As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 35
“Emoções reprimidas são como uma bomba relógio, que pode estourar no pior momento possível” – Pulget, o pequeno
Archie fechou os olhos, suspirando. Ele havia sobrevivido e poderia ao menos cumprir a promessa que fez para Midna. Fitou Paul e Victor, que pareciam ter se recomposto.
Victor se aproximou para ver mais de perto o cadáver do vampiro. Tudo isso para dar um forte pisão em seu rosto, o desfigurando levemente.
— TOMA ISSO SEU MALDITO, NUNCA VAI MAIS VAI PODER TOCAR AQUELA COISA QUE CHAMA DE MÚSICA!
Archie sorriu. Tudo parecia estar bem agora.
Olhou para o irmão, que ia até a lareira, onde seu sabre se encontrava em meio às chamas. O garoto levou a mão até o fogo, sem receio algum.
— Espera, Paul…
Mas a tentativa de Archie foi em vão. O garoto pegou o cabo da arma branca e a retirou das chamas, era notável a queimadura que sua mão sofrera, mesmo assim Paul não esboçou a dor que sentia.
Após isso, ele caminhou em linha reta com a cara fechada, rumo a porta do recinto. Archie e Victor pareciam confusos sobre o que fazer. Aquele não era o infanto intelectual ingênuo que o detetive conhecia. Alguma coisa aconteceu com ele enquanto estávamos presos.
— Paul, espera… o que está fazendo? — ele perguntou, um pouco receoso.
— Eu vou seguir sozinho — ele apenas disse, continuando a caminhar.
Quê?! Archie pensou, confuso.
Tentou se aproximar do irmão. Queria entender o que estava acontecendo. Mas no momento que chegou perto o suficiente, o garoto levou o sabre até o pescoço de Archie, o fazendo parar imediatamente.
— Me deixa em paz — ele disse em um tom perigoso.
— Por que está agindo assim? — Agora era Archie quem estava indignado — que foi, descobriu agora que a gente tá em uma missão suicida?
Na mesma hora ele se arrependeu das palavras, lembrando do que Frankenstein havia dito sobre Paul não ter nada a ver com aquilo, além de ser apenas uma criança.
— Não. Na verdade, eu só me toquei agora que você não se importa com ninguém além de si, Archie — sua resposta foi tão seca e direta, que nem parecia ter saído da boca de um garoto de treze anos — nada disso teria acontecido, se você não tivesse insistido em ir ao cemitério se encontrar com estranhos.
— Sério isso? Agora vai todo mundo ficar jogando isso na minha cara?
— É a verdade, mas você não aceita, não é? Não aceita nada que digam contra você. É assim desde que o conheço!
Archie agora estava explodindo de raiva por dentro, principalmente pelo tom incisivo na voz de Paul.
— Por que você sempre fala desse jeito todo rebuscado, hein? Como se um garoto da sua idade pudesse ser um intelectual — ele parou por alguns segundos, sustentando o olhar afiado do irmão — será que eu não sou muito insistente porque alguém me disse, a minha vida toda, que eu deveria ser alguém que não queria? Será que alguém já parou pra pensar nisso?
— Isso não justifica seu egoísmo, Archie — Paul guardou a espada na bainha e se virou — por que não poderia ser um pouco mais ponderado e pensar no que faz antes de querer apenas provar algo para o papai a todo custo?
Aquilo veio como um soco no estômago de Archie. Sua motivação era algo tão íntimo que ele sempre quis guardar aquilo apenas para si, sabendo que desrespeitava apenas a ele. Jamais imaginou que o irmão caçula ou qualquer um pudesse ter notado.
— Quer saber de uma coisa? Papai nunca me deu uma chance, parou de se importar depois que descobriu que eu seria… uma decepção pra ele — o jovem não conseguiu conter os olhos marejaram — aí você apareceu em casa, dando menos motivo ainda pra ele ligar pra minha existência!
Agora fora Paul quem sentiu uma facada no peito com as palavras. Todo o ódio armazenado se intensificou ainda mais. Victor observava a rixa dos irmãos sem se atrever a interromper.
— Então eu sou só um empecilho? Você nunca realmente se importou ou me considerou como parte da família? — a voz do garoto havia vacilado.
— Até parece que você é muito diferente…
— EU ME ARRISQUEI DUAS VEZES SÓ PRA TE SALVAR — Paul explodiu, agora com lágrimas nos olhos e uma expressão realmente triste — não me importava com as diferenças, a gente é uma família, e eu sempre fui grato por ter uma casa e pessoas que me amassem!
Archie caiu em si novamente, vendo a besteira que havia acabado de fazer. Mas, no fundo, sabia que aquela era a verdade, que talvez realmente fosse um egoísta e só fizesse as coisas por si. Eu tô tentando mudar.
Paul não queria mais saber, deixou o local às pressas, decidido. Arrependido, Archie foi atrás dele, não queria que as coisas terminassem daquele jeito. O garoto podia ser durão, mas era muito arriscado ele ir sozinho até a estação de Géneve.
— Me desculpa, Paul, eu não queria… — Archie chegou perto o suficiente, quase colocando a mão em seu ombro, querendo o impedir — eu não te desconsidero, não vai embora…
— FICA LONGE DE MIM!
De forma ágil, o sabre de Paul desferiu um arranhão pelo flanco da mão esquerda de Archie. Ambos se encaram, o mais velho um tanto horrorizado, mais pela atitude do irmão que pelo sangue escorrendo.
As lágrimas nos olhos do mais novo foram a última coisa que Archie notou antes dele ir embora.
Nem conseguia acreditar no que estava acontecendo. Eles haviam derrotado Kennedy, e Paul havia escolhido aquele momento para acertar as diferenças. Quem eu quero enganar? A culpa é minha, sempre foi, de toda a merda que acontece à minha volta.
Victor reconheceu a situação complicada, se lembrando de quando discutiu com seus pais, antes dos mesmos o expulsarem de casa. Naquele momento, era ele a parte racional do trio, então decidiu se aproximar do detetive.
— Eu sei o que está pensando, em como o universo parece conspirar contra a gente às vezes — ele disse, indo até Archie com os balões de fundo redondo na mão e com Igor em seu encalço.
— No meu caso, nem preciso de um empurrãozinho do universo — Archie então se sentou no degrau da escadaria — vai, pode falar o quão babaca eu sou, eu não ligo mais.
— Eu não creio que tenhamos tempo pra isso. Vamos logo encontrar os reféns e ir atrás do Jovem Paul. Não acho que ele vá muito longe sem saber conduzir um expresso.
Archie sabia que ele tinha razão. Paul estava confuso e provavelmente traumatizado. Mas duvidava que ele pudesse perdoá-lo. De qualquer forma, tinha uma promessa a cumprir.
Ele se levantou e ambos caminharam por alguns andares rumo a porta trancada. Todos os monstros pareciam ter evacuado do castelo, o que dava um ar mais mórbido ao ambiente por incrível que parecesse.
Ao chegarem na porta antes guardada, notaram que ela estava entreaberta, de onde uma escuridão emanava. Se aproximaram lentamente, prontos para uma possível virada… mas não foi nada disso.
O interior do local parecia uma dispensa. Um único cômodo bem apertado e abastado de comida, o que era suspeito considerando que o local era supostamente abandonado.
Mas como esperavam, havia pessoas lá. Duas crianças com as idades mais ou menos de Paul, um homem mais velho de meia-idade e por fim um senhor mais idoso, baixinho e bem-vestido, com um grande nariz redondo e um bigode grisalho.
Todos pareciam um tanto assustados, até processarem que Archie e Victor pareciam mais humanos que as criaturas presentes no castelo. A garotinha começou a chorar, abraçando o homem de meia-idade.
— Por favor, não nos machuque — ele disse.
— Ah… não se preocupem, estamos aqui para resgatá-los — Todos fixaram Archie, apreensivos — o vampiro que dominava esse castelo está morto, e os monstros foram embora.
— Sério?! — o senhorzinho bigodudo perguntou, se pondo de pé — então meu castelo finalmente está livre desse cerco?
— Seu castelo? — Victor indagou, confuso — esse castelo não é abandonado?
— Er… — o senhorzinho suspirou — bom, permita-me apresentar, sou Leonard Weber, marquês de Genebra. Tomei posse desse castelo abandonado há alguns anos para fugir da vida burocrática ocasionalmente, mas nunca revelei isso a ninguém. Meus criados mantinham esse lugar nos trilhos, mas todos foram mortos por esses monstros…
O Marquês ficou cabisbaixo abruptamente, como se estivesse encenando uma expressão triste. Victor achou aquilo curioso, já que sempre ouviu muitos relatos do castelo ser possivelmente assombrado.
— Espere, quem são vocês? — o homem de meia-idade perguntou, se colocando de pé também — achei que todos nessa cidade tinham adormecido.
— Tivemos sorte — Archie disse — aliás, meu nome é Archie Becker, esse é Victor Frankenstein.
— Archie Becker? Eu já ouvi esse nome — ao lembrar, o sujeito pareceu constrangido — sim, foi Midna…
Archie desviou os olhos, mas logo lembrou que deveria tranquilizar a família.
— Eu sei o que fiz, beleza? — ele não queria estender aquele assunto — me encontrei com Midna, prometi para ela que os salvaria, para compensar tudo.
O tio de Midna observou o detetive de forma julgadora, mas no fim viu que não era uma pessoa ruim, apesar dos relatos da sobrinha.
— Então os monstros foram embora desse castelo, hem? — o Sr. Weber disse retoricamente, radiante — isso é motivo de comemoração… por que não fazemos um banquete?
Archie e Victor se entreolharam, sabendo que deveriam ir atrás de Paul, em seguida notando o quão famintos estavam, afinal, talvez já fizesse mais de um dia que eles não comiam nada exceto os biscoitos oferecidos por Finn Thompson.
— Vamos comer e levar um pouco para o jovem Paul, ele deve estar morrendo de fome — Victor sugeriu a Archie.
— Certo.
— Oh, que maravilha, vamos, me ajudem a levar algumas dessas comidas para o salão de festas! — o Sr. Weber parecia animado.
Todos então se mobilizaram para levar alguns dos alimentos da despensa — que incluía alguns perus defumados ainda frescos, batatas, marshmallows, salsichas e outras coisas apetitosas — felizmente o salão era a porta há alguns metros da dispensa, o que facilitava o transporte dos alimentos.
Em certo momento, o tio de Midna se achegou a Archie, enquanto Victor ajudava as crianças a levar um grande saco de marshmallows. Ele estava receoso sobre o que ouviria, mas àquele ponto pensou não ser justo reclamar.
— Midna está bem? — Stan perguntou, com um semblante preocupado.
— Ah, sim, ela está escondida na floresta próxima ao cemitério Raimi — Archie explicou — nós topamos com ela… bem, ela queria me matar, mas depois mudou de ideia e confiou em mim para salvá-los.
— Isso é bom — o homem de meia-idade carregava um semblante de desgaste — nossa vida nunca foi muito fácil, imagino que ela tenha lhe contado, mas o que fez com ela, com seus sentimentos… pensei que eu jamais fosse conhecer essa pessoa e ainda a perdoar.
— Então eu estou perdoado? Mesmo sendo um burguês de merda que brincou com os sentimentos da sua sobrinha? — Archie se surpreendeu com a própria capacidade de admitir aquilo.
— Esse é o jeito que Midna enxerga as coisas, não eu, Archie — Stan agora parecia sério — eu tento ver um lado mais positivo da sociedade, não é possível que todos sejam maus, não é? Bem, hoje você me provou que até pessoas que um dia já fizeram burradas, podem se redimir. O “quando” só não está no nosso controle.
Archie corou, constrangido pela complacência do homem. Foi naquele momento lembrado do pai, em como provavelmente seria deserdado quando contasse como tudo aquilo havia começado. Isso se chegassem a derrotar Weezy.
Após enfim arrumar as mesas do grande salão com os alimentos, assar as carnes no forno, e, encontrar o mais importante, a cerveja, todos se empanturram de comida, além de encher seus copos de bebida constantemente — exceto as crianças.
Archie e Victor estavam sentados em uma mesa um pouco mais distante, já satisfeitos de comer, apenas com os copos cheios de cerveja.
— Então essa é a sensação de estar no bar com amigos em um final de semana? — o cientista perguntou.
— Quase isso — Archie disse, parecendo relaxado, a boca cheia de espuma — mas quando tudo isso terminar, posso te mostrar a real experiência.
— Seria interessante — Victor não sabia explicar, mas a felicidade e sensação de pertencimento o enchiam naquele momento — eu nunca pensei que chegaríamos tão longe, parece até anormal, as coisas estarem dando tão certo.
— É melhor levantar esse astral, Frankenstein, em uma mesa de bar o que reina são as apostas e as piores piadas que um homem pode contar.
— Você parece ter vivido demais, Becker — Victor tomou um longo gole de cerveja antes de continuar — eu teria vivido mais se não tivesse passado anos tentando agradar alguém, pra no final levar um chute na bunda.
Archie notou que o cientista parecia estar se abrindo, mas não reclamou. Ele queria saber mais, entender as motivações que o levaram até ali. Já considerava Frankenstein o suficiente para se importar.
— Deixa eu ver se adivinho, tá falando de uma garota?
— Tão óbvio, né? — Victor assumiu um semblante, duro, enquanto bebia ainda mais — o nome dela é Karen, éramos amigos de infância, prometemos um para o outro ficarmos juntos para sempre e ela confiava que eu estaria no topo um dia.
“E bem, eu realmente vivi, motivado a agradá-la. Eu não vou entrar muito em detalhes, mas foi na época em que trabalhava com o projeto científico da minha vida, aquele que passei anos estudando e planejando com meu amigo, Rogi, a respeito da transfusão de sangue animal para regenerar células. Nessa época eu e Karen já estávamos praticamente noivos, e foi nessa época, que apareceu uma pessoa…”.
O rosto de Victor se contraiu pela lembrança, mas decidiu não esconder mais aquela sombra no seu passado.
“Ewan McAllister tinha a minha idade. Ele era todo pintoso, sinceramente, nunca me pareceu tão apaixonado pela ciência. Eu nunca fui com a cara dele, mas apesar disso, ele vinha de uma família de duques importantes, ganhando rapidamente espaço na academia, enquanto eu e Rogi éramos considerados megalomaníacos demais”.
— Tenho quase certeza que já ouvi meu pai citar esse tal McAlister — Archie comentou.
— Evidente. Henry Becker sempre foi muito influente na academia, apesar de nunca ter tido a oportunidade de conversar com ele — Victor tomou o último gole restante do copo — continuando, um dia vi Karen conversando com McAlister, claro que eu não gostei nada daquilo e a gente meio que brigou naquela noite, com ela me dando um baita sermão, que não vem ao caso.
“Muita coisa aconteceu, mas o que interessa é que meu projeto foi recusado na feira da acadêmia, mas eu e Rogi sabíamos que um dia seríamos reconhecidos… mas foi no dia das apresentações que descobri a verdade. Na hora que McAlister foi apresentar seu projeto, ele chamou Rogi e ele subiu no palco. Como seu parceiro, fiquei confuso, mas na hora que ele chamou Karen, eu desabei. Ele usou a merda do palco pra anunciar sua noiva. Eu nem sabia que Karen estava ali, ela tinha viajado uma semana antes”.
Agora Victor parecia abalado, sentindo dor ao lembrar daquele dia, o pior dia de sua vida. Mas ele decidiu continuar, queria que Archie soubesse. Respirou fundo antes de prosseguir:
— Resumo: eu fiz um escândalo, totalmente incrédulo com tudo aquilo e fui expulso do evento. Eu não tinha para onde ir, meus pais já haviam me deserdado por eu escolher casar com Karen e não uma filha de um nobre que eles queriam. Eles só queriam me usar como escada para ter privilégios. Sem esperança nenhuma, eu fui pra debaixo de uma árvore, com uma corda, criando coragem para… enfim, foi nessa hora que o homem de sobretudo apareceu, me dando aquela maldita caderneta e uma segunda chance. Olha onde eu tô agora.
— Está tomando uma boa cerveja com um amigo em um castelo centenário, uma experiência única — Archie disse, irônico.
A história de Victor era muito pesada, mas ele decidiu manter o bom humor e mostrar ao cientista que nem tudo estava perdido.
— Tem razão, mas, ao mesmo tempo, sem nenhuma perspectiva de vida, caso eu sobreviva a tudo isso.
Ele sempre tenta ver o lado ruim da situação.
— Me diga, meu pai estava nesse tal evento nesse dia? Eu seria incapaz de lembrar — Archie perguntou.
— Sim, ele viu tudo, um lunático gritando e chorando no pátio da academia.
— Humm, imagina se ele soubesse que a você foi confiado um conhecimento milenar da família? Duvido que ele não pararia pra te ouvir.
Frankenstein estava genuinamente impressionado. Não esperava aquela atitude de Becker. Mas será mesmo que Henry Becker não sabe nada sobre as misturas? Talvez ele me dê algumas respostas.
— Eu nem sei o que dizer — um meio sorriso estampou seu rosto — eu seria muito estúpido se recusasse. Mas mesmo assim, nem imagino o porquê faria isso por mim.
— É o mínimo que posso fazer, após ter arruinado seu projeto — Archie se sentia menos mal agora — mas convenhamos, mesmo Weezy sendo a atrocidade que é, ainda é um dos feitos científicos mais impressionantes já feitos, falando como um leigo.
— É, causar o apocalipse de fato também não é pra qualquer um — Victor disse em tom irônico.
Ambos riram, sentindo um conforto e calma que fazia um bom tempo que não sentiam desde o início da jornada. Mas ainda tinham um longo caminho pela frente.
— Ei, que som é esse? — ouviram o marquês Weber dizer em voz alta.
Archie e Victor também notaram. Parecia ser uma enorme movimentação fora do castelo.
— Só o que faltava ser mais um dos capangas de Weezy — Victor disse.
— Vamos verificar.
Eles se colocaram de pé, deixando a sala rumo à escadaria, mas quando perceberam, o marquês e a família de Midna já os seguiam. Archie torcia para não ser nenhum monstro.
Caminharam de forma sorrateira até a escadaria do hall do castelo. Não viram ninguém ali dentro, o que indicava que seja lá o que fosse ainda estava lá fora.
Decidiram descer as escadas para olhar melhor o exterior… mas o que viram não foi exatamente agradável.
— Jesus Cristo! — O Sr. Weber exclamou.
Se tratava de um verdadeiro exército de zumbis se aproximando do castelo. Muitos deles estavam montados em cavalos zumbis, o que dava um ar muito ordenado para tudo aquilo.
Isso só podia significar uma coisa:
Midna? Archie pensou.
À medida que a infantaria zumbi ia se aproximando, eles puderam confirmar. Uma figura feminina de pele verde-aspargo, com longos cabelos ruivos, montava um dos cavalos zumbis e vinha na linha de frente.
— Midna! — Jim e Rebecca exclamaram — é ela, papai!
— Sua sobrinha é um zumbi? — o Sr. Weber perguntou, tremendo de medo.
— Não, é ela quem controla os zumbis — Stan explicou, alegre por ver a sobrinha bem.
O Sr. Weber suspirou de alívio.
Enfim, a multidão de zumbis reduziu a velocidade, até parar um pouco distante do castelo. Midna então desceu do cavalo, encarando com curiosidade a grande construção que era o Castelo de Bran. Mas logo seu olhar foi para o interior e os portões abertos, onde viu aquele punhado de pessoas a observando.
Sem perder tempo, a família foi correndo até Midna. Archie, Victor e o Sr. Weber observaram a comoção por um tempo.
— Eu vou pegar os suprimentos — Victor disse, o outro o fitou, parecendo sair de um transe — já estamos de saída, não?
Archie concordou, decidindo caminhar até a garota e sua família. O Sr. Weber preferiu ficar ali, um pouco acanhado, vendo toda a comoção. Mas antes, Archie também decidiu dar uma última palavra ao Sr. Weber:
— Sir Weber, será que poderia lhe pedir um favor?
— Ah, claro, claro, Sr. Becker. Não há nada que meu dinheiro não possa comprar e eu sou muito grato por expurgar todas essas criaturas do meu castelo.
Archie sorriu.
— Quero que ajude essa família de alguma forma, já que tem muito dinheiro, mas nada de cobrar trabalho ou nada deles, quero que lhes dê apenas o suficiente para terem uma vida digna.
O Sr. Weber pareceu pensativo, mas achou que era mais que o suficiente. Afinal, Stan havia contado sua história para ele e o marquês sentiu piedade, pois ele nunca havia tido contato com pessoas de classes mais baixas. Não que fosse de fazer caridade, mas aquela era uma exceção.
— Tudo bem, é totalmente viável, Sr. Becker.
Satisfeito, Archie caminhou para fora do castelo.
Era assombroso ver tantos mortos vivos parados e olhando fixamente para o vazio, mas considerando tudo o que viu de mais bizarro até então, aquilo era fichinha.
Midna parecia genuinamente feliz em encontrar a família, o que fez Archie lembrar da sua própria. Esperava que os pais estivessem bem, apenas dormindo. Fico pensando se o papai estaria preocupado se só eu tivesse aqui.
Mesmo tentando, era difícil se livrar daquele sentimento, ainda mais vendo uma família feliz na sua frente. Paul não tinha ninguém antes do papai encontrá-lo, eu pelo menos tinha mamãe, Mary, outras pessoas…
No meio daquele devaneio deprimente, Midna o notou ali após matar a saudade de sua família. Ambos se encararam de um jeito significativo, mas ela decidiu se aproximar. Ele esperava não ter demonstrado demais sua melancolia.
— Então você realmente cumpriu sua promessa — ela disse quando chegou perto — agora, sim, me surpreendeu.
— Alguma hora eu teria, né? — Archie forçou um sorriso.
— Você parece chateado — ela foi direta, como sempre — aconteceu algo entre você e seu irmão?
Archie ergueu as sobrancelhas. Midna não cansava de surpreendê-lo.
— Você viu ele?
— Sim, agora pouco vi um garoto num cavalo se distanciando do castelo, agora tenho certeza que era ele — ela explicou — o que aconteceu?
— Bem… acho que o decepcionei — Archie repentinamente achou muito interessante a lua coberta pelo eclipse — eu sou ótimo nisso, em decepcionar as pessoas, não é?
Midna se lembrou daqueles dias em que ambos ficavam contemplando as estrelas e se abrindo um para o outro. Ele sempre carregou aquela ingenuidade. No fim ele nunca foi uma pessoa ruim, apenas se escondia dos próprios problemas, mas parecia que aos poucos ele ia abandonando aquela casca interior.
— Sabe, me deixar não foi tão impactante quanto salvar minha família — ela disse — e é disso que eu nunca vou esquecer.
Sem aviso nenhum, ela o abraçou. Archie corou, pego de surpresa. Nunca imaginou que aquela jornada bizarra ia pôr um fim em uma das maiores culpas que sentia.
Victor chegou de mansinho, com um saco cheio de suprimentos nas costas e Igor em seu encalço. Ele aguardou até Archie e Midna se separarem do abraço, para anunciar:
— Está tudo aqui, Becker, incluindo o próximo ingrediente da mistura executora, que é álcool… ei!
Ele não estava preparado para também ser abraçado por Midna. Ficou até sem jeito, já faziam anos que não era abraçado nem tocado por nenhuma mulher, o que o fez se sentir alegre de uma forma boba.
— Aposto que também ajudou nisso tudo — Midna disse, quando o largou.
— De fato, sem Frankenstein não temos chance alguma de derrotar Weezy — Archie comentou, deixando o pobre cientista corado.
— É mesmo? — Midna disse, observando Victor.
— Bem… digamos que sou prevenido — Victor disse com um sorriso nervoso, coçando a cabeça — a propósito, desculpa por bater em você com aquela pá, eu agi por impulso.
— Esquece, nem doeu — ela parecia sugestiva.
Notando o que estava acontecendo ali e sorrindo, Archie decidiu que era melhor eles irem, antes de Victor ter uma parada cardíaca.
Ambos se despediram da família de Midna, com ela dando um último conselho ao detetive.
— Cuide do seu irmão, ele não merece sofrer mais do que já sofreu… me prometa.
— Eu prometo, esse é meu maior objetivo agora. Mais que derrotar Weezy.
***
Paul havia deixado o cavalo solto pouco antes de chegar na estação, já que agora não precisaria mais dele. Caminhava pelo perímetro sentindo um certo desconforto, pois apesar de tudo o que viu na jornada até então, estar sozinho em um local que costuma ser movimentado não era exatamente uma experiência agradável.
As pessoas caídas em sono profundo ajudavam menos ainda, junto da brisa fria movendo os jornais por toda parte. Ele pegou um do chão, lendo a manchete, que falava justamente de Jack Ulysses, o que foi sacrificado pela seita do Inominável. Era muito provável que ninguém nunca soubesse disso, caso aquele caos todo terminasse.
Deixou o jornal no chão e continuou caminhando rumo ao trem, se sentindo péssimo. Tudo que ele queria era estar em casa, e, por mais que culpasse Archie, se eles não tivessem interferido no experimento de Frankenstein, é bem provável que estivessem mortos.
Mesmo se Paul não estivesse lá, seu irmão teria morrido.
Eu não posso me culpar, eu tinha que dizer aquelas coisas para ele. Paul tentou se justificar. Ouvi uma certa vez “que a boca fala do que o coração está cheio”, mas nem de Pulget deve ser essa frase, talvez seja da Bíblia.
Ele não podia enganar a si que estava magoado e impactado com tudo que precisou fazer. Provavelmente nunca esqueceria o momento em que perfurou Dominic…
Paul sacudiu a cabeça, querendo afastar aqueles pensamentos. Ao chegar próximo ao trem, percebeu o plano original, de conduzir o expresso. A quem eu estou querendo enganar? Não dá para avançar sozinho.
Sem muito o que fazer, decidiu adentrar o vagão. Foi até a área do condutor, vendo que não havia ninguém ali. Aquele expresso provavelmente não partiria tão cedo antes do Longo Eclipse.
Ele decidiu se enfiar em uma cabine e ficar ali, afundado em devaneios. Pensou em como seria mais fácil se estivesse dormindo, ao invés de ser um dos que teria de resolver aquele problema.
Mesmo sobrevivendo até aqui, eu tenho medo. Qual seria a resposta para esse paradoxo?
Paul ficou deitado, encostado nas janelas, tentando dormir. Passou alguns segundos assim, até sentir o pé encostar em algo. Verificando, descobriu se tratar de uma folha de papel com algo escrito.
Ele se abaixou e pegou o papel. Apesar da pouca luz, conseguiu ler um trecho:
“… eu só queria ser um escritor, eu realmente me esforcei, mas tudo deu errado, não é? Nem mesmo Christine quis viver no mesmo mundo que eu. Não tem outro jeito, talvez morrer em um vagão traga uma notoriedade para mim e minhas obras…”.
Paul achou aquilo deverás sinistro, mas mais ainda quando se lembrou do embarque para Genebra, do vagão interditado, onde ouviu que alguém supostamente havia se suicidado ali.
Então eu estou naquele mesmo expresso?
— Confortável, meu jovem?
Paul deu um sobressalto ao testemunhar algo realmente assustador, que ele não esperava: um homem adulto, bem-vestido, levemente translúcido estava sentado à sua frente, com um olhar vago.
— Parece que pegou o trem errado, não?