As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 21
“Somos prisioneiros de nossos sentimentos, mas não dos seus efeitos no mundo não-transcendental” – Pulget, o pequeno.
A bagunça instaurada no quarto de Archie era de deixar qualquer pessoa com “transtorno obsessivo-compulsivo” em uma crise de ansiedade.
Mas havia um motivo plausível para a falta de organização: em breve ele e o irmão deixariam Londres, rumo às esbeltas terras da Suíça, conhecida pelos seus alpes e por ter o melhor chocolate do mundo.
Talvez Paul conheça curiosidades melhores sobre a Suíça. Archie pensou, brincando de lembrar características do país mentalmente. Talvez eu pergunte para ele na viagem, algo de interessante esse garoto tem que saber.
Enquanto organizava a mala com os pertences que levaria para a viagem, refletia sobre a falta de empolgação que sentia em ir ao país da Europa Central. Era verdade que um cliente ali podia ser uma incrível oportunidade de reconhecimento, mas algo martelava em sua mente.
Não posso encontrar Midna, provavelmente seria um homem morto. Recordou quando ele e seus pais visitaram a cidade no passado. Ou talvez ela tenha esquecido, já se passou tanto tempo.
No fundo, Archie sabia que aquilo era impossível, então ainda pretendia evitar ao máximo certa área da cidade. Mas tentou não pensar em suas peripécias anteriores em Genebra. Em vez disso, voltou a tentar lembrar de curiosidades da Suíça.
O tal canivete suíço, como eu queria ter um. Pensou na recente invenção. Foi o quê? Há dois anos? Era um cara com inveja dos canivetes alemães que decidiu inventar isso?
Não lembrava dos detalhes, mas pensou que deveria ser algo do tipo.
Tendo organizado todas as vestes que queria levar na maleta, se levantou, indo até a mesa de cabeceira procurar algo que considerasse útil. Mas sua mente estava tão longe dali, que acabou esbarrando nela e quase derrubando um dos quadros de fotografias ali postos.
— Opa! — exclamou, conseguindo impedi-lo de se espatifar no chão.
A fotografia se tratava da comemoração do noivado de Archie e Mary, no ano anterior. Nela, além do casal jovem e sorridente, havia sua mãe e Paul. Seu pai estava em uma viagem e não se prestou para comparecer à cerimônia. Em vez disso, na foto se encontrava Finn Thompson, um ricaço de Genebra que era um grande amigo de seu pai e padrinho de Archie.
Um pai que me odeia, um sogro que me odeia e um padrinho lunático patriarca de uma família de gente doida. Esplêndido. Archie concluiu, ao posicionar o quadro no lugar.
Encontrou apenas seu relógio de interesse na mesa de cabeceira, retornando à bagunça da sua cama.
Quase uma hora depois a mala estava arrumada, ao contrário do seu quarto, mas poderia adiar aquele problema por ora. Decidiu levar suas coisas para baixo, pois em breve uma carruagem chegaria para levá-los até a estação de King’s Cross.
Deixou o quarto, encarando o desafio de descer a escada com uma maleta pesada. Cada degrau eliminado era um estrondo que se fazia, mas não havia outro jeito. Não iria pedir ao pobre mordomo Reagan que o ajudasse, pois o senhor já era de idade e deixaria provavelmente a mala despencar e por consequência, perder o emprego que dedicou a vida para manter.
Mas assim que pisou no último degrau, foi surpreendido pelo próprio mordomo Reagan, que aparentemente o aguardava ali. Como trazia a maleta de costas, acabou não o notando.
— Posso levar a maleta para os fundos, Archie — ele disse, com generosidade — como bem sabe, já fui peso pesado número um como pugilista.
— Obrigado, Reagan — Apesar de duvidar com muita força daquela afirmação, deixou o mordomo fazer o seu trabalho.
Exausto, o garoto apenas se jogou na primeira poltrona que viu. Se acomodou bem e fechou os olhos; havia esquecido o quão cansativo era se preparar para uma viagem.
— O que está fazendo aí? — ouviu, como um pesadelo o acordando, a voz não muito contente de seu pai.
— Estou relaxando, tava arrumando as minhas coisas… algum problema eu sentar aqui? O Paul fica o dia inteiro nessa poltrona — acrescentou, já esperando ser confrontado.
Henry teve que aceitar os argumentos, não retrucando e apenas arrastando uma das cadeiras da sala de estar para se acomodar diante do filho legítimo.
— Escute, Archie. Essa é a primeira viagem do seu irmão para fora do país — o filho acenou positivamente — para ele, vai ser algo… mágico, assim podemos dizer.
— Sim — eu sei exatamente o que você vai dizer, pai.
— Quero que seja responsável, nada de colocá-lo em suas investigações… arriscadas, me entende? — o tom do pai era incisivo e desafiador.
— Entendo, pai — era uma tarefa difícil responder como se estivessem tendo uma conversa normal, e não algo que se assemelhasse a um patrão deixando seu filho na mão de um estranho não confiável.
E sem dizer mais nada, Henry se levantou e deixou a sala. O pai iria para Liverpool antes dos irmãos embarcarem, portanto, aquelas eram as suas últimas palavras a Archie antes dele partir.
Pouco importa se acontecer algo comigo, contanto que seu filho brilhante esteja bem, né?
***
Paul retornava para casa após sua última aula de esgrima por algum tempo, pois em breve faria uma viagem para a Suíça, onde passaria anos na Universidade de Genebra. Por um lado estava feliz, já que conheceria um pouco mais daquele mundo, por outro, uma melancolia martelava sua mente, na perspectiva de deixar o lugar que já havia se acostumado a chamar de “casa”.
Talvez seja intrínseco ao ser humano. Paul refletiu. Pulget uma vez disse “O Adeus, independente de sua natureza, nunca é neutro de sentimentos”.
O garoto achava fascinante como o seu filósofo favorito sempre tinha alguma coisa a lhe ensinar. Ele tinha consciência de que o sábio cuja alcunha era “o pequeno” não se tratava de um dos maiores pensadores da história num consenso entre os acadêmicos. Mas para Paul, ele chegava no mesmo patamar de Descartes, Aristóteles, Kant e outros.
Porém, tinha noção que aquilo era puro saudosismo, pelo fato de Pulget ser o seu gatilho para adentrar no ramo da filosofia.
Sem perceber, Paul sempre caminhava cabisbaixo enquanto refletia. Apesar do professor de etiqueta dizer que o ideal era andar de cabeça levantada. O garoto sentia um leve desconforto de encarar as pessoas, pois no passado era obrigado a fazer isso para sobreviver mais um dia e passar despercebido.
Mas acabou não percebendo quando se chocou com alguém, mais especificamente, um garoto da sua idade.
— Qualé, seu imbecil — o garoto, quase o dobro do tamanho de Paul, o empurrou, com ele caindo no chão e ficando intimidado diante da visão de quatro garotos tão grandes quanto o seu líder — por que tá andando na nossa área? E ainda atrapalhando o futebol da gangue do Quentin!
Paul conhecia muito bem Quentin e sua gangue, formada por: Quentin, Roger, Richie e Ray.
Richie, que era o mais balofo e assustador deles, fuzilava Paul com os olhos, enquanto segurava a bola embaixo dos braços.
— Desculpa, caras — Paul tentou se explicar, sendo incapaz de esconder o medo — eu estava voltando para casa… me distraí.
— É claro que se distraiu — Ray, o mais debochado deles, disse — fica andando por aí cabisbaixo, parece até um mendigo delinquente com medo de ser pego… espera um pouco, não era isso que ele era, Quentin?
— Exatamente, Ray — Quentin se agachou e se aproximou de Paul, que sentia o suor começando a escorrer de sua testa — olha só, o garotinho de rua adotado pelos Becker e bem cuidado, se tornou um chatonildo intelectual, que história tocante. Pena que não consegue sequer caminhar na rua como gente. Como se diz, galera?
— Uma vez esquisito, sempre esquisito — os outros disseram em coro.
A gangue então começou a gargalhar. Paul não conseguiu evitar que as lágrimas caíssem involuntariamente. Ele odiava aqueles caras, jamais poderia se enturmar com eles como sua mãe gostaria.
— Olha só, o bebê está chorando — Ray disse, o estômago doendo de tanto rir — seus pais nunca te ensinaram a não ser um chorão? Ah é, você não tem pais de verdade né? HAHAHA
— Cala a boca! — Paul não conseguiu se conter, gritando violentamente para os rivais, que se calaram na mesma hora.
— Como é que é? — Quentin parecia incrédulo — ah, seu folgado, vai ver o que é bom para a tosse. Richie, ele é todo seu.
O gigante Richie então se aproximou do encolhido Paul. O garoto sabia que era seu fim, que teria de comparecer à academia com o olho roxo. De fato, um completo desastre.
Ele só queria não ser daquele jeito, não ser aquele fracote que qualquer um passava por cima.
— Preparado, Becker? — Richie perguntou, com sua voz abafada, soprando o punho esquerdo em seguida. O garoto enorme ia efetuar o soco, quando uma voz o interrompeu:
— Ora ora, se não é Quentin e sua gangue — era uma voz feminina.
Paul nunca sentiu tanto alívio na vida ao ver que era Mary, a noiva de seu irmão.
— Ah não. É a Mary! — Ray exclamou.
— Vamos dar o fora daqui, gangue do Quentin — Quentin disse aos seus confrades, até mesmo Richie saiu disparado. Era natural que qualquer um tivesse medo da filha de um policial e Mary parecia ter ciência disso.
— Obrigado — Paul agradeceu, um pouco tímido. Envergonhado por ela o ter encontrado em uma situação tão lamentável.
— Você tá bem? — ela perguntou, preocupada.
— Sim… eles só me atormentaram um pouco.
— Entendi. Vem, eu te acompanho até em casa.
Paul e Mary caminharam pela rua, enquanto o garoto contava em detalhes o que havia acontecido e como eles o haviam ofendido. A garota o ouvia sempre de forma atenciosa, e Paul, mesmo sendo alguém tão recluso, se abria sem perceber apenas com a cunhada. Ela de certa forma lhe passava uma segurança feminina que sua mãe adotiva não passava.
— É sério que eles falaram isso para você? Que ridículos — Mary disse, após ouvir o relato.
— Talvez eles estejam certos — Paul disse, cabisbaixo — sabe, às vezes eu só queria ser como Archie.
— Como assim? — Mary perguntou, curiosa.
— Archie é legal, carismático, tem muitos amigos, uma pessoa muito mais sociável do que eu seria capaz de ser — Paul estava dando seu melhor para não externar mais lágrimas — meu pai diz que eu sou o melhor por me focar no conhecimento, mas eu só não queria ser tão… esquisito, às vezes.
Olha o que o Sr. Becker coloca na cabeça dele, Archie nunca mentiu. A jovem pensou.
Mary parou de caminhar, sua preocupação realmente se justificando. Ela então se agachou para ficar na altura do garoto, colocando uma mão em seu ombro, na tentativa de o confortar. Desde que Paul apareceu ali como filho adotivo dos Becker, ela o “adotou” como um irmãozinho.
— Escuta aqui, Paul. Em primeiro lugar: você não deveria considerar qualquer coisa que Quentin e sua gangue dizem, eles são só garotos travessos que falam sem pensar. E segundo, o senhor não deveria se comparar ao seu irmão, independente do que o seu pai diga. Archie é maravilhoso, a sua forma, e você, Paul, é incrível também. Um tem coisas que o outro não tem e vice-versa, e isso é completamente normal.
— Entendi, é como Pulget disse uma vez “A individualidade vai além do casulo não-transcendental e é isso que nos torna especiais”.
— Exatamente isso.
Paul não pôde deixar de sorrir. Mesmo não possuindo praticamente nenhum amigo, deveria ser grato por ter alguém como Mary, com quem poderia contar. Eles voltaram a caminhar rumo à residência dos Becker.
Mesmo se sentindo melhor, ainda guardava aquela pulga atrás da orelha, aquelas dúvidas sobre si próprio.
***
Já era o fim da tarde, quando os Becker — exceto o pai — e Mary caminhavam pela grande King’s Cross, um dos mais importantes centros ferroviários da cidade real. A fumaça e o som dos sinos já eram parte do ambiente.
Paul, que nunca havia pisado na estação, olhava com fascínio a aglomeração de transeuntes e os transportes surgindo na estação.
Logo a família encontrou a parada de onde partiria o trem dos irmãos. O mais velho, já possuindo certa experiência em viajar de trem, apenas reclamou mentalmente sobre a quantidade de fumaça ali.
— Essa arquitetura é impressionante — Paul comentou, atônito — a forma como as coisas se conectam! Nunca ouvi sobre o quão impressionante era uma estação de trem.
— É realmente de tirar o fôlego — Archie disse, distraído.
— Eu li que ele pode chegar em uma velocidade de trezentos quilômetros por hora, é verdade?
— Não podemos afirmar que chega a tal velocidade sempre, querido — a mãe respondeu — mas é sua capacidade máxima… Tudo bem, Archie?
— Oi? — O jovem demorou a perceber a pergunta — Ah, sim, mãe. Só estava um pouco disperso.
Ela o fitou com receio. Sentia que precisava dizer algo antes dele partir. Então o chamou para um canto mais afastado dos demais, cujo barulho dos transeuntes entregava a privacidade que ela queria.
— O que foi, mãe? Tá tudo bem?
— É o seu pai, Archie — O filho desviou o olhar, não queria falar sobre o pai, ela sabia — eu vou ir para Liverpool e… tentar falar com ele, de forma séria. Ele não pode continuar o tratando desse jeito, ele precisa te aceitar como você é.
Archie ficou surpreso. Ele sabia que as discussões da mãe e do pai sobre ele eram constantes e tinha ciência do quanto ela o defendia. Ainda assim, algo o intrigava.
— Por que isso agora, mãe?
— Eu acho que já está passando dos limites — Agatha tentou esconder o fato de aquilo, acima de tudo, ser um pressentimento materno — eu soube como ele se despediu de você, Olivia me contou. Eu não vou mais tolerar isso, assim como eu não tolero a forma que ele trata seu irmão, como um mero espelho para satisfazer seu ego.
Então ocorreu algo que ela não esperava: o filho legítimo a abraçou. Ela retribuiu aquele momento puramente fraterno e sem uma real explicação.
— Tá tudo bem, mãe — ele disse quando a soltou — a senhora não precisa se martelar com o que acontece entre mim e o papai. Eu já aceitei, mas eu não dependo dele para seguir a vida do jeito que tô seguindo.
Agatha acenou positivamente. Ela sabia que discutir mais não adiantaria, mas jamais deixaria por isso mesmo algo que ela considerava crucial de se resolver, tanto para o bem do marido quanto do filho.
Ambos retornaram para próximo dos demais. Paul continuava observando a estação com gosto, mas Mary, curiosa do jeito que era, fitou Archie e leu com precisão seus sentimentos.
BLÉM-BLÉM!
O sino soou, em seguida surgiu um imenso trem de viagem. Ele parou exatamente onde os Becker e demais pessoas o aguardavam. Assim que a locomotiva atravessou a parada e o vagão de embarque surgiu, o trem enfim parou e uma das portas se abriram, dela surgindo um dos condutores.
Ele levou o apito à boca e o agudo ecoou por toda a estação.
— Todos a bordo! O expresso partirá em dez minutos — ele anunciou com um megafone — seu destino é Dover.
Após ele terminar, a agitação para adentrar o trem se iniciou. Archie e Paul se prepararam para partir. Ambos abraçaram a mãe e Mary acariciou os cabelos de Paul, em seguida se despediu de Archie com um beijo e um abraço.
— Boa sorte no caso, eu vou querer saber de tudo — ela disse em seu ouvido.
— Eu acho que vai dar uma boa história — ele disse — te amo.
— Também te amo.
Assim os dois se separaram e os irmãos Becker acompanharam a multidão para o interior do trem. O vagão e a cabine deles naturalmente eram da mais alta classe. A parte interna do expresso era generosa, na opinião de Paul, se resumindo basicamente — à primeira vista — em um corredor com cabines nas extremidades.
Porém, ainda não havia oportunidade para contemplar o trem em meio a aglomeração transitória, então os irmãos logo se preocuparam em encontrar sua cabine e se acomodar ali até as coisas se acalmarem no expresso.
Eles encontraram, um espaço modesto, porém suficiente para uma viagem longa. Archie conseguiu encaixar as malas no bagageiro, se acomodando no banco de estofado macio.
O sino soou novamente, indicando que a hora da partida havia chegado. O trem aos poucos começava a se mover. Os irmãos observaram a janela e localizaram a mãe e Mary acenando para eles. Em segundos, elas e a estação se afastaram por completo.
Paul, mesmo sentindo a empolgação de estar viajando pela primeira vez, não conseguiu impedir aquela melancolia e sentimento de adeus ao deixar o lar.
Já Archie, lembrou do que a mãe disse. Ele duvidava que o pai algum dia fosse mudar de ideia a seu respeito, mas ao parar para refletir, conseguia notar o quanto aquilo afetava e afetaria para sempre a família.
A culpa não é minha, de qualquer jeito.
Os vales e campos verdes surgiam sobre o pôr-do-sol. De repente se perguntou como pessoas que sentem náuseas em viagens aguentariam um trem se deslocando sem parar por mais de setecentos quilômetros.
Então sua sede por curiosidades suíças retornou, agora com Paul ali poderia obter as respostas que queria.
O irmão caçula intercalava entre espiar a janela e a linda paisagem afora e ler a página de um grosso livro de geografia. Paul e livros a esse ponto são praticamente sinônimos.
— Ai, Paul, o que você sabe sobre a Suíça?
Paul levantou um olhar surpreso para Archie. Mas se parasse para refletir, ficaria bastante tempo de monotonia naquela cabine. Se estivesse lendo algo mais teórico, não perderia tempo discutindo futilidades, mas como estava apenas conferindo as semelhanças das gravuras do livro com a realidade, não viu problemas em interagir.
— Vejamos — eram tantas coisas que precisou escolher uma que considerava grandiosa — eles têm o melhor chocolate do mundo, como sabemos.
— Sério que essa é a primeira coisa que veio à sua mente? Pensei que essa fosse a “curiosidade dos leigos” ou coisa assim.
— Bom, é a mais popular, mas se quer algo mais específico — Paul permaneceu um tempo refletindo, escolhendo o que diria — bom, falando de Genebra, foi lá que John Calvin, um dos pais do movimento protestante mais atuou. Tanto que a universidade a qual irei me instruir foi fundada por ele.
— Humm — Archie tentou fingir interesse, mas era verdade que não sabia do último fato.
— Inclusive, há um boato interessante nisso tudo — o irmão continuou — parece que em algumas das vezes que o teólogo falou publicamente, ocasionalmente surgia um lunático que gritava algo como “Seus ensinamentos são errados, Martin Luther recebeu o poder do verdadeiro Deus e o ignorou, nós vimos”. Eles sempre iam embora quase imediatamente depois.
Isso, sim, é interessante. Archie pensou.
— O que acham é que eles faziam parte de uma seita e juravam ter visto algo sobrenatural acontecer com Martin Luther na praça de Wittenberg — Paul continuou — Como Calvin era colega de Luther, queriam o convencer a trazer o confrade a razão e liderar a tal seita… isso pode ser só mais uma lenda urbana, mas algumas pessoas gostam de conspirar sobre isso, não sei por quê.
Eu sei o porquê, irmão. Archie naturalmente se interessava por qualquer mistério, então para ele era um prato cheio.
Mas como o irmão claramente achava aquela história uma perda de tempo, deixou para lá.
Logo a monotonia da viagem começou a tomar conta de Archie, que sentiu suas pálpebras caindo. Cochilou antes que pudesse dar conta, ao menos já cortaria um tempo de viagem.
***
A viagem foi mais longa do que esperavam. Tiveram que deixar o expresso em Dover e atravessar o mar de navio até chegar no continente Europeu. De lá, pegaram outro expresso em uma cidade da França — que Archie não descobriu o nome — e assim seguiram a viagem de trem até a Suíça.
Paul, que passou ambas as viagens lendo, decidiu que já havia conferido demais os vales, montanhas e toda a vegetação inglesa e francesa pela qual haviam passado. Retornaria ao livro assim que os alpes suíços começassem a surgir.
Notando que a agitação no trem havia cessado, Paul decidiu explorar seus pormenores. Vendo que Archie estava afundado no sono, deixou a cabine sem avisar o irmão. Aquilo podia ser uma irresponsabilidade se Paul fosse uma criança travessa, como Quentin e sua gangue.
Já vou fazer quatorze anos, daqui a pouco sou um homem feito. Ele pensou. Que mal faz um pouco de liberdade?
Ao entrar no corredor do vagão, viu alguns poucos passageiros transitando por ali. Paul sabia que não podia chamar tanta atenção, então evitou olhar para eles. Enquanto atravessava o vagão, se viu refletindo sobre a maravilha de caminhar tranquilamente por um veículo que cruzava quilômetros por hora.
Lembrou de como antigamente, até mesmo nos tempos de Pulget, o pequeno, era difícil percorrer grandes distâncias. Haviam estradas de terra, onde demoradas cruzadas eram feitas a cavalo. Ou as grandes navegações, que igualmente duravam e ainda podiam ser assoladas por tempestades.
Porém, ali, com apenas a tecnologia do vapor, eles tinham ido além dos limites. Mas Paul sabia que logo a tecnologia da eletricidade dominaria o mundo, não precisava ser um gênio para ter aquela leitura.
Recordou também como o termo tecnologia fora cunhado pelo alemão Johann Beckmann no século XVIII, porém o que poucos notaram é que na realidade, Pulget o usou pela primeira vez em um de seus discursos em meados de 1522 e 1525.
Então chegou ao fim do vagão, onde viu um sentinela e logo percebeu que ele jamais o deixaria seguir adiante. Porém, algo o chamou a atenção: a última cabine a esquerda possuía um pergaminho pendurado, onde dizia “interditado”.
— Está perdido, criança? — o sentinela perguntou para um Paul distraído.
— Ah… estava só andando pela cabine — ele tentou explicar — é minha primeira vez viajando de trem.
O oficial o fitou de forma suspeita. Era extremamente comum que crianças da rua invadissem o trem sem um bilhete e se passassem por filhos de nobres. Mas para o guarda, não parecia o caso, pois a criança estava bem vestida e limpa o suficiente.
— Qual é o seu nome?
— Paul Becker, senhor.
Na mesma hora a expressão do sentinela se alterou para algo mais gentil.
— Oh, é uma honra conhecê-lo. Já ouvi falar da sua genialidade mirim — disse apertando a mão do garoto com entusiasmo — perdão pela rudeza, são os ossos do ofício.
— Certo — Paul se sentiu um tanto desconfortável. Ainda não havia se acostumado a lidar com a sua fama de filho gênio de um dos maiores gênios vivos — ah, eu queria fazer uma pergunta.
— Pois a faça.
— O que aconteceu nessa cabine? — indicou a interditada.
— Ahhn… é complicado, pequeno senhor — o sentinela disse — um homem morreu nessa cabine.
— Quê?! — De repente o que Paul sentiu foi arrepios. Sabia que existiam histórias de pessoas atropeladas por trens, mas morrerem dentro dele era novidade — como?
— Há muitas possibilidades, alguns dizem que foi suicídio, outros que ele foi envenenado. É muito provável que tenha se suicidado. O homem era um escritor em decadência, sabe como os artistas são sentimentais.
Paul achou mórbido. Era bem provável que ninguém nunca entraria naquela cabine amaldiçoada.
— Tá fazendo o que aqui? — ouviu a incontestável voz de Archie. Pelo visto seu sono não havia durado muito.
— Estava explorando o trem.
— Olha, se eu te perder sou eu quem vai morar na rua, vê se não apronta, Paul.
Você não é bom em dar sermões, Archie.
De repente o mais velho notou a cabine interditada, Paul logo explicou o que ouviu do guarda. Nunca viu Archie tão empolgado com algo que ele o contou.
— Uau — Archie exclamou — isso seria um caso interessante a se resolver, um “assassinato no expresso”.
***
A grande Genebra enfim surgiu, tal qual os alpes suíços. O expresso chegava à estação de Genéve. Logo a agitação e barulheira se instaurou por todo o trem.
Os irmãos Becker já organizavam as coisas para deixar a cabine em breve. Paul, só de olhar pela janela um pedacinho da estação e de Genebra já sentia empolgação. Mas Archie já via por outra perspectiva: caminharia por aquela cidade torcendo para não ser encontrado por alguém.
Eu não te odeio, Midna. Ele pensou, com um dilema mental. Só não quero morrer ainda.
Logo o vagão ia se esvaziando e eles conseguiram deixar o trem. Os olhos de Paul se moviam freneticamente à medida que iam deixando a estação e adentrando a fina arquitetura de Genebra.
Felizmente o hotel ao qual se hospedariam ficava perto dali, então não precisavam arrastar suas malas por muito tempo, nem contratar um serviço de carona.
— É ainda mais lindo que nos livros — Paul comentou, ao avistar uma catedral.
— Às vezes é bom sair dos livros, não é mesmo? — Archie disse, varrendo todas as direções com os olhos.
— Às vezes — Paul concordou.
Apesar de tudo, Archie estava com saudade daquela sensação, a sensação de viajar, sair da zona de conforto, ainda mais para uma investigação. Mas logo o Hotel Overlook surgiu, onde iriam passar alguns dias até Paul ser convocado pela academia.
O curioso era que a arquitetura do hotel se assemelhava mais a uma mansão que qualquer outra coisa. Isso ficou mais evidente quando chegaram na fachada e notaram a recepção, muito semelhante a um hall padrão.
Claramente sendo aguardados, não tiveram problemas ao entrar, por mais que Paul parecesse um tanto amedrontado ao olhar os guardas imponentes na entrada. Caminharam pelo soalho refinado até o recepcionista, que os recebeu com um sorriso.
— Boa tarde, senhores, meu nome é Caesar — ele os cumprimentou — Archibald e Paul Becker, estou certo?
— Aham.
— Okay… — Caesar analisou sua prancheta — tudo certo, senhores, sua suíte é a B no segundo andar. Tenham uma boa estadia.
***
Enfim, estavam hospedados em um dos melhores hotéis na cidade, tudo que eles precisavam fazer era esperar. No caso de Paul, esperar a convocação, e, no caso de Archie, a ligação do seu cliente.
Enquanto o irmão caçula observava as janelas, que davam uma visão esplêndida do centro da cidade, o mais velho encontrou mais interesse em brincar com seu chapéu deitado na confortável cama.
Fico me perguntando se há alguma possibilidade do caso de Damon tem a ver com o desaparecimento de Jack Ulysses. Archie refletiu. Seria deveras interessante.
Trimm-Trimm!
Sem perder tempo, o detetive amador tratou de atender o telefone, sentindo a empolgação do trabalho.
E de fato, era Damon.
— Olá, Monsieur Becker — a voz de gentleman do cliente era inconfundível — já se estabeleceu em Genebra, suponho.
— Estou aqui, pronto para começar o caso. De que tipo de ocorrência estamos falando?
— Eu prefiro explicar em um local reservado — Damon fez uma pausa — me encontre às nove horas na colina ao norte, próximo ao Cemitério Romero, lá ninguém poderá nos ouvir.
— É tão sério assim? — Archie perguntou, a empolgação chegando ao ápice.
— Digamos que sim… posso lhe aguardar?
— Esteja certo, estarei aí.
— Excelente, Monsieur Becker.
Então a ligação encerrou. Archie sabia que precisaria levar Paul, já que era contra as regras do hotel deixar menores sozinhos ali. Mas ele tinha a desculpa perfeita para clientes criteriosos como Damon: Paul era seu irmão assistente, seu próprio Watson.
Em circunstâncias comuns o irmão odiaria ser obrigado a sair com ele, mas como parecia maravilhado com a possibilidade de conhecer mais a cidade, aquilo não seria um problema naquela ocasião.
Sabia que o pai iria odiar a ideia, mas o que poderia dar errado?