As Bestas de Brydenfall - Capítulo 39
A chuva de projéteis recaiu contra as sombras que cortavam os céus.
Dúzias de atiradores já recarregavam suas armas, sem nem checar se acertaram um alvo. Tremiam dentro das armaduras, tentando ouvir as ordens desesperadas da Rainha.
Quando se puseram a mirar novamente, não havia mais tempo.
Os espectros desceram em um voo rasante, revelando suas formas aos adversários. Tinham a pele esburacada como rocha vulcânica, em corpos esqueléticos acinzentados, feitos para ganharem os ventos e desviarem de balas.
Treze bestas conseguiram o feito, enquanto duas tiveram suas asas perfuradas e tombaram dezenas de metros, quebrando seus corpos frágeis na queda.
Os atiradores escarlates eram suas presas. Ao perceber isso, Nyxia ordenou:
— Saquem as espadas!
Tarde demais.
A Rainha viu seu melhor soldado ser erguido do chão e jogado contra as trevas da floresta. Nunca esqueceria os gritos de agonia que sucederam o rapto.
Dois cavaleiros correram para protegê-la, mas também foram interceptados. Com suas armaduras sendo arrastadas pelas aberrações, puderam ver o chão se distanciar a cada segundo.
A estratégia das bestas fora friamente calculada.
Não poderiam voar para longe carregando tanto peso, então utilizavam os impulsos apenas para separar os adversários e devorá-los em um local afastado.
Inúmeros cavaleiros se debatiam nos ares acima de Nyxia. Um grupo de atiradores foi sequestrado em um movimento conjunto dos aberrantes, sem qualquer chance de contra-ataque. Outros sete tombaram enquanto tentavam recarregar as armas.
Foram estraçalhados com uma rapidez perturbadora.
A Rainha sacou suas espadas gêmeas, arremessando uma delas contra o tórax de um infectado que tentou a sorte contra ela.
O alvo foi ao chão, deixando um rastro de sangue na neve. Ergueu-se apenas para sentir o organismo falhar, com seus músculos se enrijecendo graças à droga thandriana em que as lâminas foram banhadas. Foi preciso apenas um chute para quebrá-lo em pedaços.
Nyxia recuperou a arma e o fôlego, se preparando para o próximo embate.
Mais uma besta aceitou o desafio. Com penas vermelhas pelo corpo, esta já havia saboreado alguns soldados antes de focar no prato principal.
A aberração possuía pés de primata, perfeitos para agarrar e nunca mais soltar. Voou com as patas apontadas para o pescoço da Rainha, urrando em frenesi enquanto ansiava pelo corpo e pela carne de uma nobre.
A guerreira não se deixou intimidar, esquivando da investida e cortando o inimigo pelas costas. Cada lâmina ceifou uma asa. Não foi necessário um terceiro corte para que o infectado se tornasse um cadáver ressecado.
Ela se voltou ao matadouro, executando uma análise do campo de batalha e identificando mais de cinquenta soldados mortos e uma dúzia de bestas criando novas vítimas. Outras dez, semelhantes a gárgulas, se aproximavam pelas suas costas, querendo o orgulho de matar uma rainha.
Cercaram-na por todos os lados. A primeira aberração desferiu suas garras contra o cabelo negro da guerreira. Ela girou sua lâmina no próprio eixo, como uma roda, cortando o braço da criatura no momento em que a encostou.
A mão pútrida, mesmo decepada, ainda a atingiu na cabeça, tirando seu equilíbrio e jogando-a contra o gelo.
Enquanto o desmembrado convulsionava no chão, tendo seu corpo tomado pela droga na lâmina, os nove aliados se aproveitaram da abertura que criara. Agarraram a Rainha pelas pernas e braços, imobilizando-a em instantes.
Uma das gárgulas passeou sua língua pelo braço dominante da nobre, antes de quebrá-lo como um mero galho.
Ergueram Nyxia acima do chão, enquanto outra besta arrancou sua placa peitoral, as ombreiras e manoplas. Ela não desperdiçou seu tempo gritando ou implorando. No lugar disso, sua mente ainda procurava meios de matar antes de morrer.
Foi confrontada pela feição odiosa do infectado que a despia da armadura. Seu rosto era como o de um feto malformado, inchado e coberto de veias. Nos olhos vermelhos, percebeu o desejo primitivo e desprezível que muitos homens da corte já lançaram contra ela. Desejou que obtivesse forças para eliminar apenas este monstro e mais nenhum.
Não precisou de um auxílio divino.
A cabeça da criatura explodiu sem qualquer aviso prévio, jogando ossos e miolos contra os flocos de neve. Os aberrantes paralisaram a violação. Um deles teve seu abdômen estourado por um projétil, antes que os outros pudessem encontrar o novo inimigo.
Com a velocidade em que um beija-flor bate suas asas, Oriana recarregou seu canhão e disparou novamente, vendo vísceras jorrarem.
“Faltam seis.”
Metade das bestas investiu contra a princesa, enquanto as outras cuidariam da Rainha.
— Sejam menos impulsivos na próxima vida — A nobre provocou, após ganhar o tempo que precisava.
Os atiradores restantes, cerca de trinta, aproveitaram a deixa para iniciar um fuzilamento. Atingiram as aberrações nos braços, na coluna e em todos os pontos vitais que mantivessem os alvos de pé.
Nyxia se ergueu rapidamente, sem se importar com as peças de armadura que lhe faltavam. Tomou suas espadas e tratou de perfurar cada infectado caído, mesmo os que já pareciam mortos.
Eles começaram a se contorcer como baratas moribundas. Terminavam rígidos e murchos, tomados por uma decomposição acelerada.
Afastado dos tiros, Orion protegia seu rei e irmão. Todas as bestas que tentaram atacá-lo terminaram do mesmo jeito: com um traumatismo craniano.
Seu martelo de guerra afundou no rosto da última gárgula, quebrando sua cabeça e pescoço em um único golpe.
A retaguarda estava segura novamente.
Oriana ajudou sua mãe a caminhar, percebendo que ela havia sido perfurada no ombro.
— É melhor voltar para a capital com alguns homens. A batalha acabou para você.
— Não seja burra! Essas criaturas vão nos seguir até o inferno, se for preciso. A hora dos covardes já passou.
— Mas se você não tratar esse ombro, vai terminar morta de qualquer jeito. E se tornar uma dessas coisas. Nós não podemos continuar…
Uma salva de palmas calou a conversa.
Todos os atiradores, sentinelas e cavaleiros olharam para a floresta de pinheiros, distinguindo um homem que pareceria comum, se não fossem seus olhos brilhantes.
Trajava uma armadura completa do exército brydeniano, exceto pelo elmo, substituído por um chapéu de couro desgastado. Uma fratura exposta começou a surgir na palma de sua mão, formando uma lança óssea. Nas costas, carregava um martelo maior do que o próprio corpo.
Cada passo fazia seus pés afundarem na neve, denotando seu peso sobre-humano. Os dedos se fundiram, formando cascos. Deixou que grande parte dos músculos escorresse até suas pernas, lhe garantindo o apoio que desejava.
— Quando me disseram que eu teria de lutar contra a minha própria nação, a inabalável Brydenfall, eu julguei como uma tarefa impossível.
Oriana mirou sua arma contra a cabeça de Lucius.
— E quem é você?!
— Vocês têm me decepcionado muito. Não pensei que trariam apenas três mil soldados, em um exército que tem o Rei em pessoa. Parece que a perda do Porto de Carvalho foi realmente significativa.
Um dos atiradores calculou um disparo contra a perna do infectado. Não perderia oportunidades em um confronto que valia a sua vida.
Quando apertou o gatilho, porém, Lucius já havia desaparecido. Atingiu o martelo de aço, que ricocheteou o projétil até uma árvore.
Seu mundo escureceu. Sentiu uma pressão nas costas, antes de cair na negritude absoluta. O soldado morreu sem nem saber o que lhe atingiu.
Lucius fez uma tropa inteira recuar, com apenas um movimento.
Segundos antes, quando soltara o seu martelo, utilizou as novas pernas para se impulsionar aos céus, formando asas e investindo ao primeiro atirador. Antes que encostasse no chão, sua lança já havia atravessado a nuca do alvo.
Perfurou as máscaras de todos os soldados que ousaram se aproximar. Com o cálcio disponível no organismo, conseguia esticar seus ossos a até cinco metros do corpo, criando lanças imprevisíveis.
— Acham que suas armaduras os protegem de Deus? Que piada.
Seus golpes evitavam o bico dos equipamentos, como se já estivesse ciente dos filtros de ar infestados com erva thandriana.
Os sentinelas do Marechal cavalgaram contra o general das bestas, que voava acima de todos.
Lucius aproveitou a investida do esquadrão para desfazer suas asas, em pleno ar. Transportou a maior parte de seu peso para os braços, inchando-os com músculos e ossos.
Sentiu como se portasse duas bigornas em queda livre, sendo atraídas pelos soldados abaixo de si. Esmagou dois cavaleiros e suas montarias, formando uma pasta de entranhas que escorreram entre seus dedos.
A essência divina que fluía em suas veias, de tão forte, chegava até a ser injusta.
— Então esses são os lendários Sentinelas de Orion? — Percebeu que estava sendo cercado, com as armas apontadas para seus braços, os maiores alvos. — Me parecem mais como insetos.
Seus membros desproporcionais tomaram as alabardas dos dois esmagados, executando movimentos elásticos e abruptos.
Os cavaleiros levantaram suas guardas para a defesa, sem perceber que não eram os alvos.
Lucius mirou nas patas dos cavalos, fazendo as criaturas desestabilizarem seus sentinelas. Alguns trotaram para longe do general, enquanto outros não tiveram tempo, sendo perfurados assim que viraram as costas.
— Eu gostaria que as coisas ocorressem de uma forma diferente. — Parecia insatisfeito com a vantagem que criara. — MAS VOCÊS NÃO CONSEGUEM PENSAR ANTES DE AGIR, NÃO É MESMO?!
Uma súbita ira consumiu Lucius por completo. Ficou cego para o que estava por vir.
Oriana disparou seu canhão, atingindo o cadáver de um aliado… e o explosivo em seu cinto.
O general recriou as asas, mas a explosão foi mais rápida. Uma cortina de poeira impediu que os soldados vissem como os fragmentos da bomba atravessaram seus olhos do inimigo.
Lucius sentiu seu corpo ficar mais leve do que o normal, quando perdeu as forças para se manter de pé.
Não sentia mais o braço esquerdo e as duas pernas. Sorriu de felicidade, pois a batalha não seria tão fácil quanto aparentava.
Nyxia e Oriana correram até o Marechal e seus sentinelas. A princesa já recarregava seu canhão, mas a arma estava desgastada, anunciando que não duraria muito.
— Se outro desses aparecer, vai ser só questão de tempo até estarmos todos mortos.
O Rei permaneceu afastado, com sua guarda-real. Orion, junto dos últimos guerreiros, tomou a dianteira para proteger os feridos e desarmados.
— Os inimigos conseguem voar e alterar os próprios corpos. A única saída que eu enxergo é se matarmos todos.
Não tirava os olhos da fumaça gerada pelo explosivo. A idade ainda não fizera com que seus ouvidos lhe traíssem.
O inimigo estava vivo e mastigando os cadáveres de seus subordinados.
Lucius não se preocupou com a furtividade, enquanto se arrastava para o morto mais próximo. Gerou novas bocas em seu corpo, abraçando toda carne que estava ao alcance.
Os ossos, músculos, até mesmo as fezes das vítimas, tudo seria aproveitado. Cada célula lhe garantia uma nova função, um novo poder. Assumiria sua forma mais forte, agora que subestimar os adversários se revelou como uma estupidez.
Suas capacidades físicas garantiam muito mais do que os cascos de um bode ou as asas de morcego. Quando devorou vinte quilos de carne, já estava pronto para a metamorfose.
Adotou o couro de um elefante. Sua altura, com o peso atual, não poderia ser tão grande, então focou em gerar apenas um braço enorme de primata. O restante das células iria para as patas de cavalo, para sustentarem o peso de sua arma principal.
No momento em que a fumaça se dissipou, Orion — acompanhado pelo restante dos sentinelas — arremeteu contra o general das bestas.
Lucius usou seu braço desproporcional para atingir o chão e erguer uma rajada de neve. O Marechal estacou imediatamente, quando percebeu que o adversário recuava para a floresta.
— Esperem! Pode ser uma armadilha… — Deixou que o adversário entrasse na mata.
Mas Lucius não planejava fugir.
Contornou o campo de batalha pelas árvores, voltando ao ponto em que soltou seu martelo. Quando recuperou a arma e a apoiou no ombro, voltou-se à pequena tropa de soldados que restava derrotar.
— Nunca tive que fugir em toda a minha vida. Admito que isso foi um pouco constrangedor.
Orion preparou sua montaria para mais uma investida.
— Foi você quem planejou essa batalha, não é?
— Já chega de conversas. Venham todos ao mesmo tempo, se tiverem coragem! Talvez assim vocês tenham alguma chance.