As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 31
“Para alguns o tempo é relativo, para outros algo concreto. Em minha visão, o tempo é nada mais que uma contagem regressiva de nossa existência nesse plano não-transcendental” – Pulget, o pequeno
Mal adentrando o salão da mansão, eles deram de cara com uma cena esquisita: um senhor de idade sentado em sua cadeira de balanço apontava um revólver para uma criança, que parecia sofrer de algum tipo de demência, aparentemente não conseguindo discernir a situação e apenas sorrindo de forma boba.
O trio ficou chocado, pois o velho estava prestes a puxar o gatilho e eles não tinham tempo de agir.
— NÃO! — eles gritaram.
Ele puxou o gatilho… e nada aconteceu.
— Você está com sorte hoje, Nicholas — o idoso disse carinhosamente ao menino — oh, visitantes, nem no apocalipse nos livramos disso. Vamos, entrem logo, sintam-se à vontade e blá-blá-blá…
Eles obedeceram sem rodeios, principalmente pelo fato do revólver na mão do idoso agora estar apontado para eles. Logo se acomodaram no sofá macio, ainda tensos pela primeira impressão.
— Oh, agora vejo, vocês são os filhos do Becker, não é? — eles acenaram positivamente, inclusive Victor — que cara é essa? Por acaso é a minha Magnum? Não se preocupem, o tambor está vazio, vejam.
Ele apontou o revólver para o relógio de parede em um canto, cujo pêndulo balançava de forma precisa. Sem hesitar, ele apertou o gatilho.
BOOM!
O disparo fez o relógio cair, se estilhaçando no chão. O trio ficou ainda mais apavorado, mas o idoso deu um sorriso torto, como se aquilo fosse um mero infortúnio.
— Ora, parece que esqueci de remover uma bala, que seja — ele deixou a arma de lado, seu neto a pegou, balbuciando algo ininteligível com êxtase — tá bom, tá bom, sou Hector, pai de Finn. Acho que não nos encontramos antes, passei a morar aqui depois que julguei mais confortável que meu antigo muquifo…
Mas antes que Hector falasse mais para o trio pasmo, Finn Thompson surgiu no salão, resmungando. Não tardou a perceber o estrago no canto onde o relógio estava, parecendo um tanto furioso:
— Não me diga que estava usando a arma de novo, papai? — ele reclamou, ainda segurando sua carabina — eu saio por um segundo e lá está o senhor brincando com Nick de roleta russa.
— Alguém precisa ensinar algo para esse garoto — Hector acariciou os cabelos do neto, que ainda apreciava a Magnum em mãos — ainda tenho esperanças que ele siga o caminho certo.
O Sr. Thompson não respondeu, caminhando até o trio, que não poderia estar mais confuso com aquela peculiar dinâmica familiar, principalmente Victor.
— Bom, estão seguros aqui, desde que todos dormiram já suspeitei que havia alguma coisa errada — ele disse — algumas dessas criaturas surgiram no meu terreno, tentando matar meus cavalos, mas meu Nirvana aqui deu conta deles — indicou a carabina.
— Vocês todos aqui estão acordados, Sr. Thompson? — Archie perguntou.
— Eu também estranhei todos não terem caído, talvez providência divina… mas vejo que vocês também estavam acordados — disse, colocando a arma nas costas sobre a bandoleira, com um semblante mais tranquilo — e o que fazem aqui na Suíça? Seu pai tinha assuntos a tratar?
— Bem, na verdade, veio apenas eu e Paul… mas é complicado.
Então os três explicaram o que de fato havia acontecido, julgando que seria importante ele se convencer da urgência deles para entregar alguns de seus cavalos.
Mas ao término da explicação, o aristocrata abafou uma risada, como se tivesse acabado de ouvir uma piada:
— Ótimo, essa foi boa. Então essa foi a primeira noite de vocês na rua du Marchè, com um grande copo de saquê? Hau-haha, creio que Paul seja jovem demais para isso, mas a história de fato é hilária.
— Estamos falando sério, Sr. Thompson — Paul disse, um tanto indignado — viu o que aconteceu na cidade, como pode não acreditar em nossas palavras?
— Ah, bem, os zumbis e esse sono é uma espécie de arma contra nosso país, claro — ele respondeu, convencido — mas já passamos por crises piores, logo esta acabará. Agora, essa história que contaram é digna de uma das noites boas em um bar, HAHA!
Mas ele nem bebe, como poderia saber? Archie pensou, indignado, mas não ficou tão surpreso assim.
No fundo, ele sabia que não podia lidar com os lunáticos que eram os Thompson.
Os outros tampouco tentaram insistir no assunto, reconhecendo que não havia jeito. A conspiração do Sr. Thompson superava qualquer outra concepção do apocalipse.
— Talvez estejam com fome, temos um estoque inteiro de biscoitos Wonder, querem? — o trio acenou positivamente, animados com a ideia, sentindo as barrigas roncando depois de tanto tempo sem comer.
O Sr. Thompson deixou o salão. Os três estavam novamente na companhia de Hector, que agora lia um jornal. O jovem Nicholas encontrou um novo entretenimento com Igor, que rosnava para o garoto.
— Tudo seria tão mais fácil se eles estivessem dormindo — Victor reclamou baixinho — como vamos pegar os cavalos?
— Relaxa, Frankenstein, pelo menos vamos ter biscoitos — Archie disse, se acomodando mais no sofá.
— Teríamos biscoitos mesmo se eles estivessem dormindo, Becker — Victor lembrou.
— Tem razão. De qualquer forma, precisamos esperar e pensar um pouco antes de agir… de preferência sem essas armas por perto.
— Se Pulget fosse dessa era, decerto seria contra as armas de fogo — Paul refletiu.
E eles ficaram ali, observando Igor fugir de Nicholas, enquanto aguardavam o Sr. Thompson voltar. Mas para sua infelicidade, Hector abaixou o jornal, os fitando:
— Algum de vocês é policial? — ele perguntou, o trio acenou negativamente — heh, eu fui um grande policial. Na minha época podíamos matar os meliantes, hoje em dia as coisas mudaram, heh! Meu filho devia ter seguido a carreira de policial, mas preferiu o ramo das apostas. Agora está aí a sua maldição — ele indicou o neto — seu filho nasceu débil mental. Só não sou a favor de seu sacrifício porque ele ainda tem meu sangue. Então tento ao máximo ao menos tentar lhe mostrar o caminho certo.
Nenhum deles se atreveu a responder, escutando de forma paciente tais palavras absurdas. Mas logo Hector retornou a sua leitura. A atenção deles voltou a Igor, que agora se refugiou em cima de uma escrivaninha, se livrando de Nicholas.
— Certo, eu tenho um plano — Archie disse baixinho — precisamos descobrir onde está a Sra. Thompson. Sua ausência não está me cheirando bem. Sei que os Thompson são estranhos, mas o jeito que o Sr. Thompson falou… Paul, quero que pergunte discretamente para ele onde ela está. O resto deixa comigo.
Paul acenou positivamente, ainda parecendo preso em seus próprios pensamentos.
— Não queria que acabasse desse jeito — Victor deixou escapar, baixinho.
— Relaxa, Frankenstein. Já falei, conseguir os cavalos vai ser o menor dos problemas até agora — Archie tentou o tranquilizar novamente.
— Não é isso — o cientista continuou, um tanto melancólico — por anos eu fiquei trabalhando nesse projeto, pensando que no fim, ficaria famoso, casaria, teria filhos… que tolice, vou acabar terminando sem sequer ter amigos para ir a um pub.
Naquele momento, Archie se compadeceu. Era verdade que Frankenstein era uma pessoa excêntrica, mas nunca tinha pensado em sua história de vida, em sua situação. De fato, tudo havia dado errado para ele duas vezes, e, mesmo que derrotasse Weezy, Frankenstein seria reconhecido como um fracassado para sempre.
O jovem detetive nada disse, mas se sentiu mais motivado quanto ao objetivo deles. Primordialmente a culpa de todos aqueles eventos eram dele e de Frankenstein, então, deveriam ser fortes. Todos eles precisavam um do outro para triunfar naquela jornada.
— Sabe, eu o teria deixado ser morto se não fosse o jovem Paul — Victor admitiu — eu não costumo pensar nos outros, talvez por isso as coisas estão como estão.
— Não se empolgue, eu também teria feito o mesmo com você — Archie disse, em tom irônico.
— Bom, sem mim, aí sim seria impossível derrotar Weezy — o cientista retrucou, também de forma irônica — mas sem a espada do jovem Paul, certamente morreríamos.
— Bem por aí.
O Sr. Thompson retornou com o pote de biscoitos, deixando o trio com água na boca, já que faziam horas que não comiam nada. Ele também trouxe uma jarra de água e um copo. Em seguida os assistiu devorar os biscoitos.
— Pois bem, se quiserem dormir, dividam esse sofá — ele disse secamente — os quartos de hóspedes estão interditados.
Aquilo acendeu uma lâmpada de curiosidade na cabeça de Archie. Onde há fumaça, há fogo.
— Ah… Sr. Thompson — Paul disse, timidamente — sua família inteira conseguiu ficar acordada? E a Sra. Thompson, onde ela está?
Na mesma hora, o jovem detetive captou o micro receio na expressão do aristocrata.
— Er… bem, Rosemary está no quarto, como de costume não gosta muito de visitas, entendem? — ele ergueu Nirvana de forma despretensiosa, os desencorajando a questionar — bom, eu vou dar uma olhada no estábulo. Papai, fique de olho no Nicholas.
O idoso, que lia seu jornal, se virou confuso para o filho.
— O que disse? — perguntou retirando seus óculos.
— Para ficar de olho no Nicholas, sabe o que quero dizer, não?
Hector ficou alguns segundos encarando Finn, parecendo confuso, até dizer:
— Tá certo, tá certo, eu já fico olhando esse moleque o dia todo — e voltou a ler seu jornal.
Com um sorriso um tanto suspeito, o Sr. Thompson deixou a sala. Foram alguns segundos até eles ouvirem a porta dos fundos se fechar, indicando que ele estava fora do caminho.
— Hora de iniciar o plano — Archie disse para os dois.
— E qual é o grande plano? — Victor perguntou.
— Em primeiro lugar, irei verificar o andar de cima… eu sei que ele tem armas guardadas pela casa. Meu plano é render o Sr. Thompson e roubar alguns de seus cavalos.
Paul e Victor o fitaram, surpresos com a ideia.
— Isso não é transgressor demais? — Paul perguntou sinceramente.
— Pois é, não sabia que era do tipo de golpes baixos, Becker — Victor disse.
— Olha, não há outra forma do Sr. Thompson entregar os cavalos, ele é a pessoa mais cabeça dura e lunática que existe. E estamos ficando sem tempo.
— É um ponto. O Sr. Thompson com uma arma é mais perigoso e imprevisível que Dominic — Paul apontou.
Victor deu de ombros, pensando que o melhor era seguir um plano que desse certo.
Archie então acenou e se pôs de pé, caminhando rumo ao interior dos aposentos dos Thompson. Hector sequer notou a saída do jovem, continuando imerso em seu jornal. Nem mesmo a algazarra de Nicholas e Igor o incomodou.
***
O detetive chegou até a grande cozinha, onde de um lado havia uma porta, provavelmente uma despensa, e do outro a escadaria que levava até o corredor de quartos do segundo andar.
Certo, eu estou aqui, mas acho que não deveria subir direto. Ele tateou os balões de fundo redondo escondidos nas vestes. Bem, se deu certo uma vez, pode dar uma segunda.
Ele decidiu que precisava de uma mistura antes de subir, pois sentia um cheiro de imprevisibilidade no ar. Àquele ponto podiam ter vassalos de Weezy por toda parte.
Fora que achou estranho a Sra. Thompson não aparecer em público, apesar da sua introspecção ser de conhecimento geral.
Archie decidiu agir, vasculhando as gavetas e armários. Não foi uma missão exatamente fácil, pois era difícil encontrar coisas que coubessem na boca do balão. Nem mesmo os talheres de lá eram pequenos o suficiente.
Foi em uma gaveta cheia de ferramentas que encontrou coisas interessantes; havia diversos pregos, dos mais variados tamanhos. Mas não pensou em um efeito interessante com eles. O primeiro a lhe interessar foi um fio de barbante, pensando ser algo inofensivo.
Continuou por alguns minutos vasculhando em busca do segundo ingrediente… mas não encontrou nada interessante.
Mas se lembrando do relógio destruído pelo disparo de Hector, recordou o seu próprio relógio quebrado guardado nas vestes. Ele o tirou do bolso, observando a parte frontal completamente trincada, quase aos pedaços.
De repente teve uma ideia um tanto extrapolante. Se os ingredientes servem como um presságio para o efeito das misturas, talvez eu queira isso.
Então decidiu recolher os ponteiros daquele relógio. Com os dois ingredientes, ele estava pronto para um experimento ousado e idiota ao mesmo tempo.
Bem, se eu não morrer, o pior que pode acontecer é eu me tornar um relógio gigante por uma hora. Ele pensou, sentindo aquela aflição do desconhecido o tomar novamente.
Ele foi até o balcão da cozinha, colocou os balões e os ingredientes sobre a mesa. Sem rodeios, pôs o barbante em um balão, os ponteiros no outro, logo os misturando.
Tal qual a mistura de cabelo com erva-cidreira, aquela começou a ganhar forma, se tornando um líquido gasoso de cor branca. É, não é lá muito apetitoso.
Ao fim, sua mistura estava pronta. Mas daquela vez decidiu não questionar tanto e só colocou tudo para dentro. Diferente da anterior, ele sentiu algo revirando seu estômago, mas seu efeito não foi imediato.
Certo, eu não virei um relógio. Archie pensou, aliviado. Mas o que é isso?!
Um pedacinho do barbante o qual ele havia usado na mistura se materializou na ponta do dedo indicador de sua mão esquerda. Intrigado, o detetive puxou o fio, a fim de descobrir o que estava por trás da mistura.
Para sua surpresa, o fio parecia não ter um limite, se esticando infinitamente à medida que era puxado. Archie não queria acreditar que fosse um efeito tão medíocre assim. Decidiu então puxar a força o fio, a fim de cortá-lo, mas ele era muito resistente.
Mas teve uma ideia. Foi até o puxador do armário próximo, amarrando com vários nós o fio. Em seguida, ele encontrou uma tesoura na gaveta de ferramentas. Sem pestanejar, o jovem cortou o fio de barbante…
ZOOM!
Como em um piscar de olhos, se viu teleportado para próximo ao armário onde amarrou o fio, com uma diferença de que este se encontrava intacto. Era como se ele nunca o tivesse cortado.
Espera um pouco, é isso que eu tô pensando?
Como um teste, ele se afastou o máximo possível do armário, até próximo à escada do segundo andar. Com a tesoura em mãos, ele cortou novamente o fio.
ZOOM!
O efeito foi o mesmo, Archie estava próximo ao armário, com o fio intacto. Aquilo testificou o que ele estava pensando:
— Toda vez que eu corto esse fio, eu volto no tempo — disse baixinho — isso é incrível! Então, posso explorar o andar de cima sem me preocupar. Quem diria que uma mistura tão besta daria um efeito tão útil!
Ele então se lembrou de um detalhe: precisaria andar pela casa com o fio no dedo, o que não era um problema, já que ele era infinito aparentemente. Deveria apenas se precaver e não tropeçar nele.
Com isso em mente, decidiu avançar.
Foi até a escada, subindo com cautela os degraus de madeira, para não fazer muito barulho. A cada movimento, torcia para que o fio não tivesse um limite.
Quando chegou no segundo andar, se sentiu mais aliviado, acreditando que o barbante era infinito. Observando o corredor de quartos, percebeu um quadro no fim dele, a pintura surrealista de algo que parecia ser um polvo gigante negro. Mas decidindo não dar tanta importância para aquilo, continuou andando.
Não era difícil descobrir a quem pertenciam os quartos quando todos eles eram classificados pelos que dormiam ali. Tentou verificar a dos hóspedes, mas eles estavam todos trancados.
Pensou que era provável as armas estarem guardadas no quarto dele. Caminhou até lá, ao fim do corredor, mas algo lhe ocorreu: a Sra. Thompson provavelmente estaria lá dentro. Bom, ao menos já quebro minha curiosidade.
Ele colocou a mão na maçaneta, percebendo que ela estava aberta.
— Parado, Archie — ouviu a familiar voz do Sr. Thompson e o som de sua carabina engatilhar — eu sei que estava tramando algo desde o começo, sei que são amigos do governo americano.
Archie não conseguia acreditar. Como não havia notado ele subindo as escadas? De qualquer forma, não precisava entrar em pânico, apenas conseguir uma brecha para cortar o fio. Tudo o que fez então foi levantar as mãos.
— O senhor está enganado — ele disse — vim aqui apenas pela curiosidade, peço que me desculpe, eu e meus amigos vamos deixar sua casa e…
BOOM!
Sem qualquer chance para reação, Archie foi atingido no peito por um potente disparo de Nirvana. Ele foi arremessado até a parede do corredor, fazendo vasos e o quadro sinistro cair com estrondo no chão.
Chocado e sentindo uma dor imensa no tórax e abdômen, ele ficou ali, jogado no chão, sem capacidade de reagir. O Sr. Thompson se aproximou aos poucos, até sua visão embaçada enfim retornar.
Finn Thompson se agachou perto dele:
— Sabe, somos taxados de malucos, Archie, mas há algumas loucuras que se deve fazer para o bem da família — ele disse, com um olhar pesado — há algumas horas uma criatura veio até esta casa, disse que deveríamos matar qualquer intruso e… bem, ele tocou em Rosemary e disse que ela estava abençoada. Não tem ideia do quanto estivemos tentando após o nascimento de Nick.
— O que… está dizendo? — Archie perguntou, cuspindo sangue pela boca.
Mas mesmo debilitado, conseguiu interpretar o que havia ocorrido ali. Era tudo culpa de Weezy. Os Thompson também foram chantageados por ele, assim como Midna.
O Sr. Thompson se levantou, apático, desceu as escadas e gritou:
— Papai, acabe com eles.
— NÃO!
Mas sem que Archie pudesse evitar, ouviu os disparos na sala. Paul, Frankenstein… merda, preciso voltar, preciso voltar!
Usando todas as forças que lhe restavam, mordeu o fio, tentando desfiá-lo. Demorou. Ele sentia a vida se esvaindo, lágrimas no rosto, viu o Sr. Thompson retornando com a carabina em mãos, até que…
ZOOM!
Estava de volta a cozinha, próximo ao armário e o fio intacto, como se nada tivesse acontecido. Porém, notou que estava completamente suado e ofegante, ainda atônito pela situação.
Tá legal, eu preciso fazer alguma coisa.
Se lembrando do ocorrido, percebeu que o Sr. Thompson o seguiu cautelosamente. Então decidiu verificar a porta dos fundos.
Foi até lá, mas não o viu à espreita. Decidiu abrir a porta para o terreno, mas ainda assim não havia ninguém próximo o suficiente para chegar tão rápido no segundo andar. Mas que diabos?!
Aquilo não fazia sentido. Como ele foi capaz de chegar tão rápido? Archie descartou a possibilidade dele ter sido tocado por Weezy, já que sua aparência não coincidia. Mas agora que confiava mais na sua habilidade, decidiu tentar novamente.
Foi apressado rumo às escadas, decidindo ir direto para o quarto do Sr. Thompson. Ao chegar ao corredor, olhou para o vão da escada, não vendo ninguém. Esperou um pouco, pois se o Sr. Thompson aparecesse ali, poderia fazê-lo tropeçar usando o fio.
Mas após um minuto esperando, se convenceu de que por sorte, o Sr. Thompson havia mudado de ideia, então foi correndo até a porta. Será que toda vez que eu corto o fio, o jeito que as coisas acontecem mudam?
BAM!
Sua pergunta foi respondida de imediato. O Sr. Thompson estava diante dele, surgindo da porta do quarto de hóspedes no fim do corredor. Ele segurava a carabina.
— Só pode estar brincando — Archie disse, indignado.
— Parado, Archie. Eu sei que está tramando algo desde o começo, sei que são amigos do governo americano.
Ele repetiu o que disse, mas sua estratégia para me encurralar foi diferente. Merda, então essa habilidade tem uma desvantagem.
Archie sabia que não podia fazer nada, mas assim que se virou, foi atingido pelas costas, sentindo novamente aquela dor lancinante. Se estatelou pelos degraus sem piedade.
Ele ficou meio tonto, só voltando à lucidez quando ouviu o grito do Sr. Thompson, seguido dos disparos na sala. Sangue escorria de sua boca, sentia sua vida indo embora. Precisava romper o fio.
Ele o levou até a boca. O padrinho surgiu na escadaria, notando que o jovem ainda estava vivo. Archie, desesperado, tratou de tentar romper o fio com os dentes.
— Sabe, Archie, somos taxados de malucos…
Para sua sorte, as falas continuavam independente das possibilidades geradas pela volta no tempo. O que fazia sentido, já que sem aquela habilidade, era improvável Archie sobreviver.
ZOOM!
Ele estava de volta próximo ao armário. Certo, preciso ser rápido!
Sem rodeios, apenas avançou direto para o segundo andar. Mas antes mesmo que ele chegasse às escadas…
BANG!
— Ora, achou mesmo que eu não ia perceber sua saída? — disse Hector, após um tiro em cheio no abdômen de Archie com sua Magnum.
Desgraçado. Archie pensou, já caído no chão, pela terceira vez mordendo o fio.
ZOOM!
Mais uma tentativa.
Decidiu seguir a mesma estratégia, começando a ficar com raiva e prometendo atacar o primeiro a aparecer na sua frente. Pena que enquanto ele pensava isso, o Sr. Thompson saiu da dispensa ali e atirou em suas costas ao primeiro degrau que pisou.
— Parado, Archie… bem, acho que é tarde demais para dizer isso.
Amaldiçoando a todos, o detetive mordeu o fio uma enésima vez.
ZOOM!
Dessa vez foi direto para o salão, até Hector, que lia tranquilamente seu jornal.
— JÁ CHEGA! — ele gritou agarrando o velho pela gola das vestes — você e o Sr. Thompson vão me deixar subir naquele quarto!
— O que está fazendo, Archie! — Paul disse, ele e Victor se colocaram de pé, confusos.
— Ele só pode ter enlouquecido mesmo — Hector disse — me solte seu imprestável, parece até um dos vários bandidos que já matei.
— Cala a boca! Onde é que tá a sua arma, hein?
— Hihihi, hihoho — ouviu a risadinha nas suas costas.
Ao se virar, viu Nicholas, apontando a Magnum para ele, com um sorriso alegre de criança.
— Vá a merda — Archie apenas disse.
BANG!
Dessa vez a bala atingiu o pescoço de Archie, o fazendo se ajoelhar no chão e não conseguindo respirar enquanto sangue jorrava loucamente. Todos ao redor ficaram desesperados. Archie não foi capaz de morder o fio, mas tentou o puxar enrolando na mão.
Aquele foi o maior desespero que sentiu na vida. Estava literalmente perto da morte, quando…
ZOOM!
Antes de tudo, tocou no pescoço, sentindo o maior alívio da sua vida. Victor ou Paul haviam cortado o fio, pelo que parecia.
Agora, com a força do ódio, estava decidido a chegar no quarto. Archie pegou uma faca na gaveta próxima, prometendo que mataria quem o impedisse. Quase morrer tantas vezes já estava o deixando louco.
Ele caminhou com cautela, seus olhos varrendo todas as direções freneticamente. Chegando até a escada, subiu degrau por degrau, girando a cabeça o suficiente para ficar tonto. Mas ao chegar lá em cima, ele não avançou, mas já deixou o fio na boca para caso o Sr. Thompson surgisse repentinamente.
Dois minutos se passaram e nada.
Bateu o pé fortemente no chão para avisar que estava ali… mas ainda assim ninguém apareceu.
Sem querer concluir nada para o bem da sua sorte, ele avançou devagar, sentindo o suor escorrer pela testa. Não queria levar mais um tiro, era doloroso demais.
Faltavam cinco passos… quatro… três… dois… Ufa.
Ele conseguiu pôr a mão na maçaneta sem ser surpreendido. Decidiu que não queria perder aquela oportunidade, então abriu a porta, espreitou e adentrou o quarto.
Aquele era sem dúvida um quarto luxuoso; vários artigos de turfe, incluindo troféus e fotografias de jóqueis famosos em cima de prováveis cavalos dos Estábulos Thompson. Mas Archie se viu hipnotizado por um quadro acima da cama do casal, o “Ride of the Valkyrie” de William T. Maud, um quadro contemporâneo belo em sua opinião.
Decidindo retomar o foco principal, ele percebeu que a Sra. Thompson o encarava. Era uma mulher esguia de cabelos pretos desgrenhados. Seus olhos pareciam um tanto vazios e ela não parecia surpresa de ver Archie ali.
Porém, o que mais intrigou o jovem, foi que ela estava embrulhada e aparentava haver alguém debaixo da coberta, um ser pequeno que parecia estar sendo amamentando.
— Eu estava o esperando, Archie Becker — ela disse, com uma voz meio rouca — ou melhor, ele estava o esperando.
— Ele… quem? — Archie só conseguiu perguntar, intrigado e perturbado ao mesmo tempo.
— Meu filho, naturalmente.
— Seu… o quê?! Espera um pouco, Sra. Thompson, vocês estavam escondendo que tinham um filho? — Archie então teve uma epifania — agora eu entendi! Então Weezy viu o quanto vocês eram malucos e não os transformou em criaturas, sabendo que poderia os ter como vassalos apenas com uma historinha, e claro, ameaçar o bebê. Isso quer dizer que o Sr. Thompson mentiu quando disse que ele a tocou.
— Não poderia estar mais errado, Archie — ela disse, sorrindo, fazendo o detetive estreitar os olhos — Na realidade, ele me tocou, sim, e eu ganhei este filho. Veja.
Mas sem o jovem estar preparado, a Sra. Thompson retirou a coberta de cima da criança.
— AHHHHHHH! — Archie deu o grito mais alto de sua vida, caindo no chão e se arrastando para a porta, sem tirar os olhos da criatura à sua frente — QUE MERDA É ESSA?!
O ser que ele via estava longe de ser um bebê comum, apesar da estatura. Seus olhos vermelhos o fitavam profundamente e à medida que os segundos passavam, Archie começava a alucinar, tendo uma visão.
Primeiro viu as maiores catástrofes naturais, em escala. Grandes ondas derrubando cidades inteiras, até tentáculos negros assustadores balançando no céu. Em seguida, esse tentáculo se transformou em uma espécie de meteoro gigante, que logo se tornava uma bola vermelha e ia colidindo contra uma pequena cidade rural no deserto.
A calamidade diante dos seus olhos fez o coração acelerar. Ele não sabia o que era aquilo, mas era pior que qualquer coisa que havia visto. Até mesmo seus maiores medos, borboletas ou os contos mais assombrosos de Edgar Allan Poe não chegavam nem perto daquilo.
— AH, MERDA, ME DEIXA SAIR, POR FAVOR, ALGUÉM!
O fio, eu preciso morder. Ele pensou, com o coração tão acelerado que a qualquer momento ele teria uma parada cardíaca de tantas visões horríveis diante seus olhos.
Mas como seria incapaz de levantar a mão, ele usou a força que lhe restava para empurrar a porta, forçando o fio a romper. Ele tentou, mas não parecia estar fazendo efeito, e seu ar já começava a ir embora…
ZOOM!
Archie retornou ao ponto de controle desmaiado, levando quase um minuto para a sua visão retornar e ele se dar conta do que devia fazer.
Notou que até mesmo o fio estava desaparecendo de sua mão, retornando para dentro do dedo indicador. Pelo visto, o efeito de uma hora ainda contava mesmo entre as linhas do tempo geradas pelo efeito, como se existisse um relógio unidimensional.
Preciso avisar Paul e Frankenstein. Não importa os cavalos, precisamos dar o fora daqui.