As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 33
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- Capítulo 33 - Teoria do Não-Transcendental
“Talvez o aspecto mais forte desta teoria, seja em como a realidade é pautada, em sua maioria, em coincidências, sejam elas plausíveis, assertivas, trágicas, absurdas ou surreais” – Pulget, o pequeno
Suas mãos seguravam firme o pão açucarado o qual furtou. Aquela sem dúvida seria uma de suas refeições mais fartas. No entanto, sabia que devia tomar cuidado em escondê-lo bem.
Paul estava mais radiante que o normal naquele dia. Sim, um chão frio e duro o aguardava, com um risco de chuva ou perturbação comuns de uma vida miserável como aquela. No entanto, ele seguiria o que havia lido no livro de Pulget: “A verdadeira felicidade só se alcança, quando antes temos plenitude e humildade de se conformar com nossa situação atual”.
Então, na situação atual de Paul, um pão açucarado era mais que um excelente motivo para se alegrar.
Preferia não andar tão sorridente naquele momento, pois as ruas de Londres eram bem cheias, e ele não podia chamar atenção. Paul tinha a “sorte” de não ser a única criança maltrapilha na multidão, o que o fazia quase sempre passar despercebido.
Porventura, fui eu quem escolhi esse destino? Ele sempre repetia o questionamento para si, tentando encontrar um sentido interno.
O garoto não sabia exatamente a definição de escolha. Desde que se entendia por gente, caminhava como um rato à espreita nas ruas do centro de Londres, sobrevivendo com migalhas.
Lembrava muito pouco de sua mãe, nem sequer sabia dizer o momento que ela o deixou.
Durante algum tempo, Paul acreditava que aquele era um teste natural da vida, o qual devia superar, considerando que havia outras crianças sozinhas na rua do mesmo jeito que ele.
Isso até se deparar com uma cena:
“Mãe, compra pra mim”. Viu uma criança, mais ou menos da sua idade, muito bem vestida, pedindo uma coleção de soldadinhos de chumbo para a mãe.
“Sim, meu filho, vamos comprar”, a mãe, uma nobre senhora esbelta, disse carinhosamente ao seu filho.
Ao ver os dois entrando na loja, Paul sentiu seu mundo cair, ficando paralisado por vários minutos, até ser abordado por um policial e ter de sair do caminho.
Naquela noite, deitou sobre o chão frio, derramando lágrimas em silêncio, para não acordar os outros moradores de rua daquele beco.
Mas com o passar dos anos, ele foi se acostumando àquela vida, se acostumando às regras de se morar nas ruas de Londres. Claro, o que ajudou muito foi encontrar um beco onde outros moradores de rua lhe concederam um lugar.
Mais um pensamento sempre rodeava sua mente:
Será que algum dia eu serei feliz? Feliz como aquela criança com seus pais?
Ele não sabia a resposta, mas devia seguir firme, se mantendo vivo, enquanto aquele momento não chegava.
Após atravessar uma rua aglomerada, dando de cara com os mais nobres e bem vestidos senhores e senhoras, ele enfim chegou ao que ele podia chamar de lar: um beco, mais especificamente, um chão frio com uma cesta ao lado.
Ali dentro, havia seu único pertence: um livro chamado “Teoria do Não-Transcendental” de Pulget, o pequeno. Ele o encontrou em uma lixeira certo dia, logo ficando fascinado com o conteúdo, já que só via livros bem de longe nas livrarias.
Quando o pegou, já sabia mais ou menos ler, graças a jornais descartados e ajuda de um padeiro, o único comerciante que fora gentil com Paul, que já não residia mais ali.
No entanto, foi com o livro de Pulget que ele expandiu sua capacidade de leitura, além de descobrir um grande interesse na filosofia, conceito desconhecido pelo garoto, que explicava as origens de seus devaneios melancólicos e complexos.
Por mais que já tivesse lido aquele livro algumas vezes, sempre encontrava mais para absorver. Foi exatamente isso que ele fez. Ao se sentar no espaço frio de chão que podia chamar de seu, abriu o livro e começou a ler as citações do filósofo que considerava brilhantes.
Uma de suas favoritas era a que ele explicava mais sobre a teoria. Na realidade, todo o conteúdo do livro era baseado nas observações de Pulget sobre o mundo, que dizia não ser um indivíduo comum.
Muitos especularam sua verdadeira identidade, mas é consenso que ou ele sofria de nanismo, ou era humilde demais. Porém, os relatos da época realmente o descreviam como “pequeno”. No livro inteiro não havia nenhuma gravura lhe retratando.
Paul então abriu o livro — que com os anos foi se tornando desgastado, com ranhuras na capa e páginas amassadas — e passou a tarde lendo.
Ele tentava ler da forma mais discreta possível, mesmo sabendo que as pessoas que passavam na rua nunca voltavam os olhos para ele, então era fácil esconder. Às vezes até desejava que algum transeunte o notasse pelo menos uma vez.
— Ali está ele, tenho certeza que foi ele! — ouviu uma voz irritada, ao olhar para o meio da rua, viu um homem de avental, junto de dois patrulheiros fardados — foi ele quem roubou um dos meus pães!
Paul ficou confuso, mas logo entendeu que o homem estava se referindo a ele. Levantou imediatamente, deixando o local com o pão açucarado e o livro de Pulget embaixo do braço.
Devolver o pão não era uma opção, pois não seria fácil conseguir outro. E assim como já ocorreu, ele seria interrogado e logo liberado caso fosse pego pelos policiais, mas dessa vez sem uma refeição.
Durante a carreira, olhou para trás, se certificando que os policiais vinham atrás dele com todo vapor. Porém, eles não possuíam tanta habilidade em percorrer aquele trajeto desviando dos transeuntes como Paul. Uma habilidade essencial para aqueles que sobreviviam nas ruas.
Ele cruzou uma avenida inteira, tomando cuidado para não escorregar nas fezes de animais do chão. Mas mesmo que tentasse, era difícil despistar os patrulheiros, graças aos pertences que carregava.
Decidiu adotar outra estratégia: ao invés de correr em linha reta, viraria aos becos, torcendo para que a próxima rua estivesse mais cheia. Paul não sabia para onde ia. Queria apenas se ver livre, mas logo entendeu tardiamente que já estava perdido.
Paul já havia fugido antes, mas geralmente conseguia se preparar previamente. Naquela ocasião, foi pego de surpresa, então não conseguiria voltar ao cantinho que chamava de seu. Diante disso, lágrimas começaram a lhe escapar.
No entanto, continuou correndo. Sua estratégia estava dando certo, logo não via mais sinal dos policiais, se sentindo levemente mais aliviado, ainda que angustiado, pois sabia que era improvável que encontrasse o beco novamente.
Enquanto caminhava entre tantas pessoas, tentava ao máximo guardar o sentimento… até que não aguentou.
Em meio ao clima nublado da tarde, onde diversos nobres e servos transitavam pela rua, Paul derramou suas lágrimas. Ele só conseguiu parar e ficar ali, chorando alto para que todos ouvissem. O sentimento a tanto reprimido, enfim foi liberado.
Alguns que passavam olharam curiosos, porém ao atestar que era apenas uma criança da rua usando trapos velhos, voltaram a caminhar. E então Paul descobriu, que era realmente invisível para os outros, ficando ali parado no meio da rua, enquanto as pessoas desviavam, mas não se aproximavam dele.
Após extravasar completamente, Paul percebeu que não podia ficar ali parado por muito mais tempo, com medo dos policiais aparecerem. Então caminhou de forma despretensiosa pela rua, sem saber onde dormiria aquela noite.
Pelo menos ainda tenho meu livro. Ele tentou se apegar ao único pertence que poderia chamar de seu, era o máximo que possuía de algo familiar.
Decidiu que também não comeria o pão açucarado, preferindo comê-lo mais tarde, apesar de estar com fome. Não que a fome fosse algo estranho para ele. Na realidade, ela era o mais próximo que tinha de um amigo inseparável.
Seguindo sem rumo, Paul se deparou com uma rua mais isolada, um tanto sinistra. Havia diversos vendedores de coisas místicas, como incensos ou pedras com símbolos riscados.
Nunca havia cruzado aquele lugar, sentindo um pouco de medo. Ainda mais considerando que as pessoas o fitavam de forma hipnotizante. Achou melhor apenas continuar caminhando sem parecer perdido.
Ao chegar a uma área ainda mais isolada, sentia a melancolia retornar, além do estômago, que roncava alto demais.
— Onde estou… Deus — ouviu uma voz bem distante dizer — vão… levar minhas coisas.
Ao olhar para um canto da rua, viu um homem, provavelmente de meia-idade. Ele estava bem-vestido, possuía uma bigodeira bem diagramada. No entanto, era nítido que não passava bem pelo aspecto pálido de seu rosto. Ele tateou a parede no canto com uma das mãos, claramente tonto.
Paul sentiu algo estranho. Não sabia explicar exatamente, mas era o mesmo que sentia ao ver gatos com fome na rua. Mas aquele homem era um nobre, afinal. Nunca vira um nobre passar por uma situação como aquela. Não parecia estável e de postura segura como um transeunte normal.
Será que há alguma forma de ajudá-lo? Foi a primeira coisa a vir em sua mente, não conseguia ter nenhuma pretensão de ignorar aquele homem.
Ele então se aproximou devagar. O homem agora estava encostado na parede próxima a um beco, respirando devagar, seu aspecto alvo doentio mais nítido.
Paul o observou em primeiro momento, deduzindo qual deveria ser o problema dele. Logo se lembrou de ouvir uma conversa entre médicos certo dia enquanto caminhava com comida furtada debaixo do braço:
“Pálido? Isso é claramente um sinal de pressão baixa, dá um torrão-de-açúcar para ele que resolve”.
O garoto não tinha total certeza da procedência daquela informação e se estavam falando de humanos ou cavalos, mas a tinha guardada mesmo assim. Olhou para o pão açucarado, com certo receio. Porém, fechou os olhos.
Ele precisa mais. Eu posso aguentar ficar com apenas um pedaço.
Ele agachou, próximo ao homem, que já estava tão a ponto de perder a consciência, que sequer reagiu quando o garoto lhe ofereceu o pedaço de pão. Paul, vendo que não conseguiria do jeito tradicional, decidiu colocar o pedaço de pão na boca do homem.
Sentindo aquele gosto açucarado nas papilas gustativas, o homem começou a mastigar o pão. Sua visão já estava mais que embasada, porém, à medida que foi ingerindo o alimento, seus sentidos pareciam ser revigorados.
Paul lhe deu mais alguns pedaços, até que enfim o homem abriu os olhos, meio confuso. Ficou mais confuso ainda ao ver um garoto maltrapilho, com um livro debaixo do braço e um pedaço de pão na mão.
— Está funcionando — o garoto disse, entusiasmado — o senhor quer mais um pouco?
O homem não respondeu, atônito com a visão daquele garoto. Ele era educado, além de não parecer estar o roubando, muito pelo contrário.
— Qual o seu nome… garoto? — o homem perguntou com uma voz fraca, realmente se recompondo.
— Paul, apenas… e o seu?
— Henry Becker — o homem sorriu.
Paul retribuiu, sentindo algo estranho. No fundo, ele sentia que o homem não o odiava por ser um garoto de rua.
— Está com fome? — o Sr. Becker perguntou.
Paul colocou a mão sobre a barriga, sentindo o estômago roncar.
— Um pouco — o garoto foi modesto.
— Bem, se não fosse você, filho, eu não sei o que seria de mim e meus pertences — o Sr. Becker se pôs de pé, Paul fez o mesmo — o mínimo que posso fazer é retribuir.
Paul se sentiu meio envergonhado por aquela abordagem, afinal, ainda estava diante de um nobre. Mesmo assim, acenou positivamente. Ainda que não quisesse ser atrevido, não tinha capacidade alguma de recusar o pedido, tamanha a fome que sentia.
— Oh, peço perdão, não quis parecer ríspido — O garoto olhou o homem com uma expressão de surpresa, pois era a primeira vez que alguém lhe tratava com tal cordialidade — vamos a um dos meus restaurantes favoritos… isso se seus pais deixarem, claro.
Naquele momento, Paul se sentiu consternado. Aquele assunto sempre o deixava melancólico, mas apesar da resposta lhe doer, precisava ser sincero.
— Não tenho pais… talvez alguma memória de minha mãe… não sei ao certo.
Henry na mesma hora sentiu um certo incômodo. De fato, existiam várias crianças abandonadas como Paul, mas a correria do dia a dia nunca o permitiu refletir mais sobre. Mas interagindo com aquele garoto, sabia que nunca mais veria as coisas da mesma forma.
Porém, o que mais o surpreendeu foi o livro que ele carregava debaixo do braço.
— Se me permite a pergunta, filho, sabe ler? — perguntou apontando para o livro.
Novamente, Paul foi pego de surpresa com a indagação, porém, aquela o deixou animado.
— Ah, sim, eu sei. Aprendi meio que sozinho quando achei esse livro e lendo matérias de jornais — Paul estendeu o livro para o Sr. Becker.
Sozinho? O físico pensou, vendo que o livro se tratava de um dossiê do filósofo Pulget, o pequeno, que ele conhecia de forma superficial. Esse garoto é um potencial prodígio!
— Isso é muito interessante, filho — Henry agora sorria genuinamente, devolvendo o livro para Paul — e então, o que acha de experimentar uns Scones com chá?
Paul adorou a ideia, recordando de passar na frente de algumas padarias e ver o tão tradicional e supostamente delicioso biscoito inglês. Acenando positivamente, ambos começaram a caminhar para fora daquela rua sinistra.
Aquele dia foi o ponto de virada da vida de Paul. Quando uma simples coincidência — ou talvez sorte — o fez conhecer alguém que poderia chamar de pai, alguém que se orgulhava dele. Também ganhou uma mãe amorosa e um irmão, que apesar de oposto, ainda era alguém que se importava com ele.
A Teoria do Não-Transcendental manifestou-se naturalmente naquele dia, felizmente para o sucesso de Paul.