado a lado, se prepararam para os próximos alvos. — Parece que esse tempo sozinho te deixou mais confiante do que nunca, tenente.
— E eu nem estou mais te reconhecendo. Na última vez que tentei falar com você, parecia quebrado por dentro. Se olhou no espelho ou algo do tipo?
— Minha mente estava uma bagunça, para falar a verdade. Eu lembrei de muitas coisas nos últimos dias.
— Eu também senti minhas memórias sendo reviradas. Me lembrei de todas as vezes que fui fraco, como se algo quisesse me fazer desistir. Deve ser esse Deus que eles tanto adoram.
Eram doze bestas rodeando a dupla. Todas mantinham uma expressão voraz de quem atacaria na primeira chance, somente para ganhar um pedaço do leão caçado.
Mas nenhum deles atacou.
Todos estavam paralisados por esporos fúngicos. Seus corpos foram obrigados a abrir caminho para Cael, que seguiu sereno até Niall e Corven.
— Olha só! Vieram jantar escondidos… e não me chamaram!
Quando entraram em guarda, os dois sentiram suas dores de cabeça ficarem ainda mais intensas.
Foram forçados a se ajoelhar.
— Não se preocupem, eu não vim para brigar.
Pousou a mão contra o cadáver do crocodiliano. Os fungos saíram por seus poros e começaram a decompor o derrotado.
— Esse aqui parecia tão forte. Que pena. É um dos poucos que se uniu a algum animal interessante.
Deixou que os dois rebeldes controlassem suas cordas vocais.
— Querem conversar um pouco?
A pergunta enfureceu Niall.
— Conversar com você?! Eu nem entendo o que diabos vocês são! E todas as minhas perguntas são respondidas de forma tão vaga que eu sinto vontade de vomitar.
— Então vamos mudar isso. Me faça uma pergunta, meu querido insectoide.
— Eu quero saber por que a maioria de nós se parece com animais.
A palma de Cael foi contra a própria face, seguida de um suspiro de decepção.
— Têm certeza de que mantiveram suas consciências? Santa burrice! Vocês realmente não entenderam o que nós queremos dizer com “herdar uma criatura”?
Foi a vez de Corven responder:
— Se nós tivéssemos entendido, ele não estaria te perguntando, seu filho da puta!
O infectado dos fungos começou a rir.
— Tudo bem, já entendi. E você ganhou alguns pontos pela coragem, garoto. — Cael fez com que duas bestas felinas servissem de trono para si. — Eu vou dar uma de místico agora… e adivinhar o que nosso amigo Skar andou comendo antes de se aventurar no finado Porto de Carvalho.
Com seu jeito confuso e agitado, o infectado conquistou a atenção dos soldados.
— Diga-me, Corven… você andou comendo uma sopa de morcego por aí, não é mesmo? Aquelas exóticas de Neverfall, que vendem como iguaria no Inferno. — Sorriu quando percebeu que entenderam o seu ponto. — Acho que você devia ter comido a de crocodilo.
Os dois ficaram sem palavras, enquanto ele prosseguia.
— Nós somos o que comemos. Não é essa a frase?
Vesper não estava satisfeito.
— Não pode ser só isso. Eu tenho certeza absoluta de que não comi nenhum besouro, nem nos últimos dias e nem nunca!
— Isso é porque você é um erro ambulante. Um dos nossos companheiros recebeu a essência mais pura de Deus. Uma parte de seu corpo, contendo bem mais do que apenas uma herança.
Cael não tentou esconder seu descontentamento quanto à escolha de Vort.
— Ele deveria usar esse poder para encontrar alguém que quisesse salvar o mundo, como nós. E que fosse tão forte quanto Lucius. Mas, no fim… ele escolheu um simples soldado, por pena de matá-lo.
Deixou que os dois recuperassem o controle dos corpos. Niall se ergueu imediatamente.
— E onde está o Vortius? Eu faço questão de agradecê-lo por isso!
— Infelizmente sua vingança já não é mais possível. — Percebeu que seus fungos já haviam transformado o crocodiliano em um mero esqueleto. — Não faz sentido nós mantermos traidores conosco. Se vocês pensam que estão no controle da situação, então eu tenho pena de ambos.
Acompanhado por seus novos guarda-costas, virou as costas para os soldados e retornou à marcha, deixando uma última provocação no ar:
— Caso não morram na próxima batalha, eu prometo que conto tudo o que quiserem saber. Considerem Faraborr como o cenário final de suas provações. Ou… o momento perfeito para nos trair.