As Bestas de Brydenfall - Capítulo 38
Nos confins de Faraborr, o Imperador Kato cruzou uma escadaria embolorada, logo alcançando o último andar de seu forte gélido.
Sob os flocos de neve, sentados na beira de um parapeito no terraço, dois dos supostos “anjos de Deus” aguardavam a inevitável chacina.
Cael só pensava no prazer de manipular um exército.
— Está ansioso, Lucius?
O companheiro não expressou qualquer emoção.
— Ansioso por saber que estamos cada vez mais próximos do fim? Não seria essa a palavra que me definiria agora.
— Odeio concordar com você, mas é verdade. Pelo menos o caminho até aqui foi bem divertido. E tudo me leva a crer que essa noite reservará o clímax da nossa caminhada.
— É o que eu espero.
Kato se curvou aos devotos, antes de lhes dirigir a palavra.
— Com licença… Vocês por acaso viram minha armadura de bronze? Hoje, pela manhã, eu havia a deixado em meus aposentos.
O infectado dos fungos se voltou ao humano frágil.
— Ah, é mesmo! Nós a presenteamos a alguém que realmente irá utilizá-la.
Lucius permaneceu de costas, observando o nevoeiro que escorria pelo futuro campo de batalha.
O clima estava ao seu favor. Suas presas seriam mortas sem nem saber o que as atingiu.
— Não se preocupe com a sua vida. Deus o trouxe aqui apenas para que apreciasse o fim de Brydenfall.
***
O exército brydeniano se reúne uma última vez, sob uma colina que sinalizava o ponto final da viagem.
A princesa entregou seu mapa ao escudeiro, após se situar no relevo.
— Estamos a quatrocentos metros do forte. Se não estivesse nevando, já poderíamos vê-lo abaixo dessa trilha.
Orion se voltou às centenas de soldados.
— Agora colocaremos nossos planos em prática, sem desvios!
Seus soldados assentiram com bravura.
A Rainha cavalgou até Arthur.
— Está pronto para liderar a vanguarda?
— Pelo clima aqui, vocês já nem cogitam muito a possibilidade do Imperador estar realmente querendo paz, não é mesmo? — Sacou suas espadas, pronto para partir. — Mas como é de Wymeia que estamos falando, eu entendo perfeitamente. Vamos logo com isso.
Os nove caçadores partiram na dianteira, com suas armaduras explosivas e armamentos banhados pela droga thandriana.
Foram acompanhados por outros trezentos cavaleiros que portavam tochas, munições e até mesmo um aríete.
Evan e Arthorius se posicionaram com seus esquadrões, quando o Marechal os abordou:
— Os flancos já podem ir. Façam o que for preciso para invadir o forte.
O Comandante da Apoteose cravou seu olhar no pai.
— Mostre para o que veio, velhote. Não ouse me decepcionar.
— GAROTO INSOLENTE! QUANDO SEU PELOTÃO CUMPRIR O OBJETIVO, EU JÁ ESTAREI TOMANDO UMA TAÇA DE VINHO NA TORRE MAIS ALTA!
— Nada mais do que a sua obrigação. Era o que você sempre me dizia, não é mesmo?
Sem esperar por respostas, partiu rumo à garganta rochosa que cercava a região.
***
A tempestade de neve se fortalecia a cada minuto ultrapassado.
Mal se podia ver um palmo adiante. Se desistissem e recuassem, seria o mesmo que avançar cegamente. Já estavam vulneráveis e nada mudaria isso.
Quando estava a poucos metros do portão principal, Arthur separou suas tropas para que dispusessem tochas pela região, tamanho o breu.
Suas chamas resistiriam ao frio, graças ao óleo de baleia que envolvia a madeira. Os cavaleiros foram ágeis em iluminar o local, mas o fogo possibilitava apenas uma visão parcial de Faraborr.
A estética do ambiente era mais próxima de uma ruína ancestral do que uma fortificação poderosa.
Tinha traços de abandono por toda a sua extensão, com janelas quebradas, torres tombadas e muralhas cheias de rachaduras e musgo.
Não havia sinais de vida em qualquer canto. Nenhuma luz, nenhum movimento. A quietude era ensurdecedora.
Gwyn preparou sua espingarda, alertando aos companheiros:
— Fiquem atentos. Não temos guardas para nos receber, então já podemos supor que Faraborr caiu.
Arthur deixou sua vanguarda vinte metros atrás de si. Cavalgou até os portões de madeira, sendo acompanhado por cinco cavaleiros.
— Tragam o aríete.
Quando um soldado voltou para acompanhar o equipamento de cerco, o comandante tocou na madeira apodrecida dos portões.
Silêncio. Adrenalina. A batalha estava para começar.
Uma rajada de vento desceu das nuvens contra Blake, como um disparo divino. A neve jorrou em seu capacete, embaçando o vidro e tirando-lhe a visão.
Ouviu um grito estridente ressoar acima de si.
Quando conseguiu limpar o equipamento e acalmar sua montaria, percebeu que os urros à sua volta se multiplicavam.
Viu cinco cavalos trotarem para longe, em desespero… e nenhum sinal de seus cavaleiros.
***
A carnificina os atingiu de forma confusa e abrupta, atordoando as tropas brydenianas.
Os militares da vanguarda viram suas estacas de fogo se apagarem, uma a uma. Jatos de sangue caíam das nuvens como uma chuva da morte.
Na retaguarda, tendo a vantagem da altura, Orion testemunhou a escuridão absorvendo seus soldados. Sombras disformes voando nas nuvens, acima do gelo e da tempestade.
Virou-se aos cavaleiros e reconheceu em seus olhos o mesmo horror que jazia estampado em sua face e percorrendo o seu interior.
— Nós temos que recuar!
Maximus entrou no caminho de seu irmão mais novo.
— Eu me recuso!
— O que está dizendo?! Se você morrer aqui, estará tudo acabado! A moral de nosso povo ficará mais abalada do que jamais esteve!
— Então trate de manter esses homens vivos. — Elevou sua voz para que todos ouvissem. — É uma ordem!
Os atiradores de Nyxia apontaram suas armas de fogo para o horizonte, quando sua Rainha alertou:
— Estão vindo pelos céus!
***
Evan cavalgava sozinho pelo desfiladeiro.
Nenhum sinal de seus subordinados enquanto avançava, assobiando uma cantiga de guerra.
Desceu da montaria quando pressentiu o perigo. O chão vibrava como se anunciasse a chegada de um exército adversário.
— Pode voltar, garota. — Afagou sua égua cinzenta, libertando-a das rédeas. — A coisa vai ficar feia por aqui.
Tomou um explosivo de sua bolsa e o arremessou vinte metros à frente.
A explosão banhou a passagem com um líquido incendiário que iluminaria o cenário temporariamente.
Já podia ver as silhuetas vindo em sua direção.
Seus inimigos eram homens. Mas também eram crocodilos, lobos, insetos e porcos. Os corpos, aparentemente indecisos sobre qual espécie formar, adotavam partes de diversos predadores.
Evan se controlou para não vomitar.
— Acho que “feio” é um elogio para vocês.
***
O pelotão de Arthorius demorou mais do que deveria para contornar o forte e encontrar sua entrada de esgoto.
Desnorteados pelo clima intenso e a medicação forçada, sentiam-se engolidos pela floresta de pinheiros que rodeava o local.
Recordaram-se de seus crimes e inimigos vencidos. Não eram como os soldados mimados de Neverfall. Eram assassinos treinados pelo mais sanguinário dos comandantes brydenianos.
Circundaram o lago fétido que servia de aterro e não tardaram em encontrar a fonte da imundice.
Olhos vermelhos os observavam no interior do cano de escoamento. Ninguém se deixou intimidar pelas bestas que planejavam retalhar.
Seus alvos se arrastavam pela sujeira, devorando ratos e escorpiões como aperitivo. Aguardavam apenas o comando de Cael, para que pudessem saciar a voracidade.
Corven e Niall estavam entre os infectados que não herdaram o voo das aves. Seu objetivo era manter o forte intocado, sem deixar sobreviventes.
Ver os soldados que cercavam a saída de esgoto era, no mínimo, desesperador. Menos de cem homens drogados contra trezentas aberrações famintas.
Agora teriam de decidir se lutariam pelos homens de Brydenfall ou pelas informações prometidas por Cael.
Por vidas humanas ou por um meio de derrotar os devotos.
Os antigos soldados se viram diante de uma encruzilhada, onde ambos os caminhos significariam uma traição com consequências arrasadoras.
Vesper escolheu defender seus compatriotas.
Skar decidiu o contrário.
***
Kato se via diante de seu maior pesadelo.
Cerrou os punhos com toda a força, pois podia ver perfeitamente o que massacrava aquela vanguarda patética.
As centenas de anjos voando sob a nevasca, erguendo suas presas do chão ou se preparando para matar o restante.
Nem mesmo a retaguarda brydeniana estava segura.
Cael já havia partido para as muralhas, enquanto Lucius permanecia no parapeito, diante dos vinte metros de queda.
— Você queria saber onde estavam seus pássaros. Agora já tem a resposta. Eles foram úteis, não é mesmo? — Sua língua deslizou pelos dentes afiados. — Quem diria que os humanos conquistariam os céus.
— Nós dois sabemos que eles não são mais humanos… E quando chegará o juízo final para o meu reino? Eu preciso saber.
— O juízo final se realiza todos os dias! Está arrependido de ter traído esses fracos? Acha que faria a diferença, se estivesse contra nós?
As unhas do Imperador começaram a afundar na própria carne, tamanha a angústia que percorria suas veias.
— Eu… sempre fui ensinado que os povos de Brydenfall e Thandriam eram compostos por seres inferiores. Agora que os vejo tão perto, tenho certeza de que não é o caso. Mas entendo porque os sábios diziam isso antes de cada matança. — As lágrimas deixaram sua voz pesada. — A ignorância é realmente uma bênção.
— Bom saber que conseguiu tirar uma lição com tudo isso. — Suas costas estalaram quando os ossos formaram um gigantesco par de asas. — Diga-me, herdeiro de Wymeia, qual era mesmo o lema que seu povo usava em suas guerras?
O sangue começou a escorrer pelos punhos do covarde. Sentiu vergonha de sua própria nação.
— Que rolem as cabeças.
— Exatamente! Agora chegou a minha vez de agir. E lembre-se: sem a sua ajuda, nada disso teria sido possível.
Com essa última provocação, Lucius saltou do terraço, voando em direção às tropas da retaguarda.
Começaria pelo Marechal.