As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 36
“São por acaso os fantasmas do passado nossos maiores bloqueios? As paranoias e enganações da mente traiçoeira? Fique estabelecida a indagação” – Pulget, o pequeno
As ruas do centro de Genebra seguiam ainda mais lotadas de pessoas caídas, o que era uma visão impressionante e daria uma bela pintura mórbida.
Archie e Victor cavalgaram por quase uma hora até enfim encontrar o centro urbano. Agora seguiam sem muita pressa, observando o local devastado pelo sono repentino.
O quanto isso deve ter afetado o mundo inteiro? Victor se perguntou, esperando que aquele apocalipse silencioso não tenha matado muitas pessoas.
— Miau — Igor disse, no ombro do dono, parecendo melancólico.
— Se passarmos por essa, amigo, talvez tenhamos uma vida boa.
Archie parecia mais sério que de costume, ao perceber que parte de sua personalidade vinha do sentimento de abandono que reprimia desde a infância. Por mais que ele soubesse que não estava sozinho, não sabia explicar o quanto seu pai fazia falta entre as pessoas que o amavam.
No momento, seu maior objetivo era garantir a segurança de Paul, que não merecia os riscos daquela jornada. Mas deixando a mente voar, se lembrou que ainda tinham um objetivo maior e que poderia fazer tudo aquilo ter um fim definitivo.
— O que falta para a mistura executora? — ele perguntou ao cientista.
— Oh, não precisa mais se preocupar, já temos todos os ingredientes — Victor disse, um pouco animado — o último ingrediente era álcool, então fiz questão de trazer uma garrafa de vinho.
— Muito esperto, não vamos precisar de todo o vinho para a mistura — Archie assumiu um tom divertido.
— Exatamente.
Eles seguiram cavalgando pelas ruas, tomando cuidado para não pisar em ninguém ali caído. Após alguns minutos, cruzaram o Hotel Overlook e enfim avistaram a estação.
Se aproximando, decidiram descer dos cavalos, já que não iriam precisar mais deles. Além disso, a estação estava lotada de pessoas caídas no chão, logo era melhor avançar a pé.
O silêncio envolvia todo o canto possível da cidade, com apenas os roncos de alguns dos caídos servindo como ruídos no ambiente. Eles entraram na grande estação de Genéve, até que:
— Esperem, esperem meus caros senhorios.
A voz cortês e fanha não os assustou, pois olhando para cima, viram que se tratava de Gaibora Karpa, o pombo-correio falante outrora enviado por Mary. Ele pousou no banco próximo da dupla. Perceberam que ele não trazia uma carta na pata como da última vez.
— Ah… será que podem me garantir integridade física contra esse gatuno ambulante? — perguntou, indicando um faminto Igor, que fitava com deleite o pássaro.
— Igor não vai fazer nada, não se preocupe — Victor disse, olhando para o mascote.
— Mary mandou algum recado? — Archie quis saber.
— Certamente, senhor — a ave coçou a cabeça com a asa — na realidade, ela me pediu para vir e os convencer de forma incisiva a serem sinceros.
— Como assim?
— Ela achou suspeito estarem viajando com outro indivíduo e ainda estar em um cemitério.
— Uma cena suspeita, realmente — Victor comentou.
— Espera aí, então contou isso pra ela?! — Archie perguntou, indignado — eu não lembro de ter dito para contar isso, apenas para dizer que estávamos bem.
— E realmente disse, senhor, apenas acrescentei a situação em que se encontravam.
Archie colocou a mão no rosto, balançando a cabeça negativamente. Sabia que não poderia fugir da teimosia de Mary em querer saber o que estava acontecendo.
— Certo, mas não vou contar exatamente tudo, é muita coisa — decidiu — diga para ela que presenciamos o nascimento de Weezy e que o homem que está conosco está nos ajudando em uma forma de derrotá-lo.
— Hamm, meio confuso, senhor, mas passarei o recado, não se preocupe — antes de decolar, Gaibora Karpa notou que faltava um deles ali, o baixinho — noto que falta um pequeno indivíduo em sua trupe.
— Ah, o Paul, bem… — Mary vai ficar maluca se souber que ele fugiu, melhor esconder isso — ele foi à frente verificar um negócio, diga a Mary que nós estamos bem… PROMETA QUE NÃO VAI DIZER NADA, ALÉM DISSO!
— Prometo, senhor, mas por favor tenha calma — a ave então levantou voo, sumindo dali rapidamente — esses humanos são mesmo ignorantes, mas só até eu instaurar a ditadura dos “Proletaripássaros”.
Archie e Victor o observaram, pensativos. Mas logo continuaram a caminhar.
— Quanto tempo deve ter se passado? — Archie indagou, sentindo um pouco de sono.
— Creio eu que quase um dia — Victor deduziu — não acho que essa “aventura” tenha demorado tanto. Mas não se esqueça que o pior vem agora.
— Já temos os ingredientes para fazer a mistura executora, acha mesmo que vamos ter um desafio maior?
— O desafio é encontrar um jeito de ficar cara a cara com Weezy.
Frankenstein tinha razão. Archie sequer pensou nessa questão. Imaginou quantos vassalos de Weezy ainda mais poderosos residiam na caótica Londres daquela noite longa. Melhor pensar nisso depois, pelo bem da minha sanidade.
Quando enfim estavam diante do expresso, Victor observou o modelo e a rota em uma placa próxima.
— Esse aqui veio de Calais, na França — explicou ao detetive — como previsto, vai ser uma longa viagem, já que teremos de encontrar uma rota o mais próximo do Estreito de Dover, para pegar um navio e zarpar para o Reino Unido.
— Isso vai demorar bem mais que três dias — Archie não parecia muito otimista.
— Sim, mas temos outra escolha? Só precisamos torcer para que esses três dias de purificação sejam uma farsa, e a probabilidade é alta.
Sem mais enrolação, adentraram o vagão aberto. Archie nunca concebeu o quão sinistro poderia ser um trem vazio à noite.
Avançando em silêncio, eles atravessaram um vagão inteiro, rumando para o do maquinista. O detetive esperava que Paul estivesse ali, não fazia sentido ele ter ido para outro lugar.
Mas enquanto Victor caminhava, ele se deparou com uma cabine onde havia uma placa destacando “Interditado”. Algo lhe chamou atenção, até ele lembrar da viagem até Genebra, onde viu aquela mesma cabine e o motivo de estar interditada.
Um assassinato? Um suicídio? Não lembro exatamente. Tentou resgatar os detalhes. Bem, não importa, não é como se fôssemos encontrar um fantasma ou coisa do tipo aprisionado aqui como um encosto.
— Está perdido, jovem? — uma voz rouca e suave disse às suas costas.
— Mas o que… — Quando Archie se virou, não pôde conter o próprio pânico, ao notar um homem adulto, bem-vestido e translúcido, exatamente como um fantasma — MAS QUE MERDA É VOCÊ?!
Ele recuou quase caindo no processo. Já tinham visto de tudo naquela jornada, mas não estava preparado para algo sobrenatural daquela forma. Duvidava até mesmo se aquilo era obra de Weezy. Ele poderia reviver alguém assim?
— O que está fazendo, Becker… MEU DEUS É UM FANTASMA!
Sem nenhuma sutileza, Victor e Igor saíram correndo para longe dali, atravessando os vagões. Archie o amaldiçoou. Ele nem sequer tinha uma mistura, além disso, aquele fantasma poderia ser imune a ataques diretos.
— Que falta de senso, invadir minha cabine e ainda me tratar como “merda” — o fantasma não parecia feliz — mesmo assim, irei me apresentar, meu nome é Erik Anderson, muito prazer… Becker é o seu nome? Já ouvi falar de sua família.
Devagar, Archie se levantou. Ele não ousou se aproximar muito, pois não conhecia habilidades daquele ser. Mas a forma que o tratava e se vestia, parecia realmente um fantasma de um ser humano. E como estava em desvantagem, preferia não ser muito agressivo.
— Er… prazer — não era exatamente uma visão apavorante, apenas desconfortável demais — você é o homem que morreu nesta cabine? Com todo respeito, claro.
— Sim, sou eu — ele se virou, com as mãos nas costas, em um semblante melancólico — sabe, eu era um escritor, com sonho de um dia me tornar tão relevante quanto Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski ou mesmo Machado de Assis, que tive o prazer de conhecer quando fui ao Brasil. No entanto, tudo deu errado, ninguém aceitava meus manuscritos e quando consegui uma publicação, ela fracassou miseravelmente.
— É uma pena, realmente — Archie tentou ser empático — aposto que eram bons manuscritos.
— Sem dúvida, em especial, uma história de amor trágica. Nela era narrado como um homem chamado Erik sequestrou uma mulher chamada Christine para convencê-la a se casar com ele. Mas obviamente ela hesita, até que depois de tanto tempo, acaba sofrendo da “Síndrome de Estocolmo”, ou seja, se apaixonando por Erik. Infelizmente ela acabou pegando uma doença por ficar tanto tempo no porão que Erik a aprisionou… infelizmente ela morre e deixa uma profunda amargura no coração de Erik.
— É, realmente, trágico — Archie não sabia o que comentar, exceto um detalhe peculiar o qual notou — Erik é seu nome, não? Nomeou o protagonista com seu nome?
— SIM! — o grito pegou o jovem desprevenido, que quase caiu no chão novamente — A HISTÓRIA É REAL, SE QUER SABER… Mas acho que por deixar o meu nome, o associaram a mim, e por isso o manuscrito não foi aceito, eu acho.
— Por que não simplesmente mudou o nome do personagem? — Archie disse no alto de sua audácia, com um sorriso.
— CALE A BOCA, BECKER, EU VOU TE MATAR! — Um sorriso malicioso estampou o rosto do fantasma — foi o que Lorde Weezy me pediu para fazer. Eu simplesmente acordei e o vi na minha frente dentro desse trem. Ele me pediu para proteger essa estação, então no fim do Longo Eclipse, eu serei um escritor aclamado por seres puros, ou seja, O MAIOR ESCRITOR DO MUNDO.
Então Weezy encontrou ele? É o que faz mais sentido, óbvio que ele não purificou o trem nem nada do tipo.
— Foi incrível, logo após ele purificar este trem, eu tomei seu controle — Erik deu um sorriso psicopata, o que combinava com a história que ele havia contado — um invasor já apareceu aqui, mas ele conseguiu se esconder bem quando tentei dar conta dele, mas antes ele me contou que mais dois estavam vindo, então eu resolvi esperar para matar os três de um jeito mais cruel.
Então Paul realmente está aqui, graças a Deus.
— Tá legal, fantasma psicopata, é melhor sair do nosso caminho. Já derrotamos todos os vassalos de Weezy nessa cidade, não é você quem vai nos impedir — Archie decidiu aderir ao cinismo — precisamos desse trem para ir até o seu chefe, então é melhor não atrapalhar.
— Oh, então você quer viajar?
De repente, um tremor tomou conta do transporte. Archie caiu de novo. Ele não conseguia distinguir o que estava acontecendo, isso até olhar a janela e perceber que o trem subia, como se estivesse…
Voando? Quê?!
— Está impressionado, não é? — o fantasma se gabou — eu disse que Weezy havia purificado esse trem e eu possuía controle total dele. Dito isso, é melhor eu matar todos vocês logo!
Sim, o trem estava voando, e em uma velocidade impressionante. As surpresas de eventos bizarros pareciam não ter fim. Um trem nem sequer é algo vivo e ele conseguiu purificá-lo?
Mas antes que pudesse questionar mais, o fantasma foi em sua direção. Archie estava tão atordoado por todos aqueles eventos absurdos repentinos que não conseguiu impedir o oponente de agarrá-lo pela gola das vestes. Sua força era desproporcional ao seu tamanho.
Como assim? Ele é um fantasma e pode me carregar com essa força?
Archie tentou tocar o fantasma, mas como esperado sua mão atravessou o corpo, com apenas uma sensação gélida preenchendo o homem translúcido. Ele não conseguia entender aquela lógica. Por que um fantasma podia lhe levantar com tamanha força e ele nem sequer podia tocá-lo? Aquilo era injusto demais em sua opinião.
Como sua opinião parecia não importar, Erik sorriu e arremessou o jovem pela janela mais próxima. Sentindo o sangue gelar ao quebrar o vidro, Archie conseguiu se segurar antes de despencar de uma altura de quase mil metros. Infelizmente seu chapéu não teve muita sorte, voando para longe da vertigem que era aquele trem.
— Tenha uma boa viagem, jovem — Erik saiu andando — só preciso encontrar aqueles dois…
Merda, estávamos tão perto. Eu não vou conseguir segurar por muito tempo!
Archie sentiu a angústia de estar à beira da morte pela enésima vez naquela jornada. Mas a menos que um milagre ou conveniência o ajudasse, ele conheceria a Deus em alguns segundos. Me perdoa, Deus, eu sei que já disse algumas vezes isso hoje, mas é bom reforçar.
— ARCHIE, SEGURA — ele ouviu uma voz familiar vindo de cima — RÁPIDO!
Olhando para o teto do trem, viu seu irmão. Paul estendia a mão para o detetive. Notou que ele parecia um pouco mais ferido e exausto, mas mesmo assim não viu ressentimento em seu rosto.
Envergonhado, Archie segurou em sua mão e, com toda a força que tinha, o mais novo o puxou. Logo ambos estavam no teto do vagão, segurando em suportes para não despencar.
O detetive notou uma portinhola no teto, aberta, do vagão de onde Paul provavelmente veio.
Ambos ficaram por um tempo em silêncio, ofegantes. A velocidade do trem diminuiu um pouco. O perigo havia cessado por ora.
— Desculpa — Paul disse, com um semblante triste, olhando para o irmão, que decidiu sustentar um olhar compreensivo — eu não devia ter fugido assim, foi irresponsabilidade e falta de maturidade da minha parte.
— Não, Paul, a culpa foi minha — Archie admitiu, sentindo que era necessário falar, por mais que aquilo ferisse seu ego — você não merecia passar por tudo isso, e eu ainda fui um péssimo irmão… me desculpe por não te considerar de verdade, eu tinha apenas ciumes de você e o papai serem tão próximos e ele mal ligar pra mim, eu deixei esse sentimento me consumir todo esse tempo… essa é a verdade, e acho que te devo ela.
Por que dói tanto dizer isso? Archie pensou, sentindo as lágrimas caírem.
A expressão de Paul foi inicialmente de surpresa, mas logo ele deu um sorriso vacilante, também começando a chorar. Ele sabia que o irmão estava sendo sincero e isso era o que importava.
Com a atmosfera leve do trem vagando lentamente, o irmão mais novo se levantou e abraçou o mais velho. A cena diante da lua coberta pelo eclipse era poética: um trem voando e dois irmãos se reconciliando, duas coisas que pareciam improváveis até aquele momento.
— Vamos sair dessa, eu prometo, Paul — Archie disse, com determinação — e eu nunca mais vou te chamar de adotado, a gente é uma família.
— A gente é! — Paul reforçou, mal se contendo.
Quando se separaram, tudo parecia mais leve. Archie sabia que precisava daquilo. Por mais que nada fosse mudar em relação a seu pai, e por mais que isso ainda o deixasse chateado, Paul não tinha nada a ver com aquilo. Ele merecia seu apoio e amor. Eu é que não mereço, e mesmo assim ele me salvou três vezes.
— Onde está o Dr. Frankenstein? — Paul perguntou, se sentindo melhor.
— Verdade, o fantasma deve ter ido atrás dele — Archie foi tomado pelo senso de urgência — parece que vamos ter que chutar a bunda dele de alguma forma, mas como?
Paul se lembrou de algo, vasculhou as vestes e retirou um saco com um punhado de um conteúdo duvidoso. Uma espécie de pó preto.
— Talvez uma mistura nos ajude — ele disse. Archie o fitou confuso — é pólvora, encontrei muita dentro de uma cabine, acho que estavam exportando de forma ilegal, já li sobre isso em algum lugar.
— Genial, Paul! Isso deve servir — o irmão entregou a pólvora para Archie — mas ainda precisamos de outro ingrediente.
— Vamos procurar pelo trem, tem que haver alguma coisa.
De acordo, ambos foram até a portinhola no teto que Paul usou para chegar ali. Com alívio, estavam de volta ao interior do trem. O fantasma não parecia estar por perto, o que significava que devia ter ido para onde Frankenstein e Igor fugiram.
Os irmãos decidiram ir naquela direção, vasculhando as cabines, em busca de algo que pudesse servir com a pólvora. Não queriam perder muito tempo, o que fez a busca ser superficial, mas não pensaram que seria tão difícil a tarefa de encontrar mais um ingrediente.
Logo estavam de volta na cabine de Anderson. Vasculhando por lá, descobriu uma espécie de pote de metal hermeticamente fechado. Com algum esforço, Archie conseguiu abri-lo, notando que ali havia algo semelhante a cinzas de cigarro. Deve ser um cinzeiro, esse desgraçado deve ter fumado um monte enquanto vivo.
— Será que isso vai servir? — Paul perguntou quando viu o que Archie segurava — Precisamos de algo eficiente contra fantasmas. Quais são as chances de conseguirmos isso?
— Eu não sei — Archie sorriu — mas todas as misturas que improvisei até agora deram certo. E não temos muita opção mesmo.
Paul deu de ombros, não era muito fã daquele modus operandi, mas no momento era o que tinha.
Archie então pegou os dois ingredientes e fez o procedimento padrão. Moveu os ingredientes entre os dois balões até um elixir se formar, mas, sem dúvida, aquele era o menos convidativo. Sua cor era de um cinza mortífero e seu cheiro remetia ao cloro.
Para piorar, um gás que subia do elixir fez os olhos do detetive arderem.
— Tem certeza que vai tomar isso? — Paul disse, receoso.
— Eu acho que já tomei coisas piores essa noite.
Sem enrolação, virou todo o elixir em um só gole. Mas diferente das outras vezes, que até foram sofridas, mas dava para aguentar, aquela teve efeitos colaterais piores. Archie começou a tossir muito, com fumaça saindo da sua boca e sua garganta fechando.
Paul entrou em desespero, vendo o rosto do irmão ficar vermelho. Ele deu tapas na costa para ver se o conteúdo que ele havia ingerido saísse.
E ali, Archie ficou inconsciente, aparentemente morto. Paul entrou em desespero.
— NÃO, ARCHIE, ISSO NÃO PODE ESTAR ACONTECENDO! ESTAMOS QUASE NO FIM DISSO TUDO — o mais novo bradou, dessa vez ficando enraivecido — ESSE FANTASMA MALDITO VAI PAGAR! Aguenta firme, Archie.
E dizendo isso, Paul deixou aquele vagão.
***
Victor estava a um vagão da área de condução. Com muita sorte, conseguiu entrar em um bagageiro grande em uma das cabines. Ele não sabia, mas tinha uma leve impressão de que o trem não estava na terra, como se estivesse voando, o que não fazia sentido. Será que entramos em uma espécie de mundo espiritual? Não, espiritual não, talvez em outra dimensão.
De todas as coisas que viram durante aquela jornada, fantasmas era a última que esperava, pelo simples fato de considerar impossível as misturas ou Weezy conseguirem interferir em algo do tipo. Para Frankenstein, a morte era o fim de tudo, mas aquele ser fantasmagórico era um choque direto contra sua crença. Mas será que é mesmo um fantasma, ou apenas algo parecido de outra dimensão?
— Apareça, humano, sei que está escondido em algum lugar — uma voz soprou de forma arrepiante pelo ambiente silencioso — eu sou um fantasma, uma alma que já não pertence ao seu plano, posso atravessar qualquer coisa nesse trem, incluindo onde você está.
Merda, então ele é realmente um fantasma… espero que esteja blefando.
— MIAU!
Igor! Droga, por que esse gato não só se escondeu?
Erik ouviu o miado furioso do felino, olhando para ele com surpresa e diversão.
— Oh, há um gato aqui, e ainda preto, isso é ótimo para o mau agouro — disse, mal ligando para a posição de ataque de Igor — o chefe não disse nada sobre lidar com gatos, afinal, que ameaça você poderia me oferecer?
Victor engoliu em seco ao sentir uma presença se aproximando, algo gelado e sútil se arrastando.
Não, não… por favor… será que o jovem Paul poderia aparecer de repente só mais uma vez?
— Olá, senhor — Victor apenas sentiu aquele frio arrepiante o envolver — podemos começar?
Desesperado, ele tentou abrir o bagageiro, mas ele simplesmente se recusou, como em uma história de terror onde as coisas davam milagrosamente errado na pior hora possível. Mas ruim mesmo foi quando pés invisíveis chutaram bem onde seu traseiro estava, naquele momento o bagageiro cedeu e o cientista caiu para fora da cabine. Isso dói!
Ele mal conseguiu ficar em pé e o fantasma já estava diante dele, com um sorriso triunfante. Mas o que mais o deixou atordoado foi o fato do trem estar realmente voando. Só pode ser brincadeira, então os poderes do Weezy chegam a este nível?
— Preparado para morrer como seus amigos?
— CALMA AÍ! — Victor implorou, recuando lentamente — EU FAÇO QUALQUER COISA, NÃO ME MATE!
— Eu vou me tornar o maior escritor do mundo, mas para isso preciso de alguns sacrifícios, foi o que o Weezy me pediu para fazer. É como uma troca, entende?
Frankenstein engoliu em seco, sabendo que já não havia mais jeito. Um fantasma era demais para eles. Espero que não fique aprisionado nesse trem como um fantasma, pelo menos um lugar melhor, por favor.
Mas quando Anderson estava chegando perto, a porta da cabine foi escancarada com força, seguida de uma voz furiosa:
— VOCÊ VAI PAGAR, POR ARCHIE!
Jovem Paul?! O cientista ficou surpreso. O que ele quis dizer? Becker morreu?!
— Hem? Quer dizer que não fugiu, garoto? — o fantasma se virou para Paul — Sim, eu matei o outro, infelizmente não podia poupar tantos, mas uma criança como você não seria uma ameaça grande… mas como não aproveitou a oportunidade para fugir, não há jeito.
— VOCÊ VAI MORRER, MESMO SENDO UM FANTASMA!
O garoto avançou contra o fantasma, de forma inconsequente. Mas ao atravessá-lo, parou lá dentro e começou a fazer um movimento giratório com a espada. Ele deve ser feito de um gás, já que se trata de um ser criado pelas misturas, ele não deve ser realmente um fantasma como nas histórias.
Paul estava parcialmente certo. A parte superior de Anderson se dissipou como um gás, espalhando-se pelo vagão. Mas na tentativa desesperada, ele não percebeu que as pernas do fantasma ainda estavam ali, com ele apenas sentindo um chute e acertá-lo antes que pudesse reagir.
Ele caiu ao lado de Frankenstein, com dor, já que o chute o acertou bem na lombar. Ficou tempo suficiente imobilizado até o fantasma retornar a sua forma original, furioso.
— O QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO, CRIANÇA MALDITA? — Ele foi até Paul e o ergueu pela gola das vestes — Achou mesmo que me dissipar pelo ar ia funcionar? Eu e esse trem somos um só, não tem como me tirar daqui, e se isso acontecesse, ele ia despencar e matar todos vocês, então me agradeçam por uma morte menos pior.
Paul não sentiu medo, mesmo com o olhar medonho de triunfo do ser fantasmagórico. Àquele ponto, já tinha passado por tanta coisa que não tinha mais tanto medo de morrer.
Então apenas sorriu, um sorriso ainda mais malicioso que o de Anderson, no intuito de provocá-lo.
— Por que está sorrindo, seu imbecil? Logo vai morrer como seu irmão.
— Foi só um devaneio que tive.
— CONTE AGORA MESMO! — Anderson odiava quando zombavam da sua cara e não contavam o motivo.
— Você disse que vai viver para sempre dentro do trem, então não vai poder sair mesmo depois de ficar famoso? Isso me parece um pouco depressivo, não poder sair de um lugar, tipo uma prisão, é como Pulget uma vez disse, “a verdadeira prisão dos homens é seu interior…
— CALE A BOCA, SEU IDIOTA — Anderson havia ficado realmente irritado — É POR ISSO QUE EU POSSO LEVAR O TREM PRA ONDE EU QUISER.
Mas após isso, houve um silêncio onde ele aparentemente estava refletindo sobre aquela situação. Paul havia conseguido lhe afetar.
— Não fique tão animado, você ainda vai morrer, E VAI SER AGORA!
BOOM!
A porta foi novamente escancarada.
De saco cheio, o fantasma novamente se virou, testemunhando com uma surpresa ainda maior Archie Becker inteiro na sua frente. Como diabos esse maldito conseguiu sobreviver?!
— Vê se fica longe do meu irmão e do meu amigo, Gasparzinho — Archie disse, com um sorriso confiante.
— Archie! — Paul exclamou, pois se o irmão não estava morto, a mistura deveria ter dado certo.
— Archie Becker, parece que conseguiu sobreviver ao impossível — Anderson agora parecia mais sério — como vejo, realmente são resistentes, não é à toa que sobreviveram ao resto da corja do Weezy. Mas não irei mais os subestimar, irei acabar com todos vocês sem pena.
— Bom discurso, mas você não vai ter chance — Archie manifestou uma espécie de fumaça cinza das mãos — mas eu preciso te agradecer, se não fosse o seu cinzeiro eu teria demorado mais para fazer uma mistura.
— Meu cinzeiro? — o fantasma parecia confuso.
— Sim, o pote com cinzas de cigarro que estava na sua cabine.
De forma repentina a expressão do fantasma se alterou, com seus olhos se arregalando. Em seguida, seus dentes cerraram, alterando sua expressão para uma raiva absoluta.
Sem dizer mais nada, avançou contra Archie, desferindo um soco tão forte que o detetive foi arremessado para dois vagões atrás.
Archie sentiu dor, mas talvez a mistura tenha lhe dado um pouco mais de resistência. Merda, eu não esperava essa.
Quando se levantou, viu o fantasma sério, com os olhos desejando vingança.
— Olha, eu nunca vi alguém tão furioso por cinzas de cigarro — Archie disse, se levantando e decidindo não fraquejar em um possível ataque surpresa.
— Não diga coisas que não sabe, desgraçado — ele foi até sua cabine que estava ali perto, consultando o pote vazio — eram as cinzas de minha amada Christine, a última coisa que me restou dela.
— A mulher que você sequestrou? — Archie agora estava indignado — e nem sequer deu as cinzas à família? Se não tivesse sequestrado ela, ela não teria adoecido, não é?
— CALE A BOCA, VOCÊ NÃO SABE DE NADA — Anderson se voltou novamente furioso contra o detetive — nós nos amávamos, eu tenho certeza que ela ia querer isso.
— Então nem chegou a perguntar a ela?
— Você já está me deixando com raiva, maldito! — ele começou a caminhar até Archie, arregaçando as mangas das vestes — hora de morrer. Irei vingar a última memória de minha amada!
Archie manifestou a fumaça, ainda não sabendo o efeito exato da mistura. Então eram cinzas humanas? Talvez isso ajude, apesar de eu já estar arrependido de ter usado, mas a culpa é desse desgraçado mesmo.
Assim que o fantasma chegou até ele com um soco pronto, Archie desviou e colocou a fumaça que saía de suas mãos bem no interior do fantasma.
O efeito foi conveniente, dentro do possível.
Anderson, que antes flutuava levemente no ar, agora caiu no chão e sua pele e vestes iam ganhando uma cor mais nítida, assim como seu aspecto que parecia mais sólido.
Mas o quê?! Anderson perguntou, olhando para as próprias mãos. Que poderes são esses?
Ele ficou tão incrédulo que nem mesmo conseguiu se mexer, estando acostumado à liberdade de flutuar. No mesmo momento, Archie lhe desferiu um soco em cheio no seu rosto.
— MALDITO, O QUE VOCÊ FEZ! — Anderson reclamou — EU NÃO ESTOU MAIS ACOSTUMADO A SENTIR DOR…
Mas assim que ele se virou, viu o trio e o gato o encarando de forma intimidadora, com a lâmina afiada de Paul apontando para ele. A batalha havia sido decidida.
Então acaba assim?! Anderson pensou.
— Vocês já se perguntaram o que aconteceria se um fantasma fosse morto? — Archie perguntou.
— Seria um experimento interessante — Victor disse esfregando as mãos.
— As implicações filosóficas são inúmeras — Paul entrou na onda.
— ESPEREM, ESPEREM, NÃO ME MATEM! — agora Anderson parecia um completo covarde, se ajoelhando diante deles — EU FAÇO QUALQUER COISA!
— Ainda pode controlar o trem? — Archie perguntou.
Ele estendeu a mão, uma indicação que eles não fizessem nada. Se colocou de pé e começou a sentir o controle do trem.
— Consigo.
— Ótimo, vai nos levar até o seu chefe, em Londres — Archie sorriu — não somos assassinos, jamais mataríamos um escritor falido.
— TAMBÉM NÃO PRECISA HUMILHAR — Anderson se exaltou — se eu morrer todos vocês vão também, já que esse trem vai cair.
— Eu acho que o nosso destino não seria tão ruim quanto o seu, que já morreu uma vez — Paul disse de forma inocente.
Anderson engoliu em seco, decidindo que era melhor obedecê-los. Eles podem ter me vencido, mas jamais vencerão o Weezy, talvez seja melhor levá-los para a morte certa. Eu vou ter minha vingança pelas suas cinzas, Christine!