As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 23
“E naquele dia o sol foi embora. Medo, pavor e insegurança caíram sobre eles por tempo demais, até o sol retornar. Assim foi a primeira noite da humanidade, assim que a humanidade lida com o desconhecido”. – Pulget, o Pequeno
As ruas de Londres ao anoitecer eram minimamente agitadas. Muitas pessoas retornavam para casa, outras viam uma boa oportunidade de encontrar os amigos em um pub. Alguns até iam para o teatro, em especial, filhos de duques e barões para cortejar nobres donzelas.
Esse era o caso de Andrew e Alessa.
Andrew era filho de um grande duque, enquanto Alessa era filha de um lorde amigo do pai de Andrew. Eles caminhavam pela rua do centro da cidade, rumo a um teatro, onde haveria uma grande orquestra.
Eles conversavam felizes da vida, com Andrew a cortejando sempre que encontrava uma oportunidade. Um casal de jovens que com certeza dariam certo, teriam filhos e o lorde pai de Alessa seria um homem feito em ter conexão direta aos bens do duque.
Porém, para uma noite tão comum, o que aconteceu em seguida foi o suficiente para agitar o casal tão empolgado.
“O que é aquilo, Andrew?”, Alessa perguntou, receosa, ao ver a lua desaparecer aos poucos do céu.
“Não se preocupe, minha querida, chamam de eclipse”, o filho do duque a tranquilizou, aproveitando para envolver as mãos em seu ombro de forma protetora.
“Mas isso é estranho, faz anos que não acontece um eclipse, nem sequer vi nos jornais a notícia de que haveria um”, o jovem refletiu, mas de repente começou a sentir uma forte dor de barriga.
“É muito estranho, parece que está ficando mais escuro” a filha do lorde expressou seu receio olhando para o céu.
Mas ao se voltar para o amado pretendente, levou um susto. Ele não parecia estar passando bem.
“Andrew, meu querido, você… está bem?”, a donzela ainda tentou perguntar, assustada como nunca.
Andrew se contorcia e emitia um grunhido sinistro. Alessa cobriu a boca com as mãos ao ver a imagem perturbadora do seu amado ganhando pelos no corpo, os músculos crescendo ainda mais, assim como as orelhas. Quando enfim terminou a transformação, o amado permaneceu imóvel, sua respiração bastante alta.
Ao se virar, Andrew já não era mais o adorável e galanteador filho do duque, mas sim uma fera. Suas têmporas pulsavam. Afiadas garras agora estavam expostas em suas mãos.
O olhar do homem lobo só dizia uma coisa para a jovem:
CORRA!
E Alessa correu, correu e muito.
Levantou o vestido e avançou o mais rápido que conseguiu, sem olhar para trás. A confusão que atormentava sua mente era menor que o seu instinto de sobrevivência. Naquele momento não era mais a filha do lorde, mas apenas uma garota fugindo de um monstro, como em um conto de terror.
Atravessando o beco, ela se surpreendeu ao quase ser atingida por uma pequena multidão correndo. Ela não queria prestar atenção, mas a mente entendeu que não fora só Andrew a se transformar em uma criatura monstruosa.
Parecia um pesadelo, porém não era, conseguia sentir cada milímetro do corpo em calafrios. O alívio veio quando avistou uma porta aberta no fim da rua.
Alessa entrou e fechou-a com força. Se escondeu no cômodo mais fundo que encontrou, sem nem analisar nada, já que o breu absoluto engolia aquela casa estranha.
Fssss… fssss.
Sua respiração ofegante abafava os sons dos gritos lá fora. Ao menos a adrenalina e desespero decaía gradativamente.
“Junte-se a mim, querida!” Uma voz esganiçada disse.
“AHHHHHHHH!”, Alessa gritou, mas era tarde demais, Andrew havia a encontrado.
***
Mas o que tá acontecendo aqui? Mary se perguntava, assustada, enquanto corria desnorteada pelo caos instaurado.
Tudo aconteceu muito rápido, pois assim que deixou a residência da tutora Samantha, já pôde notar algumas pessoas desesperadas correndo.
Inicialmente pensou ser algum tipo de ataque militar, o que já seria assustador o suficiente. Mas no caminho para a casa tudo piorou de forma exponencial.
Quando Mary notou aquelas criaturas de olhos vermelho-sangue, presas afiadas e garras longas, seu instinto de sobrevivência não tardou em agir.
Porém ela era apenas um pontinho no meio de todo o alvoroço. Enquanto corria sem olhar para trás, conseguiu visualizar algumas cenas aterradoras. Viu em uma fachada dois vampiros jogando jokenpo em frente a um homem desesperado caído no chão. Ao fim da aposta, uma das criaturas dilacerou a jugular do pobre homem.
E isso era apenas um resumo em meio a gritos de desespero e malícia que enchiam o pandemônio nas ruas. A garota não conseguiu processar direito o que ocorria, nem sequer sabia para onde estava indo.
Minha casa, preciso ir para lá. Tentou colocar em sua mente. Deus, não deixe meu pai ter morrido.
As lágrimas caíram involuntariamente. Em momento nenhum da sua vida foi preparada para aquilo, mas precisava ser forte, naquele momento mais do que em qualquer outro.
O que mais a surpreendeu durante todo o momento em que atravessava as ruas correndo, era o fato dela passar despercebida. Chegou até a arrancar metade da sua saia longa, para poder correr sem empecilhos.
Ainda bem que tive essa ideia antes de saber o que diabos era o verdadeiro problema. Se sentiu minimamente aliviada, com o sangue gelado.
— Anhhnhn MIOLOS — Mary distinguiu uma voz às suas costas, desafinada e vazia.
Preferia não ter olhado para trás. Era um zumbi, mas não qualquer zumbi. Aquele corria em sua direção como um maratonista. Sua sorte havia acabado. Mary teve que acelerar ainda mais o passo.
— NÃO! — ela gritou, de forma inconsciente, pelo puro desespero.
Mas avistando o caminho à sua frente, não viu muitas oportunidades para fugir, pois haviam ateado fogo por toda parte, além das pilhas de corpos espalhados como obstáculos pelo chão.
O zumbi acelerava ainda mais e ela sentia que estava sendo alcançada. Calma, Mary, não aceita a morte ainda, não aceita.
Sua única opção era continuar correndo. Porém, sabia que só poderia se safar daquela situação por um milagre.
BOOM!
E o milagre veio, como um disparo de escopeta em cheio nos miolos da criatura. O zumbi faleceu na hora. Mary parou, em choque, até contemplar seu salvador, a cena mais aliviante desde que se encontrou no meio daquela balbúrdia tenebrosa.
— Pai — Mary o abraçou, com força.
Maxwell retribuiu, igualmente aliviado. Sua aparência não era das melhores, com vários arranhões e um esgotamento nítido em sua expressão. Provavelmente a situação de todos os que ainda estavam vivos naquela noite.
— Pai, o que tá acontecendo aqui? Esses monstros… nada faz sentido — Mary externou, olhando para os lados, tentando encontrar algum vestígio de normalidade.
— Eu também não sei, filha. Eu já estava em casa quando aconteceu. Mas o que mais me surpreende é como você conseguiu sobreviver todo esse tempo, querida.
— Eu tive sorte — ela respondeu, começando a se acalmar um pouco e regulando a respiração, ignorando a crença limitante de seu pai relacionada a ela — a gente precisa sair daqui, tem um monte deles que podem aparecer a qualquer momento.
Maxwell assentiu, ambos deram as mãos com firmeza e saíram andando, em busca de um lugar seguro.
Adentraram o beco mais próximo, encontrando uma porta, provavelmente pertencente a um depósito. Eles fizeram um esforço para abri-la, mas felizmente ela não estava trancada e eles se abrigaram ali dentro.
Assim que Maxwell fechou a porta, conseguiram ouvir sons de criaturas enchendo a rua que a pouco estavam. Sentiram um frio na espinha.
Ficaram em silêncio por um tempo no local escuro, esfriando a cabeça e deixando toda aquela adrenalina ir embora. O depósito mal iluminado parecia vazio e cheirava a fezes, mas não iriam reclamar.
Naquele momento as questões começaram a vir na cabeça de Mary, sobre a mãe ter ido para a Itália na noite anterior, além de Archie e Paul em Genebra.
Será que isso aconteceu só aqui? Por mais que fosse um pensamento indicando seu azar, preferia que fosse aquilo mesmo, ao menos os outros estariam seguros. Se for o caso, logo as autoridades vão dar um jeito nisso, não é?
— Pai — ela decidiu quebrar o silêncio — o senhor disse que estava em casa quando tudo aconteceu. Por que não ficou lá?
— Vampiros — Maxwell apenas pronunciou, olhando fixamente para a porta, atônito — eles vieram em um bando… para dentro de casa, carregando algumas pessoas. Mary, eles me pouparam, disseram que eu era “carne velha”. Mas eu não podia simplesmente ver eles matando aquelas pessoas, peguei a escopeta e disparei contra eles… não deu certo, mas ainda assim, eles só riram e começaram uma contagem regressiva. Eu não consegui agir mais, apenas fugi — ele colocou a mão sobre a cabeça, parecendo decepcionado consigo mesmo — eu deixei aquelas pessoas morrerem.
— Não foi culpa sua, pai — Mary tentou dizer, indo se juntar a ele e o abraçando, grata por tê-lo ali são e salvo — não eram bandidos, eram monstros, o senhor não foi treinado para isso. Ninguém estaria preparado.
Houve novamente um momento de quietude entre os dois, com o som das chamas e dos gritos incessantes lá fora.
— O que faremos, filha? — ele perguntou, parecendo realmente desnorteado e indefeso, mesmo possuindo uma arma nas mãos.
Mary tampouco sabia o que fazer dali em diante. Certamente não podiam ficar ali para sempre, mas ela decidiu ser realista e buscar um objetivo que ao menos fosse deixar seu coração mais leve. No entanto, não descartou a possibilidade de se salvarem.
— Tá, primeiro a gente precisa encontrar um rádio, para ver se esse caos foi só aqui — ela começou — pelo que entendi, foram as pessoas que se transformaram nesses monstros, mas eu não sei se ainda possuem a mesma consciência ou são apenas agentes do caos. De qualquer forma, com um rádio a gente teria uma ideia da dimensão disso… além disso, precisamos de uma forma de se comunicar com alguém de fora, e eu só consigo pensar em uma coisa que nos possibilite isso.
— Um telégrafo! — Maxwell descobriu, mas não elevou as expectativas — provavelmente há um no batalhão, mas aquele lugar deve estar todo destruído agora.
— Olha, a realidade a gente já tem, não precisamos somar isso com mais pessimismo, tá bom? — a quem eu tô tentando enganar, sair daqui já é praticamente uma garantia de morte — vamos nos focar em encontrar o rádio primeiro.
Maxwell assentiu. Mas eles permaneceram ali por um tempo, pois acima de tudo, precisavam criar minuciosamente a coragem para lidar com a situação.
***
— Então quer dizer que eu sou o Deus, o Ser Perfeito, Aquele que ascende, o Príncipe e o Rei? Sou eu aquele que foi profetizado a quase quinhentos anos e trará purificação a este mundo? — Weezy perguntou, terminando por fim sua testificação.
— Sim, meu Senhor — Damon, mumificado, disse ao seu mestre — por muito tempo a humanidade tem acreditado em um Messias que veio, morreu, ressuscitou e viria de novo para ascender os justos aos céus. Porém, esse messias nunca veio e nunca mandou sinais. Mas agora, aqui, diante de nós, está o enviado do Inominável. Nossa confraternização tem adorado por séculos, sempre de forma fiel, meu Senhor, ao contrário dos adoradores do falso deus, que são esnobes e usam sua religião para oprimir aqueles que estão nas margens da sociedade. É por isso que damos preferência a eles na hora dos sacrifícios. Mas nada disso importa mais, pois em setenta e duas horas esse Eclipse chegará ao fim e todo o mundo saberá e adorará o Weezy!
Weezy não entendia com clareza absoluta as palavras daquele homem, tampouco tinha noção concreta de sua própria identidade, então absorveu aqueles títulos como a sendo. Havia um conhecimento prévio da existência em seu interior, porém muitas coisas naquele ambiente lhe pareciam desconhecidas.
Pensou que teria de absorver mais conhecimento sobre aquele mundo para dominá-lo.
Archie, Paul e Frankenstein assistiam em silêncio o momento sagrado. Eles não podiam ser notados, pois não sabiam das capacidades daquela criatura bizarra.
— Sou capaz de compreender vossas palavras, meu fiel seguidor — a criatura disse ao sacerdote. As palavras saiam de forma improvisada, porém a cada sílaba pronunciada a certeza em seu interior sobre sua soberania crescia — esse mundo de mim veio e para mim voltará. Tudo que há aqui me pertence. No entanto, como um rei, sou justo e retribuo aqueles que me servem de bom grado. É por isso, aos meus mais fiéis seguidores que testemunharam minha chegada a este mundo: os nomeio vassalos de honra da minha Corja Real.
A emoção foi tanta, que Kennedy simplesmente desabou em lágrimas. Dominic seguiu o exemplo de Damon e se ajoelhou diante do seu mestre novamente.
— Assim sendo, meus vassalos, vamos deixar este lugar, pois ele não é do meu agrado.
O ser temível então se virou, abrindo as asas, pronto para decolar.
— Espere, meu senhor — Damon o chamou — e o que deve acontecer a eles? — indicou Archie, Paul e o cientista.
Na mesma hora eles se fingiram de mortos, porém sem se dar conta de que tremiam mais que qualquer outra coisa. Weezy os fitou profundamente, estudando-os e raciocinando.
— Não parecem ser meus adoradores — ele foi certeiro — sacerdote, vós dissestes que eles seriam o sacrifício para minha chegada. Já está consumado, esses pecadores só serão purificados ao fim do eclipse. Deixe que lamentam não terem me adorado, afinal, me parecem apenas ratos inofensivos, como qualquer um desses aristocratas que vós mencionastes.
Assim, o ser temível levantou voo. Damon e Dominic foram carregados por ele, tamanha era sua força, já Kennedy se transformou em um morcego para acompanhá-los.
O novo deus encarnado cruzou os céus, rumo a um destino ainda desconhecido. No entanto, seu rasante para fora do Cemitério Romero parecia em direção à lua coberta.
— Isso não é bom — o cientista disse ao se levantar, observando a aberração que havia nascido, indo embora — olha só o que vocês fizeram, seus malditos! — apesar do tom denotar raiva, Victor estava desolado demais para demonstrar aquilo com muita clareza.
— Ei, a culpa não é nossa se você não tranca a porta, porém irei agradecer, já que graças a isso estamos vivos — Archie disse. Ao se levantar, Paul o imitou — e o que diabos você pretendia criando um monstro aqui?
— Eu já disse, era a minha Criação Perfeita… era — Victor foi para um canto do necrotério destruído e se sentou no chão, Igor foi até ele — não importa, já está tudo acabado, de novo.
Archie estreitou o olhar para o cientista, ele parecia não bater bem da cabeça, como um típico gênio louco.
— Não faz sentido — Paul se manifestou, seu semblante era de pânico — não tem como um experimento com um cadáver ter resultado… naquilo.
— Haha — Victor debochou, apático — sua postura é muito arrogante e prepotente, garoto — Igor ronronava com satisfação ao ser acariciado atrás das orelhas — há muitas coisas ocultas nesse mundo, a Arte das Misturas é uma delas.
— Arte das Misturas? — os irmãos Becker indagaram.
— Talvez não seja uma má opção contar sobre ela a vocês, afinal, estamos na pindaíba de qualquer forma. Pelo menos isso servirá como um Mata Tempo.
— Será que alguém já notou e avisou sobre esse seu pessimismo exacerbado? — Archie quis saber.
— Cale essa boca e ouça — Victor se irritou — enfim, ouçam com atenção que eu não irei repetir…
Frankenstein lhes contou tudo sobre como descobriu a Arte das Misturas; desde o homem de sobretudo e óculos escuros surgindo misteriosamente até o momento em que ele lhe entrega a caderneta de Arthur Becker. Nesse momento, Archie e Paul arregalaram os olhos, porém não ousaram interromper o cientista.
Mas ao fim, não foram mais capazes de se segurar.
— Archie… você ouviu isso? Ele disse Becker! — Paul engoliu em seco.
— Eu ouvi bem — Archie estava atônito.
Victor os fitou, desconfiado. Sim, aquela revelação era deveras impressionante para qualquer um, mas a forma como eles reagiram ao nome “Becker” era exagerada demais, pois era a parte mais plausível de toda aquela explicação.
— Não precisam ficar impressionados, a família Becker sempre foi conhecida pela sua linhagem de gênios.
— Não é isso — Archie conseguiu dizer — somos…
— Da família Becker — Paul completou, ainda atordoado.
Desta vez foi Victor quem arregalou os olhos. Não pode ser!
“Lembre-se, os Becker dessa era muito provavelmente tem conhecimento das Misturas”, o homem de sobretudo disse para ele naquela noite chuvosa “se algo der errado, procure-os, pois eles possuem o verdadeiro dom das misturas, mais que qualquer outros nesse novo mundo”.
Isso não pode ser coincidência. Victor pensou, começando a rir como um louco em seguida.
De repente os irmãos se recuperaram do choque, ao ver o outro se contorcendo de tanto rir, uma risada descontrolada e um tanto perturbadora.
— Qual é a desse cara? — Archie já não conseguia nem mais achar engraçada a situação — DÁ PRA PARAR COM ISSO, SEU LUNÁTICO?!
Victor cessou as risadas, alterando o semblante imediatamente, agora uma expressão séria estampava seu rosto. Ele então apontou o dedo para eles, como alguém apontando uma arma, mas no fim, apenas estalou os dedos, com um sorriso em seguida.
— Touché — Archie apenas estreitou os olhos, sem entender. O sentimento de Paul era o mesmo, porém reconheceu o termo usado na esgrima — parece que nem tudo está acabado, senhores.
— Como assim? — Archie perguntou.
— Primeiro, vamos nos apresentar. Meu nome é Victor Frankenstein.
— Certo — o Becker primogênito decidiu aderir — sou Archie Becker, esse é meu irmão adotivo, Paul.
Adotivo, hum? O cientista refletiu.
Archie estendeu a mão para um aperto, porém o excêntrico cientista recusou, regressando um passo. Archie recolheu o braço. A cada segundo que passava achava Frankenstein um cara mais esquisito.
— Tudo bem, Dr. Frankenstein. Por que de repente ficou otimista em saber que somos da família Becker? O que tinha na caderneta do ancestral? — Paul indagou cordialmente.
— Por favor, apenas Victor, jovem Paul — apesar de ter adorado o título, ele precisava manter a modéstia — vou explicar tudo, mas vamos por partes. Eu, como um bom cientista precavido, criei uma mistura que anula o experimento, caso as coisas saíssem de controle. Eu acabei esquecendo desse detalhe de tão convencido que estava de que o experimento fosse um sucesso.
“Ou seja, eu sequer me preparei para esse momento, então precisaremos pegar os ingredientes, que não é nada muito complicado. Além, claro, de ter que ir atrás da criatura. Mas veja como seria uma jornada perigosa e difícil, pois é bem provável que ele use a sua habilidade para transformar outras pessoas em monstros e assim criar um exército”.
— Parece mirabolante demais — Paul comentou.
— Eu discordo, jovem Paul. A seita com quem ele está envolvido, ao que tudo indica, é aquela que já fez coisas horríveis em nome de um deus falso, se me recordo bem da história.
Foi só então que Paul lembrou da seita que adorava uma entidade bizarra. A que foi conhecida pela histeria coletiva de pessoas que juravam ter visto Martin Luther possuído por essa entidade.
— Então, como eu ia dizendo, seria um caminho perigoso e praticamente inalcançável chegar até o que eles chamam de Weezy, era assim, não é? De qualquer modo, há apenas um de nós que pode tomar o que é chamado de Elixir de Poder — seu dedo estava apontado para o céu, até lentamente descer e apontar para Archie — você, Archie Becker!
— Eu? Só pode estar brincando — Archie voltou com o bom humor diante da afirmação absurda — eu não sei absolutamente nada sobre a química normal, quanto mais essa alternativa — Ainda bem que o papai não tá aqui, eu ia ficar surdo de tanto sermão e argumentos sendo jogados na minha cara.
— Não precisa ter conhecimento algum, não consegue entender? Você disse que o seu irmão é adotado, logo é você quem tem o legítimo sangue de um Becker, ou seja, entre nós você é o único que é capaz de ingerir um Elixir de Poder, usar de suas habilidades e não morrer no processo.
A cada minuto as coisas ficavam mais absurdas. Que merda, por que logo comigo que esse troço funcionaria?
— Eu irei lhe mostrar como funciona, é mais simples do que imagina.
Victor foi até um canto da sala que não estava destruído e pegou em cima do balcão dois balões de fundo redondo, uma tigela com água e outra com um pedaço de carne crua. Ele levou os materiais até a mesa de autópsia bamba; Archie e Paul se aproximaram.
— Certo, estão vendo esses balões? Eles são o alicerce da Arte das Misturas, eles são feitos de um material com propriedades metafísicas, o que lhes proporciona a possibilidade de misturar — o cientista destacou a tigela com água e a outra com a carne — estão vendo isso? São os ingredientes: água fervente e pele de guepardo. Para se fazer uma mistura se deve introduzi-los nos balões para que você consiga uma habilidade, logo irei fazer uma demonstração prática. Essa aqui no caso é a que Arthur Becker usava, então creio que servirá para você, Archie, já que cada pessoa tem uma mistura compatível consigo. Ou seja, se ingerir uma diferente, você certamente irá morrer. Mas chega de enrolação, vamos fazê-la!
— Mas você disse que a água era fervente — Paul comentou — essa parece bem fria pra mim.
— É porque você é apressado, jovem Paul — Victor sacou dois gravetos pequenos do jaleco, em seguida começou a esfregá-los, até que algo inesperado aconteceu: fogo irradiou de um deles, deixando os irmãos impressionados — como podem ver as misturas não eram a única coisa metafísica que Arthur Becker conhecia.
Paul desistiu de indagar a possibilidade de dois pedaços de madeira gerarem fogo, pois já haviam ocorrido coisas absurdas demais naquela noite.
Após usar o fogo para ferver a água, ele fez a mistura. Introduziu a carne e a água em balões diferentes, em seguida virando o conteúdo de um em outro. Logo a mistura se tornou uma espécie de líquido vermelho-sangue gasoso.
— Parfait — Victor exclamou, em seguida colocando o elixir em um frasquinho e entregando a Archie — com esse elixir você será capaz de bater de frente com os vassalos de Weezy, assim nosso avanço será menos tortuoso, porém tem um detalhezinho… O EFEITO DURA UMA HORA, SEU IGNORANTE DE UMA FIGA!
Antes que ele terminasse, Archie já havia tomado o elixir. Não foi uma sensação boa. O líquido era azedo e desceu queimando sua garganta, chegou até a tossir um pouco.
— Foi mal — se desculpou.
— Puff, que seja. Espero não ter esquecido de explicar nada de importante, mas acho que deu pra entender — Victor entregou os balões e um coldre especial para Archie — coloque-os na cintura, irá precisar deles para fazer as misturas. Para sua sorte tenho ingredientes aqui para fazer mais elixires… então é isso, senhores, estamos preparados para partir. É bem provável que morramos no caminho, mas agora ao menos ganhamos alguma porcentagem de chance.
Apesar de ansioso e assustado, Paul tentou manter a calma e confiar que aquilo era apenas o destino, que lhes confiou uma grande responsabilidade. Já Archie ainda sentia que não era capaz, porém as alterações que sentiu após ingerir o elixir o deixou um pouco mais confiante.
Frankenstein sentia apenas um desprezo profundo por si, mas era questão de honra tentar eliminar o experimento que deu errado. Depois, poderia morrer em paz, aceitando a sua sina.
— É como Pulget disse uma vez “Na jornada contra o mal, só se espera que o diabo seja mais esperto” — Paul citou, ainda tentando encontrar o mínimo de confiança.
— Tá, para onde vamos, Frankenstein? — Archie perguntou.
— O primeiro ingrediente da mistura executora está na minha casa — Victor disse — uma bala de revólver.
Mais ou menos determinados, o trio decidiu enfim deixar o necrotério destruído. Eles haviam causado o nascimento de Weezy e decidiram carregar a responsabilidade de destruí-lo e impedir que algo pior acontecesse.
E por mais que não acreditassem nas palavras do sacerdote Damon, nem na seita do Inominável, achavam muito estranho o eclipse surgir bem no momento em que a criatura nasceu.
— Miau — Igor se pronunciou, ao ver o dono saindo.
Victor se virou para o bichano, sorrindo.
— Claro que pode vir com a gente, Igor.