As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 34
“Às vezes me pego com um questionamento labutando em minha consciência: por que continuamos, se no final tudo irá expirar? Não faço ideia da resposta, apenas o quão tentadora é a vontade de continuar, em meu caso” – Pulget, o pequeno
Eu só queria estar em casa. Paul pensou, quando finalmente abriu os olhos, que estavam marejados de lágrimas.
Demorou até se lembrar o que havia acontecido, que estava ali após cair em um alçapão no meio do grande salão do castelo. Também recordou que Archie e Victor provavelmente estavam em apuros.
Paul tentou se levantar, não conseguindo enxergar nada naquele breu, exceto sentir o imundo chão frio em que estava, uma sensação familiar. Eu só queria estar em casa, eu nunca pedi por isso.
— POR QUÊ! POR QUE EU ESTOU AQUI? O QUE FIZ PARA ESTAR AQUI, ENFRENTANDO TUDO ISSO? — Paul gritou, abalado e cansado de guardar aquele sentimento para si — Eu merecia mesmo isso? Será que ter uma vida boa foi uma sorte grande demais pra ser verdade?!
Ele não sabia as respostas, se perguntando como aquilo se encaixava na Teoria do Não-Transcendental. Se sentia totalmente melancólico. Sentia que a verdade estava estampada desde o início da jornada: eles iriam morrer, antes mesmo de chegar até Weezy.
Eu sou apenas uma criança, não sou especial, eu não tenho capacidade…
Porém, diante daquele pensamento, começou a chorar de forma descontrolada, colocando as mãos na cabeça. Aquilo tudo era demais para ele.
Cadê o sabre, cadê?!
Ele começou a tatear pelo chão, até por fim encontrar o sabre afiado.
Mas logo uma movimentação inesperada se agitou pelo ambiente. Era uma horda de morcegos, a mesma que havia lhe jogado ali embaixo. Ignorando qualquer senso de apreensão, ele começou a perfurar qualquer coisa que se aproximava.
— MORRAM, APENAS MORRAM.
Quando conseguiu uma visão melhor do local, viu que se tratava de uma masmorra abandonada, cuja única luz que entrava era a de cima. Aparentemente haviam construído alçapões nas celas para talvez aprisionar facilmente inimigos após os convidar para uma conversa formal.
Com todo o ódio e descontrole, Paul deixou a masmorra que estava aberta. Kennedy provavelmente não temia Paul por ele ser uma criança, mas lá estava o garoto, caminhando para fora das masmorras com o sabre em mãos, junto de um semblante monstruoso.
Pra mim já chega!
***
Mas que merda, esses seguidores de Weezy são todos uns lunáticos. Archie pensou com desdém.
Ele e Victor tinham o privilégio de estarem sentados na primeira fileira, diante do palco de Kennedy e um piano velho. A sala circular da torre a qual se encontravam era um tanto claustrofóbica, mas acústica o suficiente para um som limpo.
Além deles, outros monstros capangas — em sua maioria esqueletos, zumbis e ghouls — ocupavam as cinco fileiras de cadeiras no recinto. No entanto, o show ainda não havia começado, já que Kennedy parecia estar afinando o piano, de um jeito que Archie nunca tinha visto.
— Um segundo, meus queridos convidados, logo iremos começar o show — Kennedy disse, tentando acalmar a plateia — problemas técnicos, acontecem nas melhores famílias.
Archie estava tentado a dizer que ele devia pressionar o pedal sustain antes de pôr os abafadores para dar certo, mas no momento tinha coisas mais importantes para se preocupar.
— O que vamos fazer, Becker? — Victor perguntou baixinho — o jovem Paul deve estar com problemas, melhor não esperar que ele nos resgate.
— Você é um poço de esperança, Frankenstein — Archie olhava fixamente para os balões de fundo redondo e as armas no canto da sala — precisamos dar um jeito de nos soltar e pegar aquelas armas. Lembra do que ele disse? Que vai nos matar após o show, ou seja, não temos muitas opções.
— Então, foi bom conhecê-lo, Becker — Victor aceitou a derrota
Alguns minutos depois, Kennedy parou de mexer no piano — como se realmente tivesse conseguido afiná-lo — ficando de pé e se virando para a plateia.
— Muito bem, muito bem. Eu, Lorde Orlok Kennedy (meu nome artístico) irei hoje performar para vocês algo inédito, ou pelo menos quase inédito — Kennedy se assentou no banquinho diante do piano — o nome da primeira música é “La Cancion de Un Hombre Sin Dedos”, a primeira música atonal a ser apresentada publicamente.
Todos, exceto Archie e Victor, aplaudiram e manifestaram um coro. Logo o vampiro começou a tocar. Eles tiveram a surpresa de testemunhar o que era uma música atonal.
A melodia era desprovida de qualquer coerência lógica que se veria em uma música comum de Bach ou qualquer outro músico competente. Como o nome indicava, ela não tinha uma tonalidade preponderante. Ou seja, era uma tortura ouvir aquele amontoado de sons sem propósito.
Merda, por que ficamos logo na primeira fileira? Victor pensou, angustiado por não conseguir tapar os ouvidos.
Mas eles não estavam preparados para o pior que estava por vir, uma cantoria:
Meu nome é Kennedy, eu estou aqui presente
Para lhes contar uma história…
Ele fez uma pausa, improvisando aparentemente o próximo verso.
De derrota, yeah!
Era uma vez, um garotinho pequeno
Ele morava com seus pais, por inteiro
Nasceu desprovido, com os dedos virados
Não conseguia nem ficar de quatro
Pegar objetos em baixo da cama era uma tortura
Mas não mais que a tontura… de não ter os dedos
Essa minha música é pura improvisação
Mas a virada na minha história não é não
Sempre quis ser músico
Mas com as mãos tortas era apenas um inútil
Até um dia conhecer o sacerdote Damon
E meu rumo de vida mudou por inteiro, yeah!
A plateia vibrou.
Há algumas horas conheci Vossa Majestade Weezy
Um pedido ele me concedeu
Agora com as mãos curadas, trago-lhes essa apresentação que é uma verdadeira Saga!
Ele tocou as últimas notas lentamente, que pareciam mais esbarradas de um gato nas teclas que o encerramento de uma canção.
Os monstros aplaudiram, como se fosse a coisa mais extraordinária que tivessem ouvido — e talvez tivesse sido mesmo — Já Archie e Victor agradeceram pelo fim da apresentação, pensando que teriam um ataque epiléptico sonoro.
— Sim, sim, muito bem, ótima entrada, não? Mas não desanimem, as outras serão ESTOUROS maiores ainda!
Deus, nunca lhe pedi nada, então só faça ele parar de tocar essa droga de piano. Archie pediu, temendo por sua audição. Um salvador também cairia bem.
***
Paul descobriu a saída das masmorras, agora atravessando o castelo e seus inúmeros andares. Com seu sabre, ele combatia os inimigos que surgiam pelo caminho, o que não era tão difícil, já que a confusão deles em considerar Paul como oponente era notável.
A pouco uma melodia horrível havia se iniciado. Apesar de abafada, era possível de ser ouvida, sendo por ela que o garoto se guiava.
Ainda cheio de um ódio repentino, ele seguia com toda violência, destronando os esqueletos e zumbis sem piedade, bradando no processo. Ele nunca havia sentido aquilo antes, uma espécie de selvageria.
Mas mesmo possuído por tal adrenalina, ele não deixou de ter devaneios, dos mais revoltantes: Ele pensava em como tudo aquilo que eles se meteram fora culpa de Archie e de sua ideia imbecil de encontrar um cliente em um cemitério.
Por causa disso, ele colocou Paul e o resto do mundo em perigo, e para quê? O garoto não sabia dizer, mas sabia que toda aquela jornada suicida estava destruindo sua mente, por mais que ele tentasse esconder.
E pela segunda vez, estava a seu cargo salvar o irmão e até Frankenstein. Paul não tinha intenção nenhuma de deixá-los morrer, mas já havia tomado uma decisão importante.
Archie no fundo, nunca o respeitou, ele sentia. Era como se Archie guardasse algum tipo de rancor por Paul passar a ter mais o afeto do pai.
Ele nem sequer parou pra pensar sobre mim, sobre de onde vim. Ele nasceu com tudo, ele tem mais amigos, mais habilidades sociais, por que se amargurar tanto comigo? Ele só pode me odiar no fundo, não tem outra explicação.
E com aquele pensamento, Paul cravou seu sabre em um zumbi com uma força tamanha, que fora como furar um sofá.
Ele parou no meio do corredor que estava, com um grito furioso e uma expressão assassina. Quando seu olhar varreu os outros monstros ao redor, eles se sentiram intimidados, deixando o local.
Midna, ela olhou bem nos meus olhos, como um olhar de compreensão. Paul pensou, sentindo suor escorrer pela testa. Eu não conheço sua história, mas ela nos libertou, eu preciso fazer isso, matar Kennedy e salvar sua família, apenas por ela.
E agarrado aquele pensamento, ele seguiu, sentindo tanto ódio do irmão que era incapaz de seguir apenas por ele. O Dr. Frankenstein também merece viver.
***
Havia um homem, no abismo
Ele olhou para o abismo, o abismo olhou de volta
O que lhe restou foi só a memória
O abismo tá aí, o abismo tá aqui
O abismo tá lá, tem abismo pra cá
Ha ha, Ha ha ha!
Tem abismo pra lá, tem abismo pra cá, ha ha…
Archie e Victor sentiam que havia um poder obscuro naquela melodia — que Kennedy chamou de “La Rapisodia del Abismo” — sentiram náuseas pelos sons desconexos e agonizantes, em especial os daquela música, que eram mais barulhentos que o normal.
Aquela já era a terceira música, o que indicava que certamente não havia um salvador chegando.
Precisamos sair daqui. Victor pensou, começando a mexer a cadeira. Não sabemos se está perto do fim, fora que o Jovem Paul precisa de nós.
Ele não sabia explicar, mas simplesmente não queria que os irmãos Becker morressem, não exatamente pelo utilitarismo deles na jornada, mas por algum motivo se importar com eles.
O único plano que veio a sua mente foi derrubar a cadeira, o que não seria muito complicado. Ele a balançava de um lado para o outro, com o intuito de que ela virasse com impacto suficiente para quebrar. Archie o fitou, incrédulo.
— O que tá fazendo? — ele perguntou aos cochichos — acha mesmo que isso vai dar certo? Não tá vendo as criaturas olhando?
E realmente, alguns dos esqueletos e zumbis olhavam curiosos para a tentativa de Victor.
— E que outra escolha temos? — Victor respondeu, tomando cuidado para não cair com pouco impacto — quando esse maldito terminar de tocar essas porcarias que ele chama de música, vamos morrer.
— Eu acho mais seguro esperarmos, eu sinto que Paul conseguiu se safar — Archie parecia esperançoso.
Victor parou de balançar a cadeira, lançando um olhar torto para o outro.
— Você só pode estar brincando, não é? O jovem Paul é apenas uma criança, ele nem sequer merecia passar por tudo isso. Não era para nós, adultos, estarmos preocupados em salvá-lo?
O questionamento veio como uma facada em Archie. Frankenstein estava certo, mas na situação que estavam, não podia descartar aquela possibilidade.
— A culpa não é só minha, como eu ia saber que tinha um esquisitão fazendo experimentos em um cemitério abandonado?
— Sim, claro, porque qualquer pessoa em sã consciência iria de noite para um cemitério fazer negócios com estranhos, não é?
— Era um caso muito valioso, se quer saber. Se eu voltasse para casa com um caso dessa magnitude resolvido, meu pai não ficaria apático.
— Então aceitou essa proposta só pra agradar seu pai? — Victor cada vez mais achava que Becker era algum tipo de biruta.
— Agradar ele? De jeito nenhum — havia rancor em sua voz — mas com certeza ele veria algum valor no caminho que eu quero seguir…
Frankenstein havia entendido tudo. Archie estava desesperado para provar para o pai que seu sonho fazia sentido, já que ele sempre o havia rejeitado. Mas mesmo achando curioso aquele fato, no momento tinham coisas mais importantes para resolver.
Voltou a balançar a cadeira.
— Deixe as discussões para depois. Agora anda, começa a balançar essa cadeira.
— Isso vai dar errado e eu vou rir da sua cara no pós-vida, se ele existir.
Então ambos começaram a balançar as cadeiras de um lado para o outro. Alguns monstros coçaram a cabeça, não entendo exatamente o que os dois humanos estavam querendo fazer.
“E depois dizem que os monstros quem são desprovidos de inteligência”, um dos esqueletos disse ao outro.
Mas sabendo que parecia impossível, Archie e Victor o fizeram. Após muito balançarem, enfim fizeram as cadeiras caírem com o todo o impacto no chão. Para a surpresa do detetive, o plano havia dado certo, as cadeiras quebraram, os libertando das amarras.
No mesmo instante, todos os monstros se colocaram de pé, ameaçadores. Mas Kennedy continuou cantando e tocando o piano, sem nem notar o furdunço que havia se instaurado.
A dupla, agora liberta, se levantou, planejando ir correndo até as armas. Mas a quantidade razoável de oponentes era intimidante o suficiente. É como num duelo de cowboys, quem agir primeiro, vence.
Archie duvidou da própria afirmação, já que as armas estavam bem próximas de Kennedy, além da porta, que estava fechada.
— É, Frankenstein, parece que estamos perdidos.
Victor não respondeu, relutante e refletindo sobre como agir.
BAM!
Mas o que todos não esperavam era a porta ser arrombada repentinamente, por ninguém mais, ninguém menos que…
— PAUL! — Archie exclamou.
— Jovem Paul, então está bem! — Victor se sentiu aliviado.
Mas Paul não parecia o mesmo. A expressão de ódio em seu rosto ensanguentado era irreconhecível. Até mesmo Archie se surpreendeu, já que o irmão parecia sempre ponderado.
Foi nesse momento que Kennedy parou sua apresentação e se virou para o novo intruso.
— Quem ousa interromper meu show?! — ele disse, furioso, se virando para a plateia — e vocês todos, por que estão em pé? E como deixaram esses dois patetas se libertarem? Receio que terei de demitir alguns… AAHHHHHHH!
Quando menos esperava, o vampiro teve seu estômago trespassado pelo sabre de Paul. Ele olhou para a ferida, olhou para o garoto, repetiu o processo, incrédulo com sua audácia.
Mas logo caiu para trás, duro.
Paul removeu a lâmina, ofegante. Os monstros pareciam ainda mais desacreditados em ver seu mestre perecer tão facilmente. Archie e Victor não sabiam como reagir diante daquele semblante irreconhecível de Paul.
— O que estão esperando? — Paul perguntou, em um tom de urgência — Peguem logo essas armas e vamos sair daqui.
Foi exatamente o que fizeram, mas ao darem as costas para as criaturas, elas perceberam que deveriam atacar.
Ali começou um confronto, onde Paul destronou alguns deles com seu sabre, enquanto Archie e Victor disparavam contra os inimigos, que mal tiveram chance de se defender. Depois do primeiro impacto de ter que aceitar a existência de monstros sobrenaturais, já eram capazes de lidar tranquilamente com eles.
E apesar das criaturas possuírem a vantagem numérica, a fúria e agilidade do trio era maior.
— MORRE DIABO! — Victor bradou, após o último zumbi restante resistir aos seus tiros de Magnum — ahhhh, merda!
CLACK!
Paul enfiou a ponta do sabre na jugular do monstro. Sangue jorrou por toda parte, mas ele enfim caiu derrotado.
— Alguns deles tem que acertar direto na traqueia — Paul explicou.
Todos os inimigos estavam caídos, eles haviam vencido aquela peleja. Só deveriam descobrir onde os reféns estavam.
Archie notou que o irmão parecia abalado de alguma forma. Lembrou do que Midna havia lhe dito, que deveria cuidar do irmão. No entanto, duvidava que poderia fazer alguma coisa quanto aos traumas que ele ia adquirindo durante a jornada.
— Paul, tá tudo bem…
— O castelo ainda tá cheio de monstros, precisamos sair logo daqui — o garoto interrompeu o irmão, ríspido — enquanto passava, vi um quarto guardado por cinco sentinelas.
— Não precisa mais fazer nada, Jovem Paul — Victor disse, com um olhar compreensivo — nós podemos cuidar disso, não precisa se arriscar mais.
Pouco confiante, Paul acenou positivamente para o cientista.
— Vocês cometeram um erro ao vir nesse castelo e interromperem meu show — ouviram uma voz às suas costas — acham mesmo que suas armas seriam capazes de ferir-me gravemente? Yu-ha-hi! NÃO SABEM NADA SOBRE VAMPIROS DE VERDADE!
— Isso é o que vamos ver — Archie disse, tentando disparar… mas já havia esgotado todas as balas — merda.
Mas o que nenhum deles esperava, era Victor erguendo uma das cadeiras da plateia e atingindo em cheio o vampiro, que graças às leis da física foi arremessado contra a parede.
Os irmãos o encararam incrédulos.
— Eu preciso dizer que essa é uma boa hora pra sair correndo daqui?
E foi o que fizeram, deixando a sala circular com urgência. O combate ainda não havia terminado. Haviam subestimado Kennedy.
Desceram as escadas em formato de caracol da torre o mais rápido que podiam, mesmo com medo de tropeçar nos degraus. Era preciso pensar em um novo plano para derrotar o oponente.
— Eu não tenho nenhuma ideia plausível pra derrotar esse cara — Archie disse, meio ofegante pela corrida — mas pelo que sei, vampiros não gostam de alho.
— Eu tenho quase certeza que não vamos encontrar alho tão facilmente aqui, Becker — Victor foi realista — mas ele deve ter uma fraqueza segundo as lendas, não foi assim com o lobisomem?
— A única fraqueza plausível que consigo pensar é a luz do sol — Paul disse — o que seria impossível de obter nas atuais circunstâncias.
Eles finalmente chegaram ao fim das escadarias, deixando a torre e adentrando um novo corredor. Os monstros pareciam confusos pela movimentação, mas logo atrás surgiu uma voz.
— PEGUEM ELES, SEUS IMPRESTÁVEIS!
Ao olhar para trás, Archie viu um morcego os seguindo, se lembrando da capacidade de transformação do vampiro. Agora estamos lascados.
Derrotando criaturas pelo caminho, Paul conseguiu os fazer deixar aquele corredor, descendo mais escadas. Archie tinha um plano em mente, desprovido de certeza e totalmente baseado em achismo como suas outras ideias.
— Há outra fraqueza para vampiros — os outros o fitaram — uma cruz, água benta ou qualquer objeto sagrado, precisamos achar uma ala de reza nesse castelo, tem que ter uma!
— Eu sei onde — Paul disse de imediato — há candelabros na entrada, apesar de ser um plano tolo.
— Não subestime meus planos tolos, Paul.
Paul ignorou o comentário irônico.
Eles seguiram mais um pouco, desviando e ignorando inimigos pelo caminho, acumulando um verdadeiro exército atrás deles.
Felizmente, logo encontraram uma porta adornada de candelabros e uma cruz no centro. Sem perder muito tempo, adentraram o recinto sagrado sem muitos problemas. Como esperavam, encontraram ali uma pequena catedral, com alguns bancos e um altar expondo a imagem de Jesus crucificado.
Para a infelicidade do detetive, não havia uma cruz pequena ali, mas em compensação a sala estava cheia de jarras com água benta em cima de mesinhas espalhadas pela sala, assim como um vidro de azeite no altar.
Hora de mais uma mistura.
Mas antes que pudesse sacar os balões de fundo redondo, foram surpreendidos pelo vampiro e seus monstros, enfim encontrando o cômodo. Junto dele, também havia uma horda de morcegos, que começaram a voar por toda a sala, derrubando os jarros de água, encharcando o chão.
— Vão, meus filhotes e monstros, mostrem a eles quem é o verdadeiro conde deste castelo! — Kennedy bradou para o seu exército, que avançou.
Paul com seu sabre e Victor com um candelabro tentaram enfrentar os inúmeros inimigos, mas daquela vez estavam em desvantagem. Archie aproveitou para sacar os balões e ir para trás de um banco fazer a mistura.
Em um balão tinha água benta, no outro azeite ungido.
Por algum motivo, um devaneio deverás estúpido veio a sua mente: se Kennedy era um vampiro e sua fraqueza eram coisas sagradas, por que misturar dois líquidos sagrados não poderia gerar algo efetivo?
Vai, vai!
Cada segundo era precioso ali, mas após ver a mistura enfim se transformar em um líquido amarelo gasoso, ele a engoliu de uma vez. No mesmo momento, um único morcego apareceu acima da sua cabeça, o fitando profundamente.
— Oi, meu chapa!
Reconhecendo a voz de Kennedy, se afastou dali apressadamente, a ponto de deixar os balões para trás. Mas não importava, ele já havia ingerido a mistura, só precisava descobrir seu efeito.
O vampiro voltou a sua forma humanoide, caminhando graciosamente até um Archie apavorado.
— Archie Becker — Kennedy pronunciou, seu sorriso se tornando malicioso ao revelar os caninos — quem diria que o filho de um dos homens mais inteligentes de nossa era fosse tão burro de aceitar a proposta de encontro em um cemitério. Yu-ha-hi!
Archie não respondeu. Definitivamente, provocar não era o dom de Kennedy. Ao invés disso, ele olhava aos arredores em busca de encontrar algo para distrair Kennedy enquanto descobria o efeito do elixir. Viu os companheiros resistindo com muita dificuldade. Eu preciso ser rápido.
— Quem lhes contou sobre os reféns neste castelo? Foi aquela garota, não foi? Nem mesmo lembro o seu nome — o inimigo parecia se deliciar em ver o detetive ficando cada vez mais sem saída — o Sacerdote Damon avisou que ela não era confiável, mas Milorde disse que ela seria útil. Como milorde nunca está errado, receio que após os matar, MEUS SERVOS IRÃO JANTAR AQUELAS CRIANCINHAS! E EU MESMO MATAREI A GAROTA, YU-HA-HI!
Se vendo sem saída, Archie escorou na parede, sem poder fazer nada enquanto o algoz se aproximava. Seria essa a primeira mistura que dá errado? Que momento oportuno, hein.
Era decepcionante, depois de tudo que passaram ter de morrer ali, mas Archie sabia que isso sempre fora o provável. Haviam enfrentado mais do que qualquer um aguentaria. Ele deu uma última olhada para Paul e Victor, se sentindo péssimo por não cumprir nem sequer a promessa de Midna.
— Ora ora, vejo que já está aceitando a morte — Kennedy levantou o queixo do jovem já cabisbaixo — veja pelo lado bom, pelo menos morrerão como os sacrifícios pelo Inominável que deveriam ter sido desde o íni… QUE, AHHHHH…
Repentinamente, o monstro começou a ser atacado pelas costas. Archie demorou a notar, mas assim que ele se virou, viu um gato preto preso ao manto do vampiro, o arranhando sem dó.
Igor! Ele concluiu. Sem querer, tocou na água caída no chão, sentindo algo estranho.
O vampiro travou um confronto verdadeiramente ridículo contra o bichano, que por nada desgrudava do conde. Logo a atenção de todos os presentes voltou para ele, com até mesmo os monstros parando de atacar para testemunhar o vexame de Kennedy.
— Sai daqui… seu… bicho-IMUNDO! — Quando enfim conseguiu remover o felino das costas, ficou atônito ao notar que não era um gato comum, mas sim um conhecido — vejamos, um gato preto, acompanhado dessas três patetas, SÓ PODE SER VOCÊ!
— Miau! — Igor disse, armado para mais um ataque.
— Vejam, vejam, esse gato, aparentemente um ser tão fofo. Poucos minutos antes do longo eclipse, humilhou-me ao agatanhar meu rosto, SE APROVEITANDO DO FATO DE MINHAS MÃOS SEREM TORTAS!
Alguns monstros coçaram a cabeça, confusos.
— O que estão olhando? Matem esses dois, esse gato é meu nêmesis particular, EU MESMO CUIDO DELE.
Paul, Victor e os monstros voltaram ao combate. Com todo o ódio do mundo, Kennedy se aproximou do indefeso Igor, na intenção de trucidá-lo sem dó.
— Ai, vampiro doidão — Archie disse, o vilão se virou para ele — gosta de surpresas?
Uma bolha reluzente flutuava ao lado do detetive. Ele apontou para uma das criaturas ali presentes. Assim que a bolha atingiu o zumbi, uma cratera se formou em seu crânio, o matando na hora.
Nesse momento, o combate foi interrompido.
— EU CANSEI DESSA VIDA MORTA — um dos zumbis disse — desculpe, Conde Orlok.
Ele deixou a sala, correndo… os outros fizeram os mesmo.
Archie lançou bolhas em alguns, mas no fim a maioria conseguiu fugir.
Com um mau pressentimento, o vampiro também decidiu que era melhor recuar. Logo se transformou em morcego e foi em direção à porta, mas Victor foi mais sagaz em notar aquela possibilidade, a fechando antes.
— Agora somos só nós e você, Kennedy — Archie disse, erguendo mais bolhas — preparado?
Cinco bolhas foram lançadas contra o vampiro, que graças a agilidade do morcego, conseguiu desviar com uma razoável facilidade. No entanto, a última acabou acertando seu rabo, e uma dor excruciante veio junto.
Malditos sejam. Ele pensou. Essa habilidade é realmente poderosa. Nessa forma, apesar de mais rápido, sou menos resistente. Devo tomar uma decisão.
Ele decidiu arriscar mais um pouco naquela forma.
Archie cerrava os dentes. Sabia que seu poder dependia daquela água derramada no chão, então devia ser preciso e não a desperdiçar. Felizmente o cenário estava ao seu favor. Eu preciso encurralar ele.
Então cercou o morcego com quatro bolhas, que na hora certa seriam lançadas para um ataque. Kennedy teve de escolher uma rota alternativa, mas naquele cenário apertado era mais complicado.
Hora de mostrar a eles meu verdadeiro poder! Kennedy decidiu.
Então, assim que as bolhas vieram em sua direção, ele deixou a transformação de morcego. As bolhas conseguiram se chocar apenas no manto do vampiro. Enquanto ele caia graciosamente no chão, removeu o manto em chamas do corpo, revelando um físico atlético e uma pele completamente albina.
O trio ficou apreensivo, em especial Archie, vendo que a água do local estava se esgotando, já que as bolhas iam sumindo ao se chocar com algo. Mas ainda possuía cinco delas, o que achou ser suficiente.
— Impressionados? — ele disse, ao testemunhar o trio com um semblante um pouco diferente — Yu-ha-hi! É só o começo.
— Vê se morre logo e cala essa boca — sem paciência, Archie disparou as cinco bolhas de uma vez contra o oponente. Ele certamente era incapaz de desviar de todas.
Mas não foi o que aconteceu.
Como uma virada inesperada, o vampiro desviou de todas as bolhas com uma espécie de super velocidade, a qual o trio só conseguiu distinguir o vampiro por uma noção distorcida de vários deles percorrendo o recinto.
— Ninguém os contou sobre a super velocidade dos vampiros? — ele perguntou, a dois metros do trio — preparados para uma morte bem dolorosa?
Eles nem podiam acreditar naquilo. Já estavam ofegantes, suando de tanto esforço naquele combate. E tudo aquilo para nada? Para Kennedy tirar uma carta na manga no último segundo?
Paul, que parecia mais calmo, se alterou novamente, partindo para cima de Kennedy com o sabre. Mas a tentativa foi inútil, com o vampiro desviando facilmente e fazendo o garoto tropeçar. Em seguida pegou seu sabre e o jogou na lareira.
— JOVEM PAUL! — Victor gritou, reunindo todo o resto de sua coragem para partir contra o vampiro com seu candelabro.
Mas a tentativa deu igualmente errado, com o conde lhe desferindo um soco no estômago, fazendo o cientista cair no chão e se contorcer de dor.
— Eu faço questão de matá-lo primeiro, Archie Becker — Kennedy disse, caminhando até o jovem.
Archie, que já não sabia mais o que fazer, simplesmente ficou de joelhos. O suor ainda pingava em abundância da testa. Notar isso o fez erguer as sobrancelhas.
Na mesma hora, o vampiro o pegou pelo pescoço, o encostando na parede. Kennedy revelou a língua e os dentes afiados.
— Vou drenar todo o seu sangue, até secá-lo. Porém, vou fazer isso lentamente, para você sentir seus órgãos morrendo YU-HI-HA! Uma pena, não é? Não foi páreo para mim, agora todas aquelas criancinhas vão morrer da mesma forma que você.
Dessa forma, ele enfiou a ponta de uma das garras em uma veia no pescoço de Archie, começando a sugar lentamente o sangue. A sensação era horrível, como se a vida estivesse se esvaindo lentamente, por meio de sucção.
O detetive, mesmo sentindo a respiração indo embora, conseguiu dizer:
— Você… já pensou em olhar para trás em algum momento?
Kennedy se virou rapidamente, mas era tarde demais.
A bolha final veio em cheio contra seu peito, abrindo um verdadeiro buraco ali. O vampiro soltou Archie e caiu de joelhos até o chão, confuso pelo que tinha acabado de acontecer. Antes de morrer, olhou para Archie, que estava de pé diante dele agora, como se ansiasse por uma resposta.
Mas Archie nada disse, olhando sem pena o vampiro perder o ar até… fechar os olhos.
A resposta é que o suor do meu corpo, de Paul e Victor foram suficientes para criar uma última bolha. Disse para si mesmo, não exatamente orgulhoso ou extasiado, mas sim aliviado de que haviam vencido.