As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 20
“Lembrem-se, segundo a religião, da perfeição veio a imperfeição: vós que me ouvem” – Pulget, o pequeno
O ambiente compacto, totalmente escuro e comprimido por uma aura trevosa se localizava no alto de uma colina, próximo a um cemitério.
Naquele dia, o céu respondia com trovões e uma forte chuva. Mas aquilo não era um empecilho para o cientista, que trabalhava em sua pesquisa num necrotério sujo e abandonado.
— Contemple, Igor — disse, em uma voz rouca ao assistente, tossindo um pouco — eu realmente preciso de água… Mas enfim. Isto é o que eu chamo de “Tubos da perfeita criação”.
Ele indicou a maracutaia científica que havia construído. Se tratava de diversos tubos de ensaio e balões de fundo redondo e béqueres com líquidos de cores diversas, cujos canos de vidro criavam uma espécie de caminho para os líquidos até a mesa de autópsia, onde um cadáver putrefato estava disposto.
Os “Tubos da perfeita criação” se estendiam por boa parte do cômodo único. Como uma engenhoca rudimentar, era extremamente frágil, então o cientista fazia o máximo para que apenas ele e Igor tivessem acesso ao necrotério.
Mas sendo o único por aquelas redondezas, empregado para vigiar um cemitério nos cafundós de Genebra, poderia ficar tranquilo em jamais ser descoberto.
Alguns poderiam até dizer que usar um cadáver para experimentos era falta de consideração com o morto, porém o cientista via isso como uma honra, dado o seu objetivo final.
— Como sabemos, Igor, esses líquidos nesses tubos de ensaio são chamadas de “fórmulas das misturas”, onde dois objetos misturados se tornam um elixir metafísico — o cientista pegou sua caderneta, onde todas as informações que ele considerava mais preciosas estavam escritas — estamos no dia cento e oitenta do experimento C. A fórmula do conjunto de misturas proverá ressurreição, porém não da pessoa que morreu, mas sim de um novo ser usando o corpo apenas como um casulo.
“Esse ser, Igor, será o que eu chamo de Criação Perfeita. Será humano? Sim, porém com características a mais. Em primeiro lugar, suas células serão deveras mais resistentes que a dos humanos, portanto incapazes de desenvolver anomalias, isso se aplica para todos os seus órgãos, ossos e músculos. Em suma, isso quer dizer que ele viverá muito mais que um humano comum, bem mais”.
Um trovão alto pairou no céu, fazendo o assistente Igor se assustar.
“Pois bem, e não só isso, mas capacidades cognitivas, intelectuais e motoras serão superiores às nossas também, graças a complexidade de seu cérebro ser maior, com mais neurônios e um lóbulo extra. Por fim, ele terá resistência e força física superior graças aos ossos e músculos aprimorados biologicamente. ISSO É INCRÍVEL, NÃO É?”.
O cientista começou a ter um ataque de êxtase apenas por recapitular qual seria o provável resultado de sua pesquisa, gargalhando alto demais e tossindo no processo. Passou o dia inteiro sem água, totalmente focado em seu projeto.
— Enfim, estamos quase lá. Apenas mais alguns dias e a dose regular estará completa. A Criação Perfeita irá nascer, será apresentada a academia e eu ganharei todos os prêmios que for de meu direito. McAlister, Karen e Rogi olharão com inveja eu, Victor Frankenstein, o maior cientista de todos os tempos. É realmente maravilhoso, não é, Igor?
— Miau — o assistente respondeu, ainda escondido embaixo da mesa de autópsia, sua pelagem negra completamente arrepiada graças aos trovões.
— Não fique com medo, são só uns trovões, já passamos por coisa pior — Frankenstein disse de forma meiga ao felino.
Durante todo o monólogo, os “tubos da perfeita criação” efetuaram o processo de juntar as misturas e filtrar a dose correta até o cadáver. Ao fim, ela pingou de forma generosa sobre o corpo, cujo efeito não era visível de imediato. Mas logo algo começou a borbulhar e a pele do cadáver se tornou menos pútrida.
Para o jovem cientista, aquilo significava mais um dia de trabalho concluído com sucesso.
— Por hoje é isso, Igor — O cientista foi até a bancada colada na parede, onde pegou sua capa de chuva. Ele tirou o jaleco branco e o deixou pendurado no cabide enferrujado — é hora de ir para casa, guarde nosso laboratório com cautela.
O gato o fitou com uma expressão de dar pena, considerando que passaria o resto da noite ali em meio a uma tempestade. Victor se agachou e acariciou o bichano, que no fim era seu único amigo.
— Não posso te levar, tá uma tormenta lá fora. Além disso, eu andando por aí com um gato preto levantaria suspeitas, e não queremos isso. No ramo da ciência a inveja é grande, não demoraria dois minutos para tentarem roubar meu experimento e talvez me matar se descobrissem sobre sua existência.
Decepcionado, o felino foi para debaixo da pia grudada na parede — que também servia como mictório — e se aconchegou ali. Victor vestiu a capa de chuva, puxando o capuz para frente do rosto, no intuito de proteger os óculos de grau.
Ele respirou fundo ao se preparar para abrir a porta do necrotério e deixar seu laboratório. Era sempre uma ansiedade, pois aquele experimento representava seu principal foco na vida, então deixá-lo era como deixar parte de si.
Mas não podia morar ali. A discrição quando se estava basicamente criando algo que traria avanços absurdos à ciência mundial era importante, pois quantos não almejavam essa glória?
Sim, eu estou pensando em você, McAlister.
Por fim, criou coragem para deixar o recinto, sendo automaticamente ensopado pela pesada queda d’água. Frankenstein fechou a porta do necrotério e começou a caminhar pelo fúnebre ambiente que era o cemitério no alto da colina. Felizmente o som da chuva abafava um pouco aquela atmosfera.
Sua casa ficava em um humilde bairro numa parte mais isolada da grande Genebra. Por mais que viesse de uma família relativamente nobre, fora renegado após seus inúmeros fracassos como cientista, sendo considerado um lunático por todos à sua volta.
A gota d’água foi a apresentação de um projeto em que ele dizia ser possível regenerar células a partir de transfusão de sangue animal. Ele chegou a ser expulso da exposição científica de Genebra apenas por essa hipótese ser considerada “estúpida”.
Mas ele até aceitaria aquilo melhor, se uma semana depois o colega Evan McAlister — que também era seu rival — não apresentasse literalmente a mesma ideia, porém suavizando artificialmente os termos.
No fundo, ele sabia que só haviam aceitado porque McAlister era muito mais carismático e quisto na acadêmia que Victor. Para ele, esse parecia ser o único motivo lógico.
Guardar rancor sobre aquilo era inevitável, porém o jovem cientista preferia não lembrar de alguns detalhes específicos sobre esse episódio conturbado de sua vida.
Pois foi nesse dia que tudo desabou.
Victor foi até uma grande árvore. O dia estava chuvoso como aquele que se encontrava no presente. Alí, ele decidiu dar adeus a tudo e a todos, afinal, sua família o rejeitara, seu dote como cientista era uma mentira, Karen, McAlister e até mesmo seu melhor amigo e dupla, Rogi, o havia traído. Foi Rogi quem expôs o projeto inteiro para McAlister.
Mas naquela noite chuvosa, embaixo da árvore, as coisas mudaram.
Como um fato traçado pelo destino, um homem de sobretudo saiu detrás da árvore após um raio atingi-la. Esse homem misterioso pouco falou, mas disse que estava ali para entregar algo, a “Caderneta de Arthur Becker a respeito das misturas”. Em seguida, o homem misterioso foi embora e Victor, desde então, seguiu aprendendo tudo sobre a arte das misturas.
Naturalmente ele conhecia o grande Henry Becker, um físico e químico deverás famoso. Considerou uma honra receber os conhecimentos daquela família de gênios.
Agora estou quase chegando lá. Em breve, todos que me subestimaram irão morder a língua tão forte, mas tão forte que vão cortar e fazer bastante sangue jorrar.
Mas por ora, Victor era apenas um jovem humilde descendo a colina enquanto uma forte chuva deixava o horizonte serrilhado. Uma caminhada que ele já estava acostumado, mas fazê-la sobre velozes gotas de água na cabeça era no mínimo desagradável.
Sempre aproveitava para relembrar do dia que lhe trouxe a oportunidade de ser o maior cientista de todos. Mesmo depois de tanto tempo, ele não conseguia encontrar uma resposta para a identidade do homem misterioso de sobretudo que lhe entregou a caderneta e o motivo dele ter sido escolhido para levar a frente tal conhecimento.
Sobre as misturas, pensava que era apenas ciência oculta, não descoberta pelo grande público.
Chegamos nesse lugar deprimente. Pensou, ao pisar no chão sujo e alagado da rua em que morava.
Ela não possuía exatamente um nome, muitos a chamavam de Vila da Borda, mas para Victor, a situação se resumia como “se não é uma rua nobre, não precisa de nome”. Não que isso fosse totalmente verdade, mas ali era o caso.
Atravessou alguns quarteirões lamentáveis, que mesmo em meio a tempestade, se viam mendigos, bêbados e até meretrizes escondidas nas sombras dos becos. Naturalmente, nenhuma delas sorriu para Victor, pois todos ali conheciam sua origem desonrosa de renegado.
A esse ponto não me importaria de dividir a cama com você, Ginger. Pensou, lembrando da única meretriz que o olhava, porém, não sendo a das mais esbeltas, mas aquilo era opinião popular, Victor admitia que se sentia levemente atraído, mas “seria o fim da picada para sua honra se deitar com uma meretriz”.
Ele enfim chegou até a pousada onde morava, um casarão velho e caindo aos pedaços. O muquifo possuía alguns poucos quartos e só um em condições de se habitar.
O maior presente da minha vida, obrigado, mamãe, papai. Ele sempre lembrava daquilo de forma depreciativa e irônica ao mesmo tempo.
Victor adentrou o lugar pouco iluminado, logo dando de cara com o velho Cole, um senhor mudo que lhe servia como mordomo. Outro presente de honra dos pais.
— Boa noite, Sr. Cole — disse, recebendo apenas um olhar vago em resposta — vou subir, pode levar uma sopa para mim, por favor.
O cientista foi em direção às escadas, com o receio de sempre, pois o soalho dos degraus fazia mais barulho que uma porta em uma madrugada silenciosa se abrindo (sozinha).
O corrimão era sem dúvida a parte mais segura daquelas escadarias, então foi nele que se sustentou na trajetória para o andar de cima. Mas tudo deu certo e ele caminhou aliviado pelo corredor até o quarto B. Puxou a maçaneta, nem se importando com o som que a velha madeira fazia.
Era um compartimento bem vazio, com apenas uma cama, uma mesa de cabeceira, uma lamparina e um closet para guardar suas poucas roupas. Victor se sentou na cama de frente para a janela, onde observou a chuva incessante.
Isso vai durar a noite inteira? Deus, não deixe essa casa cair, preciso dela por mais alguns dias.
A porta se abriu e lá vinha o Sr. Cole, com uma tigela de sopa na mão, derramando um pouco no processo, graças a suas capacidades cognitivas não estarem no melhor dos estados. Entregou ao cientista com um terço da sopa no soalho.
— Obrigado — agradeceu, pouco se importando, já que o objetivo da sopa não era lhe saciar, mas sim o manter vivo.
O Sr. Cole se retirou, deixando Victor no seu estado natural novamente: sozinho.
Ele odiava admitir aquilo, mas às vezes se sentia solitário até demais. Reconhecia que era da própria natureza humana se socializar, porém, ele não devia se deixar abalar por um instinto. A solidão era importante para manter o foco total no projeto. Pessoas geralmente só faziam o processo ser mais devagar.
Mas ainda assim, em meio aos goles da sopa, ele pensava como gostaria de ao menos ter Ginger ali, ou algum assistente real, além de Igor. Na realidade, o próprio Igor já seria melhor.
Igor certamente não me abandonaria.