As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 24
“Na jornada contra o mal, só se espera que o diabo seja mais esperto” – Pulget, o pequeno
A noite se revestia de uma aura sinistra. O eclipse não havia coberto completamente a lua, com um terço dela ainda iluminando a Terra, ainda que de forma bruxuleante.
Em um veloz mergulho pelo céu, Weezy jazia, carregando os seus mais fiéis vassalos, aqueles que testemunharam sua divina chegada ao mundo. Porém, uma dúvida latejava em sua mente:
— Decerto que sou o rei deste mundo, vós dissestes isto, por isso concluo que minha estadia deveria ser um lugar real, como os castelos que deixamos para trás, correto?
— Sim, meu senhor — Damon confirmou, sério — nossa estadia será na cidade de Londres, tomaremos a coroa britânica no palácio de Westminster. Assim, vossa excelência sentará no trono do mais alto escalão dos homens.
— Diga-me a direção.
— Ao leste, meu senhor.
Weezy se deslocou para a direção mencionada. Era impressionante como até mesmo os ventos o obedeciam, não demonstrando resistência contra as suas asas. A cada momento que passava, o sacerdote e seus discípulos se convenciam mais e mais de que aquele era realmente o qual aguardavam.
— Antes de tomar o palácio, recomendo que forme uma corja neste lugar, meu Senhor — Damon sugeriu, com um pressentimento lhe atormentando — segundo o grimório sagrado, haverá resistência dos hereges. O mal, deve ser cortado pela raiz, para que assim ele jamais cresça.
Weezy concordou com um aceno, mudando o rumo do seu voo, em busca da sua corja.
O licantropo, maravilhado, sentiu que tinha uma responsabilidade. Precisava honrar o seu senhor, aquele o qual lhe proporcionou a força que ele buscou por anos. Então decidiu tomar uma decisão:
— Milorde, me deixe aqui nesta cidade. Talvez haja traidores, deixe que eu cuide deles para que o seu reino não seja perturbado.
Weezy fitou o servo, notando sua determinação em cumprir com seu dever, não poderia negar tamanho pragmatismo e dedicação.
— Está concedido, meu servo fiel.
***
Três homens e um gato desceram a colina, chegando enfim à Vila da Borda. Ao contrário do que Victor esperava, a rua estava completamente vazia. Nem sequer visualizou um bêbado escorado nos becos.
Talvez todos tenham se assustado com o barulho da explosão no necrotério e foram procurar abrigo. O cientista deduziu.
— É melhor ficarmos atentos — Paul comentou, receoso — esse lugar está muito vazio, quem garante que não há monstros na espreita?
— Olha, Paul, eu sei que a essa altura nada parece impossível, mas ainda sim não estamos em um conto macabro — Archie garantiu, com uma certeza arbitrária — até onde sabemos, só o próprio Weezy consegue transformar pessoas em monstros, e ele está bem longe daqui nesse momento.
— Não conte muito com isso — Victor disse — na caderneta de Arthur Becker é relatado alguns eventos envolvendo as misturas que vão além dos efeitos nos humanos. Isso geralmente acontece quando as coisas não são feitas da forma planejada, o que foi o caso do nascimento de Weezy. Logo, estamos em uma situação imprevisível.
— Tem alguma ideia de para onde ele está indo?
— Por que eu saberia, se o detetive aqui é você? — Victor suspirou — seu voo, até onde consegui notar, estava indo para o leste, eu chutaria para algum lugar na Grã-Bretanha.
— Espero que esteja errado — Archie se lembrou de que Mary ainda estava lá, bem como o pai e a mãe em Liverpool — Mas e você, Frankenstein, não tem nenhum parente por aqui? Esposa, amigos?
— Apenas eu e Igor — ele disse, com um tom de ponto final — hum… nada disso faz sentido, esse lugar não deveria estar tão vazio. Aquela explosão a esse ponto já deveria ter atraído autoridades.
Continuaram seguindo caminho. Paul foi ter com o irmão em determinado momento. Havia uma curiosidade entalada na garganta:
— Archie, sobre esse passado metafísico da nossa família, tem certeza que não sabia de nada?
— Absoluta — o mais velho parecia tão intrigado quanto Paul — talvez nem o papai saiba, não lembro de ele ter mencionado isso. Mas há um furo nessa história, por que diabos esse tal cara de sobretudo entregou esse conhecimento a Frankenstein e não aos próprios Becker? A caderneta não podia ser uma réplica.
— Talvez teria sido melhor assim, não? — Victor se introduziu na conversa — provavelmente nem estaria naquele necrotério e todo esse desastre teria sido evitado.
— Ou talvez estivéssemos mortos agora. Imagina se a pessoa que trabalha no necrotério fosse alguém competente que trancasse a porta direito? Teríamos sido fatiados por aqueles fanáticos.
— Vocês arrombaram a porta, para se esconder num caminho sem saída — Victor retrucou, cerrando os dentes.
Antes que Archie pudesse retrucar com sólidos argumentos, viram algo chocante. Em frente ao bordel da vila, não havia só uma, mas três mulheres que ali trabalhavam caídas inconscientes na fachada, uma delas sendo Ginger.
Mas que diabos? Frankenstein pensou, confuso.
Sem pestanejar, foi em direção a ela, uma garota jovem de cintura larga e cabelos curtos. Victor consultou a sua pulsação e para seu alívio, ela ainda estava viva, porém em uma espécie de coma.
Fez o mesmo com as demais moças, até poder se virar aos irmãos Becker e constatar:
— Estão vivas, porém desacordadas, como se estivessem em coma — uma ideia então lhe ocorreu — isso é muito estranho, elas todas estarem desacordadas… Vocês, procurem em outras casas, vejam se tem alguém acordado.
Apesar do pedido esquisito, Archie compartilhava do sentimento intrigante. Assim, ele e o irmão começaram o trabalho de vasculhar casas, um pub ou qualquer outro lugar que poderia ser habitado na vila.
Foi complicado de início, já que grande parte das propriedades estavam trancadas, porém, logo Archie encontrou uma casa destrancada. Ao adentrá-la, viu que uma família inteira estava desacordada, e mesmo tentando os despertar, não adiantou.
Paul acabou encontrando alguns bêbados bem escondidos no vão de um beco. Victor vasculhou o interior do bordel e também encontrou todos ali adormecidos.
Levou um bom tempo para verificar toda a vila e bater o martelo de que estavam diante de um fenômeno anormal. E a julgar pelo silêncio, toda a cidade deveria estar na mesma situação. Eles pareciam ter sido os únicos a não serem afetados.
Archie, Paul e Victor se reuniram novamente no meio da vila, tensos.
— O que diabos está acontecendo aqui? — Archie expressou, indignado.
— Isso só pode ser obra da mistura que deu errado — Victor disse, quase convicto — eu falei que seus efeitos eram imprevisíveis, por algum milagre não fomos afetados.
— A cada minuto que passa essa situação fica mais surreal — Paul estava com as mãos na cabeça, atônito — nem os maiores conhecedores do conceito de metafísica pensariam nisso.
— Eu sabia que vocês não tinham ido muito longe, Hi Ho!
O trio se virou para uma voz que não esperavam. Os pelos de Igor eriçaram.
Ao longe, um estranho caminhava até eles, suas vestimentas eram as menos apropriadas possíveis para o momento. Um robe de pugilista o cobria da cabeça aos pés. Como o estranho estava com a cabeça abaixada, a escuridão do capuz do robe a mantinha oculta.
— Archie e Paul Becker. Pelo visto, não foram afetados pelo poder do milorde, bem como esse cientista.
— Espera, ele é quem eu tô pensando? — Paul indagou.
— Sim, criança — Com toda a pompa e extravagância, o estranho desamarrou seu robe e revelou sua aparência — Meu nome é Dominic Kessler, o maior pugilista do mundo, graças ao meu Senhor.
Ele era coberto por uma pelagem de lobo, os olhos sépia levemente caídos em uma expressão selvagem de superioridade. O licantropo, além da aparência assustadora, havia colocado luvas de boxe nas mãos e um calção apertado de cetim, digno de um verdadeiro peso pesado.
— Então foi realmente seu mestre quem colocou essa cidade para dormir? — Victor perguntou, fazendo um gesto discreto para Archie ainda não partir para o ataque.
— Como o deus grego, Morfeu, milorde colocou não só esta cidade, como todo o mundo em um sono profundo — Dominic contou, jogando o robe para o lado — como sua estadia será em Londres, no palácio de Westminster, ele não precisa de retaliação internacional. Então apenas aquela cidade está acordada.
Droga, então ele foi realmente para lá. Archie pensou, se lembrando que Mary estava lá.
— Porém, vejo que vocês permaneceram acordados, talvez tenha sido a misericórdia do meu senhor — Dominic continuou — mas eu fui deixado aqui, nesta cidade, para eliminar qualquer traidor ou rebelde. Graças a minha audição aperfeiçoada de lobo, eu os segui e pude ouvi-los conspirando contra o Weezy.
O trio nada disse, apenas observando o lobisomem, tentando não demonstrar medo. Além de considerarem um fato: diante de todas as lendas envolvendo aquelas criaturas, não havia consenso sobre suas fraquezas ou habilidades, então não deveriam se precipitar.
Sem qualquer necessidade, ele começou a socar o ar, usando diversos movimentos diferenciados. Provavelmente era uma tentativa de intimidação.
— Eu irei lhes matar, mas antes, irei me apresentar mais adequadamente, como uma testemunha da soberania de meu Senhor — Dominic então abaixou a cabeça.
“Quando era criança, minha família saiu dos Estados Unidos e nós fomos para Londres, isso graças a uma oportunidade que meu pai havia conseguido. Porém, um dia ele perdeu seu emprego como assistente de um político influente, no dia seguinte meu pai foi assassinado e eu nunca soube o motivo”.
O licantropo ergueu a mão direita, destacando a sua luva de boxe. Um gesto dramático.
“Mais tarde, conheci um homem chamado Lewis, que me deu um emprego como engraxate na fachada de sua barbearia. Logo ele e eu criamos uma amizade, até que ele me levou para um grupo clandestino de pugilistas. Lá, eu aprendi tudo que eu sei sobre o esporte. Mas logo eu percebi que aquele grupo clandestino tinha um objetivo oculto: eles odiavam políticos. Às vezes se reuniam para encurralar algum deles e espancá-lo até a morte. Eu não via o esporte daquele jeito, mesmo com Lewis tentando me convencer usando como argumento que a morte do meu pai fora responsabilidade de um político. Mesmo assim aquilo não me afetava tanto, pois meu pai morreu quando eu era muito jovem, eu simplesmente segui em frente”.
“Mas a gota d’água foi quando eles decidiram matar um político e seu filho adolescente, eu simplesmente não podia ser mais conivente com aquilo, então decidi avisar para um dos secretários do político. Meus companheiros seriam presos, é verdade, mas ao menos não cometeriam mais atrocidades em nome do esporte”.
“O que eu não esperava, era que o político iria os encurralar com homens armados, pedindo para que eles abrissem fogo contra Lewis e meus amigos. Mas o pior foi descobrir que o político que salvei era o mesmo que executou meu pai, e o motivo era por ele também fazer parte do grupo clandestino de pugilistas, que pediu a Lewis que cuidasse de mim e não revelasse nada. Eu ouvi aquilo do próprio Lewis em seu último suspiro, quando o político e seus assassinos haviam ido embora”.
“Eu fui obrigado a fugir da Grã-Bretanha, encontrando refúgio aqui na Suíça. Minha vida se tornou miserável, graças ao trauma de ver meus amigos morrendo, não conseguia mais praticar pugilismo, mesmo querendo muito. Porém, tudo mudou quando conheci um homem, o Sacerdote Damon, ele me prometeu cura, me levou até a sua confraternização e lá encontrei a Verdade, senti a presença do Inominável, falei a língua desconhecida, a língua divina. Esse Deus havia me trazido a vontade de lutar. Fui fiel a ele por anos, agora estou purificado, em minha melhor forma, é por isso que daria a minha vida por ele”.
Paul absorveu a história com certa melancolia, lembrando dos conceitos filosóficos de Hobbes e Rousseau.
— Hora de atacar, Becker — Victor disse — lembre-se que o efeito do elixir continua no seu corpo, e não sabemos por quanto tempo.
Dominic se colocou em posição de combate, Archie fez o mesmo. O detetive tinha um leve conhecimento de pugilismo graças ao mordomo Reagan, então conhecia alguns golpes. E mesmo que não possuísse uma luva de boxe, o efeito do Elixir de Poder parecia cobrir aquela lacuna.
— Então é você quem me enfrentará, Archie Becker? — Dominic disse — en garde!
O jovem avançou, sentindo toda a confiança e adrenalina percorrerem por seu corpo. O golpe que ele iria desferir se chamava jab, sendo um de impacto menor, porém rápido, em seguida pensou que um gancho seria uma boa ideia.
Dominic poderia ser um ótimo pugilista, mas Archie era sem dúvida mais ágil graças a sua habilidade.
Porém…
O quê? Essa sensação!
De início o jovem ficou confuso ao notar toda aquela adrenalina e confiança se esvaindo, a incerteza se perpetuando. Mas logo ele entendeu.
O efeito do elixir havia passado.
Porém, era tarde demais, isso infelizmente aconteceu quando Archie estava a apenas dois metros do lobisomem, por isso não pôde impedir o inevitável. Em câmera lenta, viu o soco desferido em um golpe cruzado acertando precisamente sua bochecha.
Xeque-mate!
Com um único golpe Dominic tirou seu adversário de combate, fazendo-o ser arremessado até um estabelecimento de plantas e quebrando a vidraça no processo.
— ISSO, EU VENCI, NUNCA HOUVE DÚVIDAS, EU SOU O MAIOR — Dominic gritou, flexionando os músculos, logo em seguida ficando sério e se virando para Victor e Paul — bom, agora só me restam vocês.
Amedrontados demais para perder um segundo sequer, ambos saíram correndo dali, bem como Igor, que para sua sorte era mais rápido por ser um felino.
Merda, estamos mortos! Victor pensou, já sem esperanças.