As Bestas de Brydenfall - Capítulo 36
Copos quebrando, soldados desnorteados; o desastre havia se instaurado no salão comunal de Arthorius.
No meio de todo o caos gerado por mais de quinhentos militares sob o uso de entorpecentes, Gwyn e Arthur se reuniram em um canto afastado.
O comandante estava sereno, contrastando com o receio que a atiradora exalava.
— Esses caras não vão durar muito tempo no campo de batalha.
— Alguns nunca vão se acostumar com essa erva que você ama tanto. Eu mesma ainda tenho dificuldade para aguentar a náusea.
— Mas eu não sou o único que está tranquilo.
Olharam para o Rei Maximus, que jazia acima de todos os outros no salão.
Sentado em um trono dourado, o velho redigia assiduamente uma carta, relatando sua jornada atual.
— Para alguém tão careta quanto o meu pai, é realmente preocupante que consiga até escrever. Aliás, seu contato te contou alguma novidade?
Gwyn fitou um dos guardas reais ao lado do trono.
— Nada de interessante. Disse que o Rei parece mais solícito do que nunca.
— Não tem nenhum momento em que ele esteja desacompanhado?
— Só quando vai ao banheiro.
Arthur apertou o cabo de seu sabre. Sua serenidade se esvaiu.
— Essa tranquilidade dele me dá nos nervos. Você também está sentindo algo estranho, desde que começamos essa viagem?
— Eu sinto como se estivéssemos indo em direção a um abatedouro.
— E não tem nada que nós possamos fazer para mudar isso. Se tentarmos impedir, vamos ser expulsos e virar apenas espectadores do apocalipse. A palavra dele vai ser sempre absoluta, para esses fantoches.
Enquanto tentava se acalmar novamente, percebeu que nem todos os soldados estavam sofrendo.
Connor e Adran pareciam se divertir com seu reencontro inesperado. Dividiam um jarro de vinho enquanto relembravam o passado.
O coronel serviu mais uma taça ao antigo discípulo.
— Se lembra de quando você fugiu do seu turno de vigília para visitar um bordel meia-boca? Só por causa de uma paixão efêmera…
— Não tem como esquecer disso, mestre. Duas fazendas pegaram fogo só porque a ventania derrubou uma maldita tocha. E obviamente a culpa veio toda para mim.
Os dois se forçaram a rir, fingindo que não era doloroso se lembrar do passado. A impressão era de que não valorizaram a vila enquanto podiam.
— E o senhor me trancou por três dias na prisão, com assassinos e traficantes. Sendo que alguns deles fui eu mesmo quem prendeu lá.
— Mas você já parecia um homem de verdade, quando saiu.
— Foram os piores momentos da minha vida.
Um silêncio constrangedor gerou mais risadas. Depois correram para encher as taças novamente, pois precisavam de todo o álcool possível. Era o único jeito de serem felizes de novo, e esquecerem que aquela poderia ser a última noite tranquila de suas vidas.
Após horas de bebedeira e banquete, uma banda de plebeus passou a divertir o ambiente com suas violas, tambores e flautas. Os soldados mais vigorosos se puseram a dançar, movidos por uma embriaguez ascendente.
Maximilian estendeu sua mão, repleta de anéis e pulseiras adornadas, convidando sua amada Petra para uma dança.
— Me agraciaria com este momento?
— Quem sabe mais tarde.
A coronel Ryder se afastou do nobre, levando uma garrafa de hidromel consigo.
Cruzou o salão tentando encontrar algo interessante, que fizesse o tempo passar mais rápido.
Rodrik, com as bochechas rosadas e a satisfação de quem provou cada prato do banquete, ofereceu um licor fino à sua mestra.
— Um passarinho me vendeu essa garrafa da adega especial de Arthorius. Me acompanha?
A guerreira percebeu que a garrafa de hidromel já estava pela metade, mas sentia-se farta das mesmas conversas de sempre.
— O remédio contra a praga já me faz mal o bastante. Mas obrigada pelo convite.
Precisava de algo interessante para passar o tempo.
Procurou por Elric, encontrando-o próximo à porta de entrada. Seu soldado observava tudo o que acontecia no salão, sempre atento.
O temperamento apático do jovem não se alterou com a aproximação de Petra.
— Como estão as coisas, cavaleiro?
— Nada fora do normal, senhorita Ryder.
— Eu quero conversar com um certo alguém, lá no lado de fora. Vou ver se mato algumas dúvidas. Pode tomar conta do Rod e do Max por mim?
— Promete que não vai arrumar briga?
— Eu é que devia te pedir isso! — Deu uma palmada carinhosa no discípulo.
Ao escapar do salão, pôde sentir o calor abafado dar espaço ao ar fresco e gélido das montanhas.
Inspirou o aroma relaxante da natureza e logo encontrou o que procurava. Era o mais misterioso entre todos os membros do esquadrão de caça.
Kaji Yaketsu.
O único thandriano que trabalhava para o exército de Brydenfall, tendo traído sua nação inúmeras vezes em troca de nada mais do que ouro.
Meditando com sua katana no colo, o estrangeiro de olhos estreitos estava na beira da muralha, onde os ventos frios soavam como navalhas.
Vendo o homem imóvel e com os olhos fechados, um tolo pensaria que estava diante de um alvo fácil, vulnerável.
Poucos sabiam da velocidade em que um thandriano consegue sacar sua espada e desferir um corte. Também era desconhecido aos brydenianos a capacidade mais exótica que um samurai adquiria com seu treinamento: o controle de seus sentidos.
De olhos fechados, Kaji sabia de Petra antes mesmo de ela o perceber.
Ouviu-a subir as escadas da muralha e preparou seu psicológico para caso fosse mais uma militar que tem problemas com forasteiros.
Quando abriu os olhos, Yaketsu foi surpreendido por uma garrafa apontada para si.
— Quer um pouco?
— Obrigado… — Aceitou a garrafa, analisando a guerreira.
Petra esperou que ele sorvesse um gole, antes de ir direto ao ponto:
— O que te fez trair sua própria nação?
— Por que quer tanto saber?
Não enxergou qualquer compaixão nos olhos dela. Estava sendo interrogado e nada mais.
— Porque você parece ser a única ponta solta da nossa tropa. Vai me culpar por não confiar em um traidor?
— Eu só ajudei o seu reino porque odiava o meu. Não existe evolução em Thandriam. O dinheiro não servia para nada, apenas as trocas importavam.
— O bom e velho escambo. Então quer dizer que o seu povo não concorda com o sistema atual?
— É claro que não. Isso não passa de uma estratégia do Imperador, para que sua hierarquia nunca sofra mudanças. Um plebeu, como eu, seria sempre tratado como escravo, forçado a trabalhar até o dia da morte.
Ryder se sentou ao lado de Kaji.
Apoiou suas costas na parede, aproveitando uma vista sombria do cenário atual. Enxames de morcegos voando por entre as poucas árvores. Montes e planícies repletos de vaga-lumes, gambás e serpentes.
Observar a fauna de Brydenfall, durante a noite, era ver a natureza em seu auge.
— Então você queria ser rico, é isso?
— Eu queria ser livre! — Levantou-se, respirando fundo para manter a paciência.
As perguntas estavam começando a mexer com ele. Petra adorava isso.
— Eu te entendo. A liberdade é realmente maravilhosa. Mas ela tem um preço, não é mesmo?
— A solidão. — Entornou mais um gole farto.
— E você não conseguiu suportar esse peso de ser livre. Caso contrário, não estaria aqui vendendo sua alma ao exército.
“Você não sabe de nada!” pensou em respondê-la, mas desistiu antes que falasse além da conta.
— Agora que sabe mais sobre mim, espero que tenha uma boa noite.
Devolveu o restante do hidromel e desceu as escadas na maior velocidade possível.
Ryder conseguiu o que queria. Já sabia exatamente em quem não confiar.