As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 19
“A irmandade pode ser o início ou o fim de todas as coisas” – Pulget, o pequeno
Chamas crepitavam. Uma fogueira ao seu redor iluminava o local sinistro no qual se encontrava. Não fazia ideia de como havia chegado ali e quem eram aquelas pessoas mascaradas e eufóricas, erguendo algo semelhante a colheres gigantes.
Seus olhos ardiam com o calor. À medida que recuperava a consciência, se lembrava do que aconteceu antes de ir parar naquele suposto culto de lunáticos.
Eu estava caminhando na rua, quando fui abordado. Eu nunca podia imaginar que aceitar uma bebida terminaria com isso, droga, aquela garota era mesmo um pedaço de mal caminho. Pensou Jack, que na realidade era um nobre de Genebra.
Mas a armadilha aparentemente fora bem arquitetada, pois conseguiram o deixar desacordado e levar para seja lá onde estivesse.
A gritaria só aumentava. Os membros da seita misteriosa bradavam em uma língua estranha para Jack, com direito a um desengonçado coro.
Seus braços e pernas estavam amarrados. O pescoço acorrentado sobre uma viga no meio do ambiente. Era impossível escapar dali. Aos poucos esse choque de realidade lhe acometia como a tuberculose.
— Esperem, o que vão fazer comigo? — ele gritou, a garganta seca e suor escorrendo pela testa graças ao calor.
Alguns poucos se entreolharam, como se tivessem entendido, enquanto outros apenas o ignoraram, continuando a erguer suas colheres gigantes.
— Seu sofrimento irá terminar logo, Monsieur — uma voz aveludada e metódica anunciou.
— Quem são vocês? Onde eu tô? — Jack começou a se contorcer, o coração palpitando e o calor subindo — por favor, me tire daqui. Meu pai é um duque, ele pode lhe dar todo o dinheiro que quiser!
Apenas naquele momento notou melhor a máscara uniforme que os religiosos usavam; eram cônicas, com uma expressão vazia nos furos para olhos e boca. A daquele indivíduo era totalmente dourada — diferente das que os demais membros usavam, feitas de bronze.
— É bom ouvir sua declaração de que realmente é filho de um duque — o religioso disse, indiferente ao tom de súplica do rapaz — Meu nome é Damon, sou sumo sacerdote de nossa confraternização, os adoradores do Inominável.
Para ele o que Damon dizia era loucura. Nunca ouviu falar da tal seita na vida.
As chamas subiram, alimentadas por um dos membros que segurava uma tocha. Tudo que Jack não queria era mais calor.
— Sabe, em breve o Longo Eclipse se iniciará. Com a chegada do Weezy a este mundo, em setenta e duas horas, todos serão purificados — o sacerdote continuou — Porém, o Nosso Senhor Inominável pediu a consumação de três sacrifícios de nobres da mais alta cúpula. Você, Monsieur, é o primeiro deles, sinta-se honrado.
O aparente líder da seita se pôs de pé, se afastando em seguida.
— Espera, espera, NÃO FAÇA ISSO!
Mas sendo completamente ignorado por Damon, Jack não teve escolha senão esperar seu destino. Outros dois membros apareceram, a diferença é que suas máscaras eram de prata. Um deles tinha um jarro de vidro com óleo nas mãos e começou a rezar na língua desconhecida, enquanto o outro apenas observava Jack, escondendo as mãos atrás das costas.
Malditos! Onde é que fui me meter? O filho do duque pensou, desolado. Esse Inominável nem deve existir, que diabos de divindade é essa? Deus, por favor, me garanta um lugar no céu. Droga, e eu nem cheguei a visitar Roma, devia ter deixado Espanha e Estados Unidos para depois.
O homem mascarado continuava a rezar, aumentando mais e mais o tom da voz. Toda aquela barulheira começava a se tornar ensurdecedora. Mas Jack foi pego de surpresa, quando o membro que rezava simplesmente derramou todo aquele óleo da jarra em sua cabeça, que escorreu por todo seu corpo.
— O QUE DIABOS ESTÁ FAZENDO?! — Jack perguntou, atônito, mas sendo completamente ignorado.
Ele descobriu que preferia não ter perguntado, quando o mesmo devoto sacou um isqueiro. Jack sentiu a bílis o sufocar. Sempre lhe disseram que as piores formas de morrer era afogado ou queimado.
Entretanto, suas súplicas mais altas não foram o suficiente para impedir que o religioso lançasse o isqueiro em sua direção. Com uma velocidade impressionante, as chamas se alastraram por seu corpo e ele se contorceu de dor, mas no fim, de forma dolorosa, acabou sendo carbonizado.
A seita bradou mais alto na língua estranha, pois aquele era um dia de gratidão ao Inominável.
***
A manhã chegou com uma brisa gélida na rua Baker. Archie a sentiu, notando que deixou a janela aberta, graças a um temível ser.
Borboleta maldita. O jovem pensou, com um certo calafrio.
— Espero que você saia daí até eu voltar, amigo — disse ao inseto, o qual considerava asqueroso, enquanto tentava calçar as botas.
Não era um dia especial ou algo do tipo, ainda assim não se daria por vencido. Aquela era sua bota favorita e ele a calçaria, mesmo que ela já não servisse para os seus pés.
— Vai… FOI! — exclamou, finalmente tendo êxito.
Archie então se pôs de pé, ajeitando uma folga nas vestes e se olhando no espelho. Apesar do chapéu deixar escapar seus cabelos rebeldes, ele pensou que estava com o estilo em dia.
Deixou o quarto e desceu para o andar de baixo, pois em poucos minutos a família se reuniria para o café da manhã.
Logo chegou à sala de estar, onde viu apenas o irmão caçula, um pré-adolescente de aspecto franzino e cabelos pretos. Sentado na poltrona do pai, ele folheava um livro grosso de capa dura, onde se lia com clareza “Teoria do Não-Transcendental” de Pulget, o pequeno.
— Bom dia, Archie — ele disse, sem tirar os olhos das páginas hipnotizantes de seu livro.
— Dia, Paul — Archie respondeu, com o olhar estreito, mas logo sorriu — Você não lê outro livro não? Desde que chegou aqui te vejo lendo isso.
Paul levantou o olhar para ele. Archie achava particularmente cômica a visão irrepreensível do irmão como um “infanto-intelectual”.
— Não me venha com chorumelas, Archie — de onde ele tirou essa expressão? — eu tô sempre lendo outros livros, acontece que diferente de ler algo como as obras de Allan Poe ou Lewis Carroll, minhas leituras não são passageiras, há sempre mais nas entrelinhas para se entender relendo.
— Sei — Archie bocejou — eu prefiro me aventurar no país das maravilhas que em devaneios de filósofos anões.
— Pulget não era anão… quer dizer, alguns diziam que ele era, mas como não temos certeza, temos que aderir à sua citação “O que está vendado nas areias do tempo, sem registros, o homem jamais o desvendará”.
— Aham, me explica por que esse cara era tão redundante…
— Não atrapalhe a leitura do seu irmão, Archie — uma voz mais grave e firme o interrompeu. Archie ficou desconcertado, não esperava que o pai fosse aparecer ali tão repentinamente — ele está buscando um futuro, respeite isso.
O jovem engoliu a alfinetada, tentando parecer impassível. No fundo, ele sentia a frustração diária tomar conta de si. Sempre a mesma coisa.
Henry Becker, o patriarca da família, era um físico e químico conhecido pela Europa. Um homem alto, de semblante sério e julgador. O bigode e a barba grisalhos ajudavam a esconder qualquer sorriso, mesmo que eles fossem raros.
— Meninos, Henry, venham comer — ouviram a indistinguível voz de Agatha, para o alívio de Archie.
Não queria ouvir mais uma lição de moral do pai, nem sobre a genialidade do irmão adotivo, então foi o primeiro a obedecer à mãe.
A sala de jantar era razoavelmente grande, como deveria ser em uma casa de ricaços. A mesa se estendia o suficiente para abrigar dez pessoas em um luxuoso banquete. Naquela manhã, porém, apenas a família Becker, o mordomo Reagan e a criada Olivia a ocupavam.
Tanto o mordomo quanto a criada sentavam distante dos Becker, o que para a sociedade já era considerado um “ato de humildade”. Para Archie, significava ouvir as discussões científicas chatas do pai e seu irmão, ao invés das histórias interessantes, mirabolantes e duvidosas do mordomo.
Não me importaria de sentar do lado deles, mas tem que manter os bons modos, né? O jovem pensou, brincando com seu mingau, esperando ele esfriar.
Sabia que seu pai o olhava em teor de desaprovação por aquela atitude, por isso ele nem se deu ao trabalho de levantar a cabeça.
— Vamos conversar — Agatha disse. Ela era uma mulher firme de semblante, porém extremamente delicada e metódica na maneira de se comportar. Mas apesar de não ser uma mulher de muitas palavras, era ótima com elas. Para Archie sua mãe era uma inspiração, além de ser a única pessoa que lhe entendia e não o julgava na família — O que pretendem fazer hoje… Archie?
— Vou me encontrar com Mary — o jovem pareceu voltar à realidade do abismo da sua tigela de mingau.
— Ela não teria aula de etiqueta com as primas por agora?
— Ela disse que consegue dar uma fugida, pra se encontrar comigo.
— Espero que não tenha sido ideia sua, essa “fugida” — o pai provocou, a sua tigela de mingau já quase vazia.
— Claro que não — Archie novamente tentou parecer impassível, tendo ciência dos seus dentes cerrando por um instante — ela mesma quem me chamou, provavelmente tá achando um saco essa tutoria.
Henry não retrucou, apenas fez um gesto para Olivia encher sua tigela com mais mingau.
— Mas é importante — Agatha disse — mesmo que ela não goste, Mary é uma garota inteligente e sabe que precisa aprender isso.
— Aposto que sim, mãe — por pressão da sociedade, ela diria — mas ela queria também conversar sobre o assalto na rua de cima… talvez eu tenha uma pista.
— Talvez seja melhor que ela permaneça como uma pista na sua cabeça — Henry disse — isso é trabalho para a polícia, não para dois jovens.
— Eu nem disse que íamos fazer nada.
— Tampouco eu, Archie, mas um conselho nunca faz mal.
Vamos ver quando eu for um detetive sério, se vou precisar dos seus conselhos.
Mas após isso, o silêncio preencheu à mesa, até Agatha quebrá-lo novamente:
— E o seu dia, Paul?
— Daqui a pouco vou para a tutoria de matemática, depois para a de etiqueta e no fim da tarde com o professor Richard na aula de esgrima — ele respondeu precisamente, já quase terminando o mingau.
— Humm… — Agatha observou o filho adotivo com um meio sorriso, claramente insatisfeita — e nenhum momento para lazer, filho?
Os olhos de Paul se estreitaram para a mãe, a expressão de uma criança confusa.
— Eu já tive meu momento de lazer, mãe, li o jornal matinal e um pouco do “Teoria do Não-Transcendental”. No conforto de uma poltrona e não de um chão frio — ele sempre fazia questão de lembrar.
Ele tem um ponto. Archie pensou.
— Oh… eu digo, de se socializar, sabe? Com os garotos da rua, jogar futebol, ou seja lá qual for o nome dessa nova febre esportiva.
— Ah… bem, os garotos da rua não gostam de mim, sempre caçoam quando eu passo por eles — havia uma nota de tristeza em sua voz, entalada.
— Ele não precisa disso — Henry se manifestou — é ótimo que ele esteja pensando no futuro, em seu sucesso. Amigos? Isso pode ficar para depois.
Ele acariciou os cabelos do filho mais novo, o qual Archie não considerava um corte bom. Seu gosto para tais coisas era completamente adverso ao senso comum, então guardava aquilo apenas para si.
Mas a mãe não se conteve, fuzilando o pai com os olhos. Henry ficou acanhado, pois sabia que seria um baita problema a resolver mais tarde.
— Eu já terminei, vou pegar um ar no quintal — Agatha se pôs de pé, em seguida olhando mansa para o filho legítimo — Archie, mande um beijo para Mary por mim. Tenham um bom dia.
E deixou a sala de jantar sem qualquer consideração. Era exatamente por aquilo que Archie a amava.
***
— Ai, eu estou tão excitada para o espetáculo — Margareth disse, com aquela sua voz delicada de dama, irritante na opinião de Mary Robinson.
— Não é, prima? Ouvi dizer que vários duques vão estar lá com seus filhos — Bethany teve um momento de êxtase como só uma garota da nobreza poderia ter — espero ser cortejada.
Algum deles irá lhe cortejar, sim, Beth, e terá que estar pronto pra te carregar pra fora do recinto depois que você desmaiar. Mary pensou, irônica.
Ela e as três primas tricotavam na sala de estar da tutora Samantha. Por mais que a garota gostasse de tricotar, ter de fazer aquilo com as primas esnobes e irritantes não era a experiência que ela mais almejava. Mas segundo sua mãe, aquilo seria importante para o seu desenvolvimento como uma verdadeira Lady.
Mary não queria ser Lady, mas admitia que era importante para se infiltrar nas mais diversas áreas da sociedade. Então ela preferia seguir com essa máscara social e conseguir levar adiante seus objetivos.
— E você, Mary, vai ao espetáculo, não é? — Elizabeth perguntou.
— Estou vendo com Archie, Beth — ele não me colocaria nessa furada — eu adoraria ir, deve ser algo de encher os olhos, não é?
— Ai, você é tão sortuda de já estar noiva, Mary, de um garoto como Archie ainda por cima — Margareth disse, ela e Bethany deram risadinhas.
Ele que se considera sortudo, priminha. Ela pensou. Mas Archie é muito melhor que qualquer um desses patetas filhos de duques.
E verdade seja dita, as primas tinham sim inveja, não só por ela já ser noiva, como também por seus cabelos loiros cacheados e naturais.
— Eu esperava tanto ser cortejada pelo Jack Ulysses — Elizabeth disse, sonhadora, mas logo ficando tensa e colocando a mão sobre a testa — pena que ele desapareceu ontem, o duque Ulysses e seus homens estão o procurando por toda parte. Ain, tomara que não tenha sido nada sério.
— Também espero, prima — Margareth disse, pesarosa, segurando a mão da prima.
De repente, Mary se interessou pela conversa delas. Como grande entusiasta das histórias de Auguste Dupin de Edgar Allan Poe e o recente Sherlock Holmes de Sir Conan Doyle, além de ser filha de um capitão da polícia, era naturalmente fascinada por mistérios.
— O que exatamente aconteceu? — ela perguntou, tecendo mais rápido.
As primas a fitaram, surpreendidas por entrar na conversa voluntariamente.
— Ninguém sabe. Ele foi para Genebra, terra dos seus pais, curtir a noite na rua Du Marché e não voltou para casa — Elizabeth explicou — só isso.
— Entendi — isso é interessante, quero ver o que Archie vai pensar sobre.
Ding Dong!
E por falar nele.
A campainha tocou e ela sabia que era sua deixa para cair fora dali. Se levantou de forma elegante, fazendo um gesto de licença para a tutora Samantha — uma mulher de meia-idade com expressão rígida — que observava o comportamento das meninas.
O garoto era insistente e pouco elegante, apertando a campainha várias vezes. Mary sabia que naquele momento os lábios da Sra. Samantha se contraíram mais que o normal. Puxou a maçaneta com delicadeza, precisava até o último segundo manter o disfarce.
Assim que viu o noivo, sentiu que ele estava prestes a lhe agarrar e chapar um beijo, porém foi sagaz o suficiente para notar as primas e uma tutora rígida os observando de longe.
— Amor, você está deslumbrante — ele conseguiu usar da cordialidade sem vomitar no processo — Bethany, Margareth — ambas mexeram os cabelos enquanto acenavam — Elizabeth, Lady Samantha — a tutora deu um sorriso de aprovação genuíno quando o garoto tirou o chapéu ao lhe cumprimentar.
Voltando a encarar a noiva, percebeu que ela lhe dizia algo, apenas mexendo os lábios.
“Vamos sair desse antro de gente irritante”.
***
Caminhar pela rua Baker naquela manhã era minimamente agradável. O inverno chegava à Grã-Bretanha, com pequenos flocos de neve sujando as ruas vez ou outra. Era verdade que a brisa poderia deixar a mais escura pele de um europeu corada.
Archie e Mary davam passos inquietos, entretidos em uma conversa de altos e baixos:
— Dá pra acreditar na minha mãe? Ela sabe que eu não preciso de tutoria para agir como uma “Lady perfeita”.
— E você acha que ela acredita nisso?
Mary refletiu por alguns segundos. Lana Robinson era, sem dúvida, uma mulher de pouco convencimento. Ela sabia muito bem ler as pessoas e impor presença, ao mesmo tempo, ser a mais elegante dama de uma festa.
— Você tem razão — concluiu, aceitando a derrota — ela precisa garantir que a filhinha querida não se torne uma marginal contra o patriarcado, não é mesmo?
— Patriarcado? De onde você tirou essa? — Archie estava realmente confuso com o termo.
— Julia Aurora disse em alguns de seus relatos escritos — Só podia ser, sua heroína favorita. Por que ainda pergunto? — foi da vez que ela salvou uma mulher de um homem abusivo.
— Saquei. Imagino que ela tenha trucidado ele como fez com os outros.
— Uhum.
Apesar de Archie duvidar de alguns detalhes das histórias da tal heroína — em especial sobre ela possuir a habilidade de conjurar mãos negras, aos invés de apenas ser uma mulher muito habilidosa com espadas — preferia não questionar a noiva, já que muito provavelmente ela só era a mulher que ele amava tanto graças a essa personagem histórica.
— Ei, por que você não… apresenta a história da Julia Aurora para suas primas? — ele sugeriu, inocentemente — deixaria as sessões mais divertidas, não acha?
Mas a expressão boquiaberta e incrédula de Mary já deixou clara a resposta.
— Claro, Archie Becker, que ideia incrível seria eu começar a falar sobre uma mulher que na idade média usava poderes considerados como “poderes de bruxa” para fazer justiça com as próprias mãos e com um discurso visando a independência das mulheres, uau, aposto que as minhas primas perfeitas não vão ficar horrorizadas e muito menos contar para a Sra. Samantha, fazendo assim meu disfarce de boa moça cair por água abaixo.
— É, certamente não foi das minhas ideias mais geniais — Archie admitiu, olhando de forma vaga para o ambiente.
Mary sorriu e agarrou o braço do parceiro, com os dois caminhando como um lindo casal de classe alta.
— Mas me conta, meu segundo detetive favorito descobriu alguma coisa sobre o assalto da joalheria na rua alta? — Archie não se sentia ofendido pelo título, considerando que o detetive favorito dela era Arsene Dupin. Logo, na realidade ele era o seu favorito.
— Bom, eu tenho uma suspeita — houve um silêncio de suspense — Nelson Burks.
— Que?! O marido plebeu da Sra. Pennelope? Por quê?
— Bem, parece que ele tinha uma rixa com os donos da joalheria, sabe, eles o esnobaram quando ele ainda era um plebeu que apenas ficava olhando a vitrine. Mas como isso não é argumento suficiente, eu descobri ontem, conversando com um policial, que ele já foi pego tentando roubar artigos de uma loja.
— Ainda não é uma confirmação.
— Tem razão.
Eles pararam próximos a uma árvore, com Archie puxando Mary até que eles ficassem atrás dela, sem que ninguém pudesse os ver.
— Já disse que você tá linda hoje? — Archie comentou, de forma descontraída, olhando para trás, enquanto levava sua mão até a cintura da garota.
— Tem certeza disso, Archie Becker? — ela perguntou, mal resistindo quando ele se aproximou — alguém pode nos ver.
— Faz quase uma semana que a gente não fica a sós — Archie sussurrou, seus rostos estavam tão próximos que ela podia sentir sua respiração quente — não quero perder a oportunidade.
Mary se entregou ao noivo, com um beijo intenso, capaz de escandalizar o mais liberal entre a nobreza. Apenas ocasionalmente gostavam de correr aquele risco, pois ambos de certa forma compartilhavam visões de mundo parecidas.
Após o minuto de risco, se afastaram, mesmo que quisessem ficar ali o dia inteiro.
— Você é um babaca, sabia? — ela disse, de forma divertida, arrumando o cabelo — algum dia todo o meu plano vai cair por água abaixo por sua causa.
— Pelo menos não podemos dizer que não valeria a pena — Archie sentia a adrenalina correr pelo seu corpo, querendo correr um risco ainda maior.
Eles voltaram a caminhar como um casal inglês normal, fingindo que nada tinha acontecido. Eram ótimos em fingir, pois antes de assumirem o namoro para a família precisavam ser bons nisso.
— Ah, eu descobri outra coisa hoje, envolvendo outro caso — Mary lembrou, quebrando o silêncio — foi Elizabeth que contou, acredita?
— Humm, e o que é?
Ela lhe contou a respeito do misterioso desaparecimento do filho do duque Ulysses.
— Ele estava morando aqui, não? Mas esse caso é lá na Suíça, acho que não temos muito o que fazer — e eu não quero pisar naquele país tão cedo — mas se fosse pra deduzir, provavelmente ficou bêbado e foi sequestrado, logo encontram ele e pagam um resgate.
— Se você diz. Só sei que a Beth com certeza já pensou o pior, dramática como ela é…
Mas ambos foram interrompidos pelo trotar de um cavalo se aproximando. Não podia ser ninguém senão Maxwell Robinson, pai de Mary.
Sendo o capitão da polícia local, era surpreendente que o próprio ainda fizesse rondas pelo bairro sozinho.
— Ora, ora, não deveria estar naquela tutoria de etiqueta, ou seja lá o que for que sua mãe lhe colocou? — Maxwell perguntou, em cima de um cavalo.
Ele ostentava uma respeitável barba, que só contribuia para uma aparência desconfiada e autoritária, sendo o mínimo de se esperar de um policial, mas desagradável de se esperar de um sogro.
— Estamos no intervalo, pai — Mary inventou, da forma mais meiga e inocente possível — então resolvi vir dar uma caminhada com Archie.
— Sei… olá, Becker.
— Tudo bem, Sr. Robinson?
— Eu que lhe pergunto, com esses calçados folgados, esse chapéu amassado e eu tenho quase certeza que não abotoou direito esse sobretu…
— Chega, pai — a filha o cortou, sabendo que ele não iria parar.
Maxwell fez um muxoxo de desaprovação, enquanto Archie se sentia temporariamente um lixo humano, graças ao seu calçado folgado e o chapéu fora de moda.
— Muito bem, eu vou continuar minha ronda. Filha, volte à sua tutoria, e Becker, ande na linha para as coisas não azedar para o seu lado, entendeu?
— Sim, Sr. Robinson.
— É Capitão Robinson para você.
E então o capitão os deixou, cavalgando para o horizonte em vão, já que os crimes naquela rua eram praticamente inexistentes.
— Eu vou ter que aturar isso pra sempre, né?
— Vai, mas você aguenta, meu amor.
Mas nesse caso, Archie se referia a sua integridade física. Sabia que teria que dar tudo de si para não fazer a filha do capitão chorar, caso contrário, veria o cano da espingarda do Sr. Robinson mais de perto.
***
Já era fim de tarde, e o detetive amador retornava para casa sem grandes feitos. Infelizmente Mary precisou voltar para a tutoria e ficou a cargo dele investigar o caso da rua alta. No fim, acabou perdendo mais tempo que qualquer outra coisa, então o caso, por ora, ainda permanecia em aberto.
Assim que adentrou o hall, ouviu vozes entusiasmadas. Era seu pai, o sério Henry Becker — achava irônico como ele e seu sogro se pareciam, o que Archie via como uma prova do seu azar concreto — Ele comemorava alto, bem como Paul, que parecia até uma criança normal feliz por ganhar um presente.
Assim que colocou os pés na sala, viu os três reunidos ali. A mãe, apesar de sorridente, não fazia jus à empolgação de Henry e Paul, que segurava uma carta aberta. Ao notar a presença do filho mais velho, o Sr. Becker estreitou o sorriso.
Desnecessário.
— Archie, chegou bem na hora, querido — Agatha foi prática — seu irmão acabou de ganhar uma bolsa na Universidade de Genebra.
— Sério…? — Por que estão tão surpresos? — Isso é ótimo.
— Não é? — Henry disse — lá ele irá se aprofundar nos conhecimentos da filosofia — algo que Archie nunca esperava aconteceu: seu pai parecia minimamente emotivo — meu menino, cresceu tanto.
Archie e Agatha se entreolharam. Ela sabia exatamente o que o filho legítimo estava pensando, mesmo não querendo admitir. Ainda assim, o mais velho tentou parecer contente, afinal, seu irmão havia conquistado algo grande e, por mais que não fossem tão próximos, ele ainda era da família.
— Então… quer dizer que iremos nos mudar para Genebra, ou coisa do tipo? — Archie perguntou, escondendo sua preocupação e forçando interesse.
— Não — Henry respondeu, seco — felizmente a Universidade é como um reformatório, então Paul poderá morar lá, vindo para casa em períodos regulares.
— Certo — ele decidiu que queria ir ao quarto — bom, isso é uma boa notícia, que bom que conseguiu, Paul.
— Obrigado — o irmão simplesmente respondeu, mas sendo genuíno.
Mas assim que Archie começou a andar, seu pai disse:
— Espere, Archie — naquele momento, pai e filho se encararam. O olhar de Henry era menos repreensivo e mais complacente — bem… infelizmente não poderei levar Paul para se apresentar formalmente. Terei um compromisso em Liverpool no mesmo dia. Então… receio que terei de deixar a tarefa de acompanhar Paul para você.
— Eu? — O senhor tem certeza disso? — é que tipo, eu tô bastante ocupado resolvendo uns casos aqui para simplesmente sair do país — a complacência no olhar do pai sumiu de forma imediata, mas Archie não se deixou intimidar — só iria para Genebra se houvesse algum cliente.
— Ora, deixe de bobagens, garoto. Eu estou lhe dando uma chance para provar ser alguém responsável. Essa oportunidade de Paul não é brincadeira!
— Henry, não se exalte — Agatha tentou intervir.
— Então quer dizer que meus casos investigativos são uma brincadeira?! — Archie aumentou a voz. Já havia canalizado por tempo suficiente aquela resposta em sua vida — Quer saber de uma coisa? Eu não sou a babá do Paul, nem ligo para essa “oportunidade de ouro”, aposto que é a primeira de quatrocentas que ele vai receber na vida. Eu já falei, só vou para essa maldita cidade se eu tiver algum cliente precisando dos meus serviços!
— Ora, seu…
Trrim-trrim!
Era o telefone tocando.
O mordomo Reagan foi atender, como de praxe. A família, antes tensa, ficou aguardando a descoberta de quem poderia estar ligando àquelas horas. Após quase um minuto, Reagan virou para os Becker.
— Archie, é para você.
Surpreso, ele foi até lá, com o mordomo lhe entregando o telefone. Novamente a família aguardou a informação do que se tratava.
Passados minutos, o jovem voltou para a família, com um semblante alegre, para a surpresa deles.
— Pai, parece que é o seu dia de sorte — ele disse, em um tom provocativo involuntário — é exatamente um cliente de Genebra, seu nome é Damon e ele me aguardará em uma semana.
A família ficou incrédula com a conveniente coincidência. Archie também estranhou, mas quem era ele para reclamar de uma proposta dessas?