As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 28
“Paixão, bondade, compaixão, altruísmo, chamem como quiser. Todas essas virtudes se unem a uma única palavra: O amor” – Pulget, o pequeno
A vasta feira se estendia por toda a movimentada rua. Os comerciantes pareciam satisfeitos com o fluxo daquela tarde, vendendo os mais diversos tipos de quinquilharias e alimentos.
Mas nem todos pareciam ter sorte, em especial mais ao lado sul do bairro, onde a patrulha local fiscalizava as redondezas, não exatamente da forma que deveria.
— Delícia — disse um dos patrulheiros, fardado da cabeça aos pés, enquanto degustava uma maçã de uma barraca — como é bom proteger a lei… o que estava dizendo mesmo, Matteo?
— Que a vaca tá indo pro brejo, seu guarda — o dono da barraquinha respondeu, um tanto apreensivo.
O patrulheiro rangeu os dentes, enraivecido, sacando o cassetete de forma ameaçadora.
— QUANTAS VEZES JÁ LHE DISSE PARA FALAR COMO GENTE, MATTEO? — gritou, exaltado, mas logo respirou fundo, sacudindo a cabeça negativamente, um sinal de desprezo — vá, traduz logo esse linguajar.
— O sinhô e seus homi todo dia catam as frutas de minha feirinha — o humilde comerciante explicou. Ele era um homem baixinho e rechonchudo, corado como uma romã — isso acaba abaixando meu estoque… a gente até aceita a bufa, seu guarda, mas é que na maioria do tempo seus homi tão de curtição no barzinho e nossas fruta acabam sendo roubadas pelos trombadinha.
O agente da lei ouviu tudo apático, mas assim que Matteo terminou, caiu em uma gargalhada forçada. Ele riu cuspindo nas frutas do homem durante alguns minutos, só parou quando começou a tossir, de tanto forçar a garganta.
— Você é deveras engraçado, Matteo — o patrulheiro então sacou seu bastão e o atingiu em bem no rosto de Matteo, fazendo-o cair no chão — isso é pela sua ingratidão… e ofensa indireta — a expressão do policial era ameaçadora e maliciosa ao mesmo tempo, enquanto esfregava o bastão no nariz ensanguentado do comerciante — sabe, por mim, todos vocês da ralé eram… desprovidos de direitos, vamos deixar assim.
Ele pegou uma pera, pronto para degustá-la.
— Tudo isso aqui deveria pertencer às autoridades, já que somos nós quem temos de lidar com vocês, a plebe. Eu sei que todos vocês me odeiam, mas acreditem, é mútuo, odeio pobres.
Quando estava prestes a morder a fruta, alguém passou correndo e a tomou. Quando o guarda se deu conta, o meliante já havia avançado demais. Mas não ia deixar barato. Ele conhecia bem aquele ladrão. Ele sempre agia da mesma forma, sempre com aquele manto e um capuz cobrindo sua identidade.
Então disparou atrás dele. Não tinha tempo de avisar seus colegas enfurnados no pub. Nem se importou em empurrar as pessoas no caminho.
Que tolo da sua parte, o resultado vai ser ainda pior. O ladrão coberto pensou.
Na realidade, era uma garota de cabelos ruivos.
Como sua aparência era facilmente reconhecível, precisava daquele disfarce, porém, a manta possuía aberturas, como longos bolsos, dessa forma ela podia armazenar as frutas e objetos afanados. Às vezes a carga era mais pesada, no entanto, já estava mais que acostumada a correr daquele jeito.
Durante a fuga, pouco se importou com o policial, pois ele estava sozinho e não era capaz de desviar dos transeuntes de forma ágil, ao contrário da garota que conhecia aquelas ruas de cor. Possuía conhecimento de pontos específicos em que podia se espremer e usar como atalhos.
Parece que esse imbecil do Capitão Leone não aprende mesmo.
Logo encontrou um cruzamento e foi para a esquerda. Toda aquela correria a deixou ofegante, porém sorridente. Passou por uma descida e lá encontrou um beco estreito. Ela verificou sua carga e felizmente deixou apenas uma banana cair no caminho.
Ali no beco, havia uma pilha de feno bem grande e fedida. Sem se importar com isso, ela pôs as mãos ali, até encontrar o que queria: uma escada dobrável.
A melhor invenção de todas. Era o que ela sempre pensava, após mais um dia de provisão.
Desdobrou a escada, posicionando-a sobre a parede do beco, até ir parar no teto. Em seguida, subiu.
Foi chegando aos telhados, que Midna contemplou a visão que mais lhe agradava. Não sabia explicar o motivo, mas o horizonte da cidade visto por cima das casas a deixava em êxtase.
Meia-noite te vejo. Ela disse ao horizonte.
Caminhou com destreza pelos telhados, sem o menor receio. Em determinado momento pulou do teto para o outro. Considerava o risco dos saltos uma recompensa em si, se deixando levar pela adrenalina.
Enfim encontrou seu destino. O teto da casa possuía uma abertura camuflada. Midna abriu a passagem e adentrou sua residência: um muquifo de dois cômodos, o qual abrigava ela e mais três pessoas.
O “cômodo de desjejum” estava vazio, Midna desceu e fez silêncio, enquanto depositava os bens adquiridos. Mas logo ouviu vozes ingênuas e empolgadas surgirem.
— Será que ela trouxe uma bola ou um pião?! — o garoto indagou, empolgado.
— Sim, uma bola seria legal! Imagina se ela traz um chocolate também?! — a garota ao seu lado disse, entusiasmada com a possibilidade.
Logo as duas crianças entraram no cômodo de desjejum, ficando boquiabertos.
— Midna! — as crianças exclamaram, correndo para abraçarem a prima mais velha.
— Olha como eles são dramáticos — ela disse, de forma carinhosa — estão com saudades de mim ou só tão felizes assim porque eu trouxe coisas muito legais para vocês?
— AS DUAS COISAS — disseram em coro.
A mais velha sorriu, fechando os olhos. Era sempre contagiada pela felicidade deles. Midna lhes considerava os tesouros mais preciosos que ela tinha.
— Venham aqui — ela os chamou, indo para a mesa onde as coisas adquiridas estavam — não consegui pegar muita coisa dessa vez… aqui, um pião para você, Jim — ela entregou o brinquedo para o garoto, que arregalou os olhos, fascinado — e um pedaço de chocolate para você, Rebecca.
Sendo considerada uma especiaria internacional, era natural Rebecca dar tanto valor ao chocolate-suíço quanto Jim dava a seu pião.
— Isso é muito maneiro, Midna — Jim disse, eufórico ao ver o brinquedo girar freneticamente — obrigado.
— É… delicioso — Rebecca lambia os dedos após devorar aquele pedaço de chocolate — obrigada, Midna.
Midna só conseguia sorrir para os primos, enquanto acariciava seus cabelos. Ela sabia que seu dia estava ganho quando os via felizes.
— Olha só, chegou cedo hoje — uma voz masculina disse — podemos conversar, minha querida sobrinha?
O tio era um homem alto de meia-idade, ostentando uma careca lustrosa. Ele era um carpinteiro conhecido naquelas bandas, cujo ofício estava ameaçado por concorrentes que tomaram à força seu estabelecimento. Agora ele trabalhava em casa, de forma totalmente improvisada e precária, com uma clientela menor.
— Claro, Stan — Midna respondeu tensa, pois ela sabia que levaria uma bronca.
Ambos foram para o “cômodo-de-dormir”, deixando Jim e Rebecca, que conheciam o pai e apenas torceram para ele pegar leve com Midna.
Ali confinados, tio e sobrinha se entreolharam por alguns segundos. Stan era a pessoa que Midna mais respeitava. Não tinha qualquer prazer em decepcioná-lo.
— Quantas vezes eu já falei, Midna? Não precisa fazer isso — ele não parecia irritado, apenas cansado e desapontado, mas de forma complacente — isso não é certo e… é perigoso.
— Você sabe que é preciso sim — Midna foi direta, era seu jeito, mas com ele tentava ser mais respeitosa — esses crápulas da nobreza roubaram seu estabelecimento, nossa principal fonte de renda. Vamos ser honestos, seu negócio não está indo bem. Se eu não fizesse o que faço, nós estaríamos passando fome… é por necessidade. A culpa não é minha se esses nobres só olham pro próprio nariz.
Stan suspirou, se sentia impotente diante da situação, mas a preocupação com sua sobrinha era maior. Sua irmã havia deixado ela sob sua responsabilidade antes de partir. A considerava tão filha quanto Jim e Rebecca.
— Você não precisa fazer isso — Vendo que ele começava a suar, Midna segurou sua mão — eu… ainda posso fazer aquilo. A cor da minha pele… eles poderiam me comprar e cuidar de vocês…
— PARA COM ISSO, STAN — Midna o repreendeu. Não acreditava que estavam tendo aquela conversa absurda de novo — isso nunca vai acontecer, tá me ouvindo? Eu prefiro ser ladra e morrer numa masmorra do que te ver sendo um escravo desses desgraçados, e ainda precisando viver em harmonia com essa gente, tá me ouvindo? Isso tá fora de cogitação.
Havia fúria em seus olhos, então ele cedeu.
Já haviam discutido aquilo diversas vezes e sua reação era sempre agressiva daquela forma. Ainda assim, não podia se livrar da culpa que sentia, em ver a sobrinha indo para aquele caminho decadente, por sua causa.
Então apenas a abraçou, ela retribuiu, sabendo exatamente o que ele estava sentindo. Eu prometo que eu nunca vou ser capturada, Stan, um dia eu vou conquistar o que eu quero e vamos estar livres.
— Bom, eu preciso ir trabalhar, o primeiro pedido desta semana — ele disse após o fim do abraço, com um sorriso amarelo — quem sabe o cliente me dê uma gorjeta se eu acrescentar um pouco mais de capricho.
Ela o observou deixando o cômodo, pensativa. Será que pegaram leve com o capitão Leone?
***
Onde é que esse malditinho foi, hein? Leone, o capitão da patrulha, se perguntava.
Havia cruzado várias quadras na tentativa de localizar seu nêmesis. Estava impressionado com o quão ligeiro ele era. Sua fúria não havia diminuído, mas decidiu se controlar.
Ele caminhou por uma descida, atento. Prometia a si que não teria pena do meliante quando o encontrasse.
Ah-ha! Exclamou ao encontrar um beco estreito, com uma enorme pilha de feno e uma escada erguida na parede. Aposto que se eu subir ali encontrarei esse merdinha.
Mas antes que pudesse, alguns civis surgiram de um lado do beco. Eram muitos, desde comerciantes de frutas e açougueiros, até tecelãs e artesãos. Todos eles portando seus instrumentos de trabalho e com cara de poucos amigos.
— Estão olhando o quê, miseráveis? — ele disse na maior grosseria, já sem paciência com aquela gentalha.
Alguns cerraram os dentes, outros cuspiram no chão, parecendo mais furiosos que o policial. Leone notou a ameaça e sacou seu bastão, recuando lentamente. Era melhor ele deixar aquilo para depois, quando poderia reunir todos os seus homens.
— Para trás, ralé, ou eu coloco cada um de vocês no xadrez — ele bradou, falhando na entonação e transparecendo receio.
Mas pouco antes de chegar ao outro lado do beco, mais pessoas surgiram. Agora se encontrava cercado por vários cidadãos furiosos. Matteo estava entre eles, e gritou:
— Cercamos ele, camaradas. VAMOS MOSTRAR QUE RAPADURA É DOCE, MAS NÃO É MOLE NÃO.
— Esperem, o que estão fazendo? — Leone engoliu em seco, ao vê-los se aproximando — SE AFASTEM, SE FIZEREM ISSO VÃO SE DAR MUITO MAL… ESTOU AVISANDO, POR FAVOOOOOOOOR!
O que aconteceu ali certamente não foi agradável de se olhar, mas Leone nunca mais iria perturbar aqueles comerciantes, isso era um fato.
***
A madrugada se iniciava, no entanto, Midna não sentia sono. Ela estava sentada no teto de casa, contemplando o horizonte da cidade, bem como o céu estrelado. De alguma forma tornou aquilo um costume. Sempre à meia-noite, ela fazia a mesma coisa, enquanto todos dormiam.
Era para o leste que ela olhava, pois naquela direção, muito distante da Suíça, se localizava a cidade da realeza britânica.
Em seu interior, Midna tinha um sonho, um sonho muito alto, era verdade. Um dia vou tomar a coroa britânica e dominar esse continente. Nesse dia, serei eu a tirana.
Toda noite, sob aquele teto, ela dizia a si mesma aquelas palavras.
Tinha noção que se contasse para alguém, soaria como algo maléfico, porém não pensava daquela forma. Obviamente, ser uma tirana implicava em impor seus interesses à população, mas ela julgava que os seus eram melhores que os do chefe de estado atual. Ela conhecia a sua situação, ela sabia quem realmente merecia ser subjugado.
Talvez seu plano pudesse ser considerado errado, mas pouco se importava. Tudo que ela ligava era que seus primos tivessem uma boa vida, que seu tio não precisasse cogitar se tornar um escravo de ricaços, que ela não precisasse roubar para comer. Havia outros motivos, envolvendo seus conhecidos pela cidade, Midna não queria vê-los sofrer por essa hegemonia predominante da sociedade.
Dessa forma, tomar a coroa inglesa parecia ser uma ótima solução àqueles problemas.
Mas enquanto não alcançava seu objetivo, ações como a de fazer as pessoas encurralar um sujeito como o capitão Leone serviam como prelúdio de sua tirania. Eu não gosto deles, não tenho motivos para gostar deles, são todos iguais, por que deveria me importar com a integridade deles?
Sentindo o cansaço tomar conta de seu corpo, Midna deitou na superfície íngreme do telhado, sem se incomodar. Ela contemplou as estrelas e a lua com certo fascínio.
No fim do dia, após todo o risco e preocupações, se sentia feliz, feliz por manter ela e sua família intacta mesmo com tantas dificuldades.
Eu não vou desistir, mamãe. Midna refletiu, sentindo as lágrimas caírem, ao lembrar daquele dia.
O dia da morte de sua mãe.
Midna era muito nova quando tudo aconteceu, mas lembrava perfeitamente da mãe, uma mulher esbelta de pele morena e cabelos crespos ruivos que trabalhava em um pub, e sempre levava a pequena Midna consigo.
Naquele dia, um dos clientes resolveu a acariciar e ela lhe esbofeteou, porém, aquele homem era bravo, além de estar bêbado. Da forma mais covarde possível, ele e seus dois colegas a ameaçaram e Diana precisou correr por sua vida.
Midna tentou ir atrás dela e dos agressores, mas o dono do bar a impediu, dizendo que eles eram policiais. Viu sua mãe ser arrastada até um beco, sem poder fazer nada a respeito. No dia seguinte nem seu corpo restou, tudo estava limpo, como se nada tivesse acontecido.
Eu vou tomar a coroa inglesa, eu prometo, mamãe. Mesmo sendo uma memória dolorida, ela lhe dava mais determinação para continuar seguindo.
Midna decidiu sucumbir ao sono, fugindo daqueles devaneios. Precisava estar disposta para mais um dia de risco e recompensa.
***
Que lugar mais movimentado. Archie Becker pensou, enquanto transitava por aquela humilde rua de Genebra.
Já fazia alguns dias que ele e seus pais haviam ido visitar a cidade, se hospedando no Hotel Overlook. Archie fora orientado a ficar no hotel na ausência dos pais, mas simplesmente não conseguia permanecer lá, com um mundo de possibilidades em um lugar novo. Aquela era a primeira vez que ele saia da Inglaterra.
Já havia comprado algumas frutas e chocolates nas barracas, querendo provar tudo que aquele país poderia oferecer.
Mas de forma inesperada, um vulto o cruzou, arrancando o chapéu de sua cabeça.
— Ei, espere! — ele gritou para a figura encapuzada, disparando contra ela — pega ladrão, pega ladrão!
Pouco adiantou. Ele correu entre a multidão, até tropeçar em uma casca de banana ali jogada, ficando para trás. Antes da silhueta do ladrão desaparecer, ele viu os cabelos vermelhos escorrerem pelo capuz. É uma garota!
Archie se pôs de pé, percebendo que ninguém ali se importou com a corrida dele e da ladra. Pelo visto era comum aquele tipo de coisa acontecer na rua.
Merda, bem que mamãe falou para eu ficar em casa, devia ter dado ouvidos só dessa vez. Pensou, encontrando na situação uma oportunidade. Nah, vou recuperar meu chapéu, se eles notarem que perdi vai ser pior.
***
Como foi fácil. Midna pensou, correndo com aquele chapéu nas mãos, um provável artigo de luxo muito caro.
Fez seu percurso normal até o lar. Aquela aquisição seria o suficiente para o dia, pois ainda havia comida em casa e não viu necessidade de se arriscar mais.
O que um mauricinho como aquele garoto estava fazendo aqui? Indagou-se, subindo as escadas do beco secreto. Não vou ser eu quem vou reclamar, de qualquer forma.
Midna cruzou os telhados até chegar ao de sua casa. Ao adentrá-la, foi recebida com o ânimo de sempre dos primos. Ela os mostrou o item adquirido:
— Isso aqui é um chapéu de feltro marrom de aba curta. Algo que vale muito no garimpo.
— Então isso quer dizer que se vender, dá pra comprar muito chocolate?! — Rebecca perguntou.
— Exatamente! — Midna acompanhou a empolgação da pequena.
Eles passaram o resto do dia brincando. Não havia muitas opções, mas o peão de Jim e bolas de gude eram o suficiente para diverti-los.
Stan passou o resto do dia fora, tentando encontrar um trabalho, então restava a Midna vigiar e dar companhia aos primos.
Mas logo chegou o anoitecer e mais tarde a madrugada. Midna subiu para o teto. Tudo parecia tranquilo, porém o céu estava menos estrelado, com a lua mais presente sobre o firmamento.
De repente, sentiu uma presença, o seu instinto de fuga havia sido ativado. Ele se confirmou após sentir uma mão segurar seu braço. Sem rodeios, ela foi mais ágil e agarrou o corpo do seu agressor, o colocando sobre a superfície do teto com violência.
— Espera… Você? — ela indagou com surpresa, posicionada em cima dele com uma das mãos em seu pescoço.
— Droga, achei que seria mais fácil — Archie disse, com a voz trêmula — você é durona mesmo.
— Por que está aqui? — ela perguntou, ainda agressiva — vocês ricos são ainda mais estúpidos quando jovens, não é? Eu poderia te matar agora mesmo.
— Poderia? Não sei se seria a coisa mais inteligente, e… não creio que já tenha feito algo do tipo — Ao olhar bem em seus olhos, Archie duvidou da própria afirmação — Olha, eu só quero o meu chapéu de volta… tem um valor emocional, entende?
Midna não tirou os olhos do garoto, estudando-o. Ele poderia ser um completo imbecil em ir até lá sozinho, mas também achou um pouco admirável, não pôde negar. O que eu deveria fazer?
— Por que veio aqui sozinho, sem a patrulha e desarmado? — ela perguntou.
— Eu percebi que você era uma garota, vi seu cabelo — Archie começava a suar um pouco — eu achei que talvez estivesse roubando por não ter o que comer ou coisa do tipo.
— Oh, então quer dizer que não chamou eles por refletir sobre a minha possível situação ou coisa do tipo? — Midna disse em tom de deboche.
— Bem… sim, eles provavelmente iam te prender, não é? Afinal, era só meu chapéu, eu podia recuperá-lo sozinho.
Ele falava de forma despretensiosa e sonsa, como se fosse diferente dos outros, como se não fosse um mauricinho da alta cúpula. E ele é tão ingênuo… o que eu faço?
Midna saiu de cima dele e estendeu a mão para que Archie pudesse se levantar. Ele aceitou com certa apreensão.
— Escuta, garoto, você ainda foi muito ingênuo de vir aqui sozinho, eu realmente te mataria se fosse uma ameaça para meus primos, só precisava te jogar do telhado que ninguém nunca ia desconfiar da gente — ela parecia impaciente e entediada — mas, surpreendentemente, você não é uma pessoa ruim.
Archie se sentiu aliviado e surpreso com a atitude da garota. Ela estava de braços cruzados e, agora que não estava em cima dele como uma assassina a sangue-frio, notou sua beleza.
Seus cabelos ruivos eram crespos e caíam até os ombros, sua pele morena e os olhos de um castanho vivo.
— Obrigado — ele conseguiu dizer, diante do estranho clima — então… vai devolver o meu chapéu?
O olhar sanguinário da garota voltou a fixá-lo, com Archie se arrependendo na hora do pedido. Mas logo em seguida, ela apenas fechou os olhos, suspirando.
— Devolvo.
Archie ficou boquiaberto.
— Mas só se eu ficar com essa moeda — ela concluiu a proposta, mostrando a ele uma moeda de muito valor e sorrindo, um sorriso genuíno.
O jovem consultou seus bolsos, constatando que ela havia furtado silenciosamente o franco-suíço de alto valor que Archie carregava. Impressionado, ele também sorriu.
— Combinado… mas você sabe que meu chapéu deve valer bem mais que isso, né?
— Você é tão burro assim? Quer que eu mude de ideia? — ela se dirigia a ele de forma menos ríspida agora, como se estivesse se divertindo — eu já disse, você não é uma pessoa ruim. Vou devolver o seu chapéu, mas não disse nada sobre moedas, disse?
— Bom ponto — ele também se divertia.
Midna desceu para pegar o chapéu de Archie. Quando o trouxe, esperou ele verificar o pertence minuciosamente.
— Certo, é realmente o meu chapéu — confirmou — tudo certo.
— Ótimo — ela disse.
Ambos se encararam por um tempo, uma sensação curiosa. Tanto Archie quanto Midna sentiam que queriam ficar mais ali, juntos, mas a ideia também os deixou desconfortáveis, pois só fazia alguns minutos que se conheciam.
— Bem… eu vou indo, então, desculpa se atrapalhei seu sono.
— Não atrapalhou.
— Certo.
Archie então saiu dali, pulando pelos tetos com certo receio. Midna o viu se distanciando, sentindo algo diferente, um sentimento forte e um tanto incontrolável.
Ele é bonito, é verdade. Pensou, se sentando para o leste e contemplando o horizonte. Não é um completo babaca… mas é melhor eu esquecer isso, foram só alguns minutos, não posso concluir nada.
Porém, a última coisa que conseguiu fazer naquela noite foi esquecer do garoto ao qual nem chegou a saber o nome.
***
Por que estou vindo aqui de novo? Archie se perguntou, no fundo, sabendo a resposta. É o lugar mais perto onde posso comprar o melhor chocolate do mundo, é por isso.
Mais atento que antes, ele caminhou por aquela humilde área comercial, despretensiosamente. O chapéu firme na cabeça, mas não tanto. Trazia também algumas moedas consigo.
Não conseguia explicar aquele frio na barriga. Qualquer um diria que ele era louco, mas Archie via aquilo como uma grande aventura. Uma aventura arriscada, era verdade, mas a emoção proporcionada deixava tudo mais interessante.
ZOOM!
De forma repentina, o vulto cruzou seu caminho, exatamente como no dia anterior, tomando seu chapéu.
Seu coração palpitou, ele tratou rapidamente de localizar o ladrão. Para sua felicidade, reconheceu Midna, a garota encapuzada. No mesmo momento disparou em direção a ela. Ele devia ser a única pessoa no mundo que sorriu após ser furtado.
“Mas que desleixo, ontem levaram-lhe o pertence da mesma forma, eu vi, esse garoto só pode ser algum tipo de trouxa”, alguém comentou ali próximo.
Archie pouco se importou. Seguiu Midna por todo o perímetro, recordando o caminho que fez para achá-la.
Enfim, chegaram até o beco da descida, com aquela enorme pilha de feno exposta. Midna estava de costas, ofegante como Archie. Ela se virou com um olhar malicioso de triunfo.
— Eu sabia que você seria ingênuo o suficiente para vir até aqui de novo — ela disse, colocando o chapéu na própria cabeça — até que ele cai bem, não acha?
— Eu posso te dar um chapéu — ele disse, sorrindo — mas esse fica comigo.
Eu não devia estar assim só porque ele está por perto. Midna pensou, sentindo aquele misto de desconforto e alegria incontrolável.
— Tá legal — ela então lhe devolveu o chapéu, pela segunda vez — desculpa por isso, achei que era o melhor jeito de chamar sua atenção.
— E conseguiu… na verdade, eu sabia que faria isso, por isso vim aqui, tudo planejado — Archie tentou exalar confiança.
— Sei — o tom da garota era de um deboche divertido — e depois disso, o que você planejou?
A pergunta o pegou de surpresa. Era claro que ela estava lhe dando um sinal verde, mas Archie nunca se sentia preparado para situações como aquela. Então preferiu ser sincero, pois sentia que Midna era diferente de outras garotas que ele havia se relacionado:
— Eu, talvez, só talvez, quisesse sua companhia — você é um grande imbecil, Archie Becker, ela não vai engolir essa.
Mas ao contrário do que ele esperava, ela sorriu, aquele sorriso genuíno que aparentava ser raro. Ele sentiu suas entranhas ganharem vida própria e começarem a dançar.
— Eu imaginei que você diria isso — ela lhe provocou — garotos como você costumam ser previsíveis… mas eu até gosto disso.
Archie abriu um sorriso de leve, dessa vez um pouco mais aliviado. Ele e Midna pareciam estar se entendendo. Concluiu que já era hora de se apresentarem.
— Eu poderia saber seu nome? — que jeito estúpido de perguntar, mas tudo bem.
— Sou Midna — ela respondeu — muito prazer, Archibald Becker.
Pela enésima vez, se viu surpreendido com ela.
— Eu conheço quase todo mundo dessa rua — ela explicou — ouvi dizer sobre “o filho do químico Henry Becker estar andando por aqui”.
Eu espero que essa informação não chegue até o papai. Recordou que logo precisaria voltar para casa.
— Você me surpreende… eu até gosto disso — Archie se sentia atordoado por um sentimento inexplicável — pode me chamar de Archie apenas, eu prefiro.
— Eu também prefiro.
Novamente ambos se encararam. A situação que parecia um tanto desconfortável na noite anterior, agora era como se ambos se estudassem melhor de forma mútua. Midna decidiu que deixaria ele fazer a proposta.
— Eu preciso ir agora — Archie tomou a iniciativa — mas eu posso voltar, o que você acha?
— Meia-noite eu fico no telhado observando e pensando sobre as coisas — seu olhar era sugestivo — não se atrase.
E dizendo isso, Midna subiu as escadas rumo a sua casa. Archie a observou indo, sentindo o coração querendo pular da boca. É, parece que eu não consegui resistir, ela é incrível.
***
Já é quase meia-noite. Midna pensou, observando a lua chegar ao ápice do seu resplandecer noturno. Quando estava ali geralmente se sentia mais tranquila, porém naquela ocasião seu interior parecia uma bomba-relógio de ansiedade, prestes a explodir.
Talvez fosse exagero, mas como nunca havia sentido algo do tipo antes, ela achava razoável definir daquela forma.
— Parece que quase me atrasei — Midna ouviu às suas costas, imediatamente sentindo um frio na barriga.
E era Archie. Ele estava vestido de forma mais simples, sem o casaco padrão dos nobres o cobrindo, mas ainda com o chapéu na cabeça, que não escondia seus cabelos desgrenhados. Ela o estudou por um tempo, e ele não se queixou.
— Não se atrasou — ela enfim disse — agora, sim, me surpreendeu.
— Talvez você tenha expectativas um pouco erradas sobre mim — Archie contestou, de forma jocosa.
— Talvez seja um mecanismo de defesa, quem sabe? — Midna percebeu tarde demais o tom melancólico da frase, o ambiente a conduzia sempre a ser mais reflexiva — desculpa, eu só tô pensando alto demais… vem, senta e talvez você entenda.
Ele obedeceu, se sentando ao seu lado na desconfortável superfície. Levaria um tempo para se acostumar com aquilo, mas apesar disso, sentiu-se bem ali, ao lado dela. Toda a ansiedade parecia ter se esvaído.
Por um tempo ficaram em silêncio observando o horizonte. Para Archie a paisagem no geral era comum, mas aquela era a primeira vez que ele prestava mais atenção no firmamento da noite, desde os pontinhos claros, até a grande lua. Tudo parecia mais fascinante do que lembrava.
— Eu sei o que deve estar pensando — ela quebrou o silêncio, olhando fixamente para o horizonte — ficar aqui observando a vista parece meio monótono mesmo.
— Ah, na verdade, eu estou achando… fascinante — ele disse, genuinamente — mesmo assim, gostaria de saber o motivo de você ficar aqui olhando para o céu de madrugada em uma hora tão específica.
— Eu também não sei direito o motivo — o seu nervosismo em estar perto do garoto foi cessando — mas me faz refletir, sabe? É como um momento de paz, não sei se consigo descrever.
— Eu acho que entendo — se pegou divagando em uma viagem de pensamentos repentinos — é uma sensação boa.
— É.
Uma brisa suave os envolveu.
— Você vive aqui com seus pais? — Archie perguntou.
— Nunca conheci meu pai, minha mãe morreu quando era muito nova — ela respondeu, sem ressentimentos — vivo com meu tio e meus dois primos pequenos.
Archie se lembrou dela mencionando os primos e o quão importante ela os considerava.
— E você? — Midna retribuiu a questão, com uma mão na bochecha — sei o nome do seu pai e que não mora aqui, quero saber mais.
— Moro com meu pai e minha mãe, nada de muito especial — ao dizer isso, ele sentiu que poderia se abrir mais, algo um tanto inconsciente — bom, não tenho o melhor dos relacionamentos com meu pai, mas eu e minha mãe nos damos super bem.
— Aposto que seu pai quer que seja algo que você mesmo não quer.
O olhar surpreso que Archie lhe lançou confirmou a hipótese.
— Já ouvi histórias parecidas — o maior problema de um nobre.
— Pois é, talvez eu seja previsível mesmo. Não vou reclamar disso na sua frente, você deve passar por coisas muito piores.
— Eu não te julgo — ela disse imediatamente — ainda é um problema, afinal. E a culpa não é sua.
Um sorriso de compreensão estampou o rosto de Archie, eles pareciam a cada momento mais conectados.
Aquele dia passou. Na noite seguinte eles estavam ali, juntos novamente.
— Qual é o seu sonho, Archie? — Midna perguntou.
— Eu quero me tornar um detetive e andar pelo mundo, conhecê-lo, basicamente isso — respondeu despretensiosamente — e o seu?
— Talvez você me julgue, ou me ache prepotente demais se eu contar — seu olhar se voltou para ele, desafiador.
— Não vou te julgar… prometo.
— Tá bom — ela voltou a olhar o horizonte, em direção ao leste — quero tomar a coroa inglesa um dia.
Apesar de surpreso, Archie não disse nada imediatamente. Começava a aproveitar aquele momento do mesmo jeito que a garota.
— Não te julgo, tenho certeza que seria uma governante mais ponderada que os atuais.
— Pode apostar que seria.
A conversa seguiu até ambos se sentirem exaustos.
Passaram quase duas semanas repetindo o encontro noturno. Ambos se sentiam tão conectados que faltavam às vezes palavras, mas agora totalmente confortáveis e complacentes um perto do outro.
Mais um dia se passou e no seguinte, lá estavam eles novamente.
Em determinado momento, Midna desenvolveu mais sua história de vida, chegando a contar mais sobre seu tio querer se vender a uma família de ricos.
— Eu sinto muito — Archie disse, com pesar — tem muita gente da classe alta assim ainda, infelizmente.
— Mas você não é assim — ela disse, agora ambos estavam bem próximos, suas mãos se tocando levemente — eu vou ser sincera. Antes de te conhecer, pensava que todos os ricos tinham parte dessa… podridão dentro de si. Mas você é diferente, você… me surpreendeu.
Seus dois rostos estavam a centímetros de distância, uma das mãos de cada um entrelaçadas. Eles se aproximaram mais, até fazerem o que tanto desejavam.
Um beijo diante do céu, sob o brilho pulsante das estrelas.
Quando seus lábios se separaram, ambos só conseguiam sorrir. A sensação era um misto de nervosismo e alívio, ainda mais para Midna, pois era seu primeiro beijo.
Ela então se deitou sobre o teto, observando as estrelas e a lua. Archie fez o mesmo. Àquele ponto a superfície do teto nem o incomodava mais.
— Não quero que você vá embora — ela comentou, em seu tom insistente.
— Não vou — Archie disse, segurando a sua mão — prometo.
E quão malditas foram aquelas palavras.
Eles acabaram dormindo ali, juntos. Midna não lembrava exatamente, mas teve bons sonhos, isso até ouvir alguém a acordar:
— Acorda, Midna, acorda — Era o pequeno Jim — porque dormiu com esse chapéu, Midna?
Quando enfim despertou, Midna notou o chapéu de Archie ao seu lado. Todas às vezes que os dois se reuniram à noite, ela não deixou seu tio nem seus primos saberem.
— Eu só estava estudando ele ontem, Jim, pra ver se era real — ela improvisou — eu acordei muito tarde?
— Um… pouco.
Midna logo sorriu e desceu com ele. Comeu alguma coisa, pois seu estômago implorava e se preparou para agir.
Passou o dia inteiro se perguntando o motivo de Archie ter deixado seu chapéu. Mas decidiu não se importar muito com isso, pois ele devia ter esquecido e, logo chegaria a madrugada e ela o devolveria.
Não foi o que aconteceu.
Midna aguardou e aguardou seu amado naquela noite, mas ele não veio. Pela primeira vez, ficar ali no telhado foi uma experiência horrível.
Mas tudo piorou nos próximos dias.
Ela começou a passar o dia inteiro sem fazer nada, esperando Archie. Chorou algumas vezes. Até que enfim foi procurar informações com pessoas da sua rua. Um deles lhe respondeu:
— Faz cinco dias que os Becker viajaram de volta para a Inglaterra, estavam aqui só de passagem.
Foi então que seu mundo caiu. Durante todos aqueles dias ainda tinha esperança, mas tudo desabou ali. Não era capaz de se conformar o quão repentino tudo aquilo ocorreu.
Naquela noite, ficou remoendo no telhado, sem se importar com nada. Aos poucos o ódio e apenas ele ia crescendo dentro dela.
Você disse que não ia embora, você prometeu. Ela pensou, fitando o chapéu deixado por Archie. Você era só mais um, eu me iludi. Mas se eu te encontrar de novo um dia, eu vou te matar, Archie Becker, não me custaria nada!