As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 37
“Após uma longa aventura, nada melhor que voltar ao lar. Uma sensação que eu rogaria em ter, já que em meu lar original foi-lhe ateado fogo” – Pulget, o pequeno
A fila para a purificação parecia interminável. Já fazia horas que Weezy realizava o procedimento monótono de tocar aquelas pessoas, enquanto Damon levantava preces, testificando os purificados em nome do seu deus.
Para amenizar o tédio, Weezy pediu que seu servo gárgula procurasse algo para lhe tranquilizar. Logo ele voltou com uma caixa cheia de charutos, que o gárgula disse pertencer a ele quando era duque. Desde então, Weezy não era visto sem um charuto na boca.
— Dá para acelerar mais as preces? — o tirano perguntou, um tanto impaciente.
— Não possuo suas capacidades divinas para ser mais perfeito, meu Senhor — Damon disse, com uma reverência, liberando mais um purificado lobisomem — mas essa tarefa é grandiosa, digna de um Deus, onde jaz o verdadeiro propósito.
— Não me parece — Weezy soltou, já cansado daquilo — eu sou um Deus, eu deveria fazer o quiser. Honestamente, só cedi a essa tarefa porque não quero rebeldes contra mim, pois Miss Robinson disse que eu deveria ser temido e amado, que só um Deus podia ser assim. Mas não pretendo fazer isso para sempre e ninguém pode me ordenar a nada.
Isso não estava nas escrituras, eu tenho certeza, já as li muitas vezes. Damon pensou, cada vez com mais dúvidas sobre o mestre. Será que interpretei errado? Ou seria um desafio do Inominável para eu reforçar minha fé? Não, um deus jamais fugiria dos seus propósitos. Mas o Longo Eclipse chegou, não tem como não ser o que a profecia dizia.
Mesmo com tantas dúvidas, ele ainda tentava não deixar aqueles devaneios martelarem a sua mente. Afinal, o Weezy ainda estava cumprindo seu propósito, mesmo com aqueles comportamentos inesperados. Mas essa obsessão pela garota é certamente uma distorção, talvez eu devesse fazer ela sumir. Seria em nome de Deus.
— Uma ideia que li tem me permeado a mente, sacerdote — Weezy disse, enquanto purificava mais um que se transformou em duende — o casamento, a ideia me chamou a atenção.
— De que forma, senhor? — Damon perguntou, temendo a resposta.
— Eu quero experimentar de tal privilégio, o que acha disso? Também irá dizer que não posso?
A pergunta foi feita em um tom desafiador. Agora Damon estava realmente horrorizado. Mas ele não respondeu, com Weezy em seguida rindo alto e tragando mais uma vez. Certo, a garota precisa sumir, de algum jeito.
— Gárgula — o tirano chamou o servo baixinho que estava ali anotando o nome das pessoas purificadas.
— Sim, meu senhor? — ele disse, tímido como sempre.
— Chame Miss Robinson, diga que seu Senhor a convoca para fazer uma pergunta importante.
— Claro, meu senhor — O gárgula deixou a sala real saltitando.
Ele irá realmente fazer isso. O harém e o matrimônio são práticas das falsas religiões, não consigo lembrar do Grimório dizer que era válido reivindicá-las, ainda mais o próprio Weezy, que não se renderia às práticas carnais. Damon sentia a cabeça girando, nunca teve conflitos tão grandes em sua mente quanto naquele momento.
Logo o servo retornou, com a garota em seu encalço. Weezy sorriu, pois era sempre um deleite para seus olhos ver Mary. Antes ele não sabia dizer o que sentia por ela, mas após ler um livro detalhado sobre o casamento e seus pormenores, descobriu.
Ela, como de costume, fez uma reverência antes de se dirigir a ele:
— Como posso ajudar, senhor? — Será que esse monstro não pode me deixar um minuto em paz? — Algum problema com a planta do castelo?
— Não é nada disso, Miss Robinson, sua planta está formidável — Weezy jogou o enésimo charuto em uma pilha ao lado do trono e dos livros — queria propor algo, um privilégio que poucos poderiam ter.
Mary sentiu um receio. Ouvir aquilo de Weezy não soava como algo bom. Aguenta, Mary, só mais um pouco, você vai conseguir sair dessa.
— Agora fiquei curiosa, senhor — ela forçou um sorriso.
Weezy o retribuiu. Seus olhos vermelhos como sempre viajando pelo corpo da garota, o que a deixava desconfortável.
— Quero que se case comigo — ele acendeu outro charuto, em seguida testemunhando a expressão boquiaberta e as sobrancelhas erguidas de Mary — o que foi? Parece deveras impressionada. Mas eu entendo, é um privilégio e tanto para alguém digerir.
De fato, ela não havia conseguido digerir aquilo. Queria cerrar os dentes, derramar lágrimas, gritar. A pura cogitação em se casar forçadamente, ainda mais com alguém como Weezy. Eu preciso fugir daqui hoje!
— Estou… feliz por isso, meu senhor — foi a mentira mais difícil que ela contou na vida, mesmo assim, ela conseguiu manter a máscara, pelo menos o suficiente para Weezy não questionar — mas primeiro, eu preciso encontrar um vestido de noiva, há um muito lindo no quarto de uma nobre dama, o senhor me permite pegá-lo?
Damon olhou de relance para seu senhor, mais incrédulo que Mary.
— Mas é claro, minha amada noiva — Weezy permitiu.
Mary teve um frio na espinha só de ouvir aquilo, mas seria a última vez ao menos. Ela preferia morrer antes de se casar com um monstro como Weezy.
E com uma reverência, ela deixou a sala real.
Caminhando pelo corredor, fora da vista do tirano e seus guardas, ela não conseguiu segurar as lágrimas. Não apenas pela proposta de Weezy, mas também de uma antiga memória de infância que aquela situação remeteu.
Na ocasião, ela estava no quarto, sendo repreendida pela mãe, que lhe deu um forte tapa no rosto. A figura imponente de Lana Robinson sempre fora o suficiente para fazer a filha obedecê-la, mas não naquela noite.
— Está sentindo dor, Mary? — ela perguntou, severa — porque vai sentir uma pior que essa por um homem se continuar agindo assim.
— Mas eu só disse que jamais casaria com ele — Mary disse, chorando com a mão no rosto — eu não posso dizer o que eu penso?
— Não, não pode, estamos no mundo dos homens, e eles não aceitam ser contrariados — Lana estava de costas para a filha — ainda mais para um homem de alto escalão como o duque Belt. E tenha isso em mente, não é só porque ele propõe que você irá se casar com seu filho, que isso irá acontecer. Entendeu?
Mary se sentiu mal, ela sabia que, no fundo a mãe só queria seu bem, que ela fosse uma mulher ideal naquela sociedade impiedosa. Mas aquilo não era justo em sua opinião, principalmente quando lembrava de sua heroína, Julia Aurora e como ela havia enfrentado tais imposições.
Se um dia eu tiver que casar, será com alguém que eu quero. Foi o que ela pensou naquele dia. Eu prefiro morrer a viver forçada com um homem que não gosto.
E ela havia conseguido, ao conhecer Archie na infância, dois dias depois daquele tapa de sua mãe.
O garoto da mesma idade que a sua andava pela rua com uma lupa na mão, investigando pegadas de cachorro no chão coberto de neve. Na ocasião, Mary estava sentada na calçada, ainda refletindo sobre a conversa com sua mãe.
— Ei, posso te fazer uma pergunta? — o pequeno Archie perguntou, a garota o fitou surpresa, acenando positivamente — viu um cachorro marrom bem peludo passar por essa rua?
— Vi sim, ele virou aquela esquina — Mary contou, apontando para o local — Por que está andando, por aí, como um detetive? Detetives também procuram cachorros perdidos na rua?
— Bom… não — Archie respondeu, sorrindo de uma forma canastrona e ingênua ao mesmo tempo — mas se eu não puder encontrar o cachorro do vizinho, como vou ser um detetive de verdade um dia?
— Tem razão — Mary sorriu, admirando a determinação do garoto.
— Bom, eu vou atrás do Merry, o Sr. Tea me confiou essa tarefa e não vou decepcioná-lo! — ele disse, como se estivesse em uma grande aventura implacável — ah… nem perguntei, como se chama?
— Mary, se diz da mesma forma que o nome do cachorrinho — a garota respondeu, sentindo seu bom humor elevar — e o seu?
— Sou Archie, ótimo te conhecer, Mary — e após dizer aquilo com energia, ele continuou sua jornada em busca do cachorro Merry.
Depois daquele dia, eles se tornaram grandes amigos, obrigando as famílias Robinson e Becker a se aturar, já que os dois pequenos estavam sempre aprontando juntos. Ainda mais quando começaram a namorar após crescerem.
Era por aquele motivo, que Mary precisava fugir daquele palácio. Ela já estava noiva de Archie, não tinha planos em se tornar o objeto sexual daquela criatura. Eu só preciso ir até o poleiro, Gaibora Karpa já deve ter chegado.
Decidida, ela enxugou as lágrimas, sabendo que Weezy de qualquer forma jamais teria o que ele desejava. Ele se dizia um deus, mas não podia ter tudo, e ela provaria aquilo de uma forma ou de outra.
Chegando ao poleiro, nem teve qualquer modéstia ao escancarar a porta e assustar todos os pássaros dorminhocos ali presentes. Para seu alívio, o pombo-correio estava ali.
— Me conta o que eles te disseram, Gaibora Karpa — ela foi direta, pois não tinha tempo a perder.
— Um pouco de educação não faz mal, sabe senhorita… — a ave mudou de ideia ao ver a expressão possessa da garota, decidindo contar tudo.
À medida que ouvia, Mary ficava mais confusa. A história parecia mirabolante demais e carecia de detalhes. Mas como Gaibora Karpa mencionou, eles não entraram em detalhes por estarem com pressa em embarcar no trem. A informação de que eles possuíam algo capaz de derrotar Weezy mudava seus planos.
— Então o cientista deve saber conduzir um expresso e um navio — Mary deduziu, mais aliviada — preciso que entregue mais um recado, o último, eu prometo.
O dia que eu tiver descanso, vai ser apenas quando a revolução se concretizar mesmo. A ave pensou, acenando positivamente como de praxe.
— Certo, preciso que diga que descobri uma passagem secreta da cidade que leva até o palácio. Diga que fica na rua do Museu Britânico e o número da casa é 40. Eu vou fugir daqui com meu pai e os esperar lá. Eles vão demorar, não é? Então os espere em King’s Cross… vá logo.
O pombo-correio tomou voo. Se sentiu aliviada de uma forma que não se sentia há muito tempo. Todas as horas que havia passado ali pareceram milênios. Agora só preciso tirar o papai daquela cela.
Ela ia abrir a porta para sair do poleiro, quando outra pessoa a abriu. Seu coração gelou ao ver que era Damon, o Múmia, braço direito de Weezy.
— O que faz tanto nesse poleiro, Srta. Robinson? — Damon perguntou, suavemente — será que estava pensando em fugir do palácio? Tenho quase certeza que ouvi essas palavras ao colocar meus ouvidos sobre essa porta.
Isso não pode estar acontecendo. Ela pensou, decidindo que deveria ensaiar para o sacerdote.
— Ah… bem, eu venho aqui apenas para ver os pássaros, sempre amei eles — ela deu o sorriso mais cínico que foi capaz em uma situação tensa como aquela.
— Sua atuação já foi melhor, Srta. Robinson — Damon parecia calmo, como se estivesse resolvendo uma mera trivialidade — me diga, acha mesmo que poderia transitar por todo esse castelo, sem que eu soubesse através dos fiéis servos do Nosso Senhor, ou sem que eu tivesse conhecimento de passagens secretas?
Mary congelou. Ela estava abismada com a revelação. Se ele possuía conhecimento da passagem secreta, então tudo estava perdido. Archie e os outros iriam entrar ali às cegas e seriam atacados.
— Sim, é verdade que meu Senhor, o Weezy não tem conhecimento, pois esses pormenores fúteis, acredito que não sejam de seus interesses.
Sabendo que não tinha mais escolha, ela puxou a adaga debaixo da saia, ensaiando uma falsa coragem.
— Pode me matar, mas eu jamais casaria com seu Senhor — ela disse com ferocidade, apontando a adaga para o sacerdote.
— Está certa, não deve se casar com ele, isso seria uma blasfêmia — impassível, ele cruzou a garota, entrando no poleiro e olhando o céu coberto pelo eclipse — fuja, seja lá para onde for. Seu pai já está liberto, apenas não volte aqui.
O que? Mary ficou em choque. Isso é alguma piada?
— Eu não estou brincando. Estou lhe dando uma chance para sumir sem que eu precise fazer com que suma — Damon estava de costas para ela, sereno — mas lembre-se, se meu Senhor descobrir onde a senhorita está, ele a trará de volta ao castelo, nesse caso, serei obrigado a matá-la, pelo bem do plano divino.
Mary entendeu o recado, não ousando questionar ou perder aquela oportunidade. No fim, Weezy parecia mais estúpido ainda, pois nem em seus servos mais leais podia confiar.
***
O ar frio pairava no céu de inverno na Grã-Bretanha. O trem voando de forma mágica era uma visão digna dos contos de natal, se não fosse a lua coberta pelo eclipse.
Já fazia umas boas horas que eles viajavam em uma velocidade razoável. Graças a pressão do ar, não podiam ir tão rápido quanto desejavam, além de não poderem subir tanto, pois seus corpos não aguentariam.
Archie dormia aos roncos. Após tanto tempo acordado, resolveu se dar aquele luxo. Foi um sono pesado, sem sonhos e gostoso, até alguém começar a mexer em seus ombros:
— Acorda, Becker, já estamos chegando — era a voz de Victor, um tanto impaciente — JÁ É A MINHA DÉCIMA TENTATIVA, POR ACASO ACORDOU A VIDA INTEIRA SÓ COM ALARME É?
O detetive enfim abriu os olhos, vendo a silhueta do companheiro raivoso respirando fundo, sorrindo em seguida.
— ESTÁ SORRINDO PELA MINHA DESGRAÇA EM ACORDÁ-LO, IMBECIL?
— Logo vamos terminar isso — ele disse, após bocejar e olhar a janela, vendo a sua cidade em meio à névoa — e eu vou ver Mary, comprar um chapéu novo e ir em um pub com um amigo.
Frankenstein não conseguiu evitar um sorriso. A perspectiva de que logo tudo ficaria melhor e que ainda tinha uma chance de ser feliz na vida era esperançosa demais para seu gosto.
Paul estava em uma cabine à frente, observando o horizonte acima, uma perspectiva que ninguém nunca teve antes até aquele momento da história. É claro que um dia irão inventar um meio de transporte aéreo.
Mas sem seus livros, ele passou a maioria da viagem refletindo sobre tudo o que havia passado, tudo que ele precisou aprender e absorver por meio de situações traumáticas e acabou chorando algumas vezes, sabendo que não seria fácil esquecer de quase ver a morte tantas vezes ou de ter matado Dominic.
— Já estamos chegando, crianças! — Anderson anunciou, ainda em sua forma humana.
O trio e Igor se reuniram, observando a estação de King’s Cross surgindo e o caos que era a cidade. Notaram alguns transeuntes monstros observando o trem. Felizmente estavam afastados o suficiente do Palácio de Westminster para que Weezy ou seus vassalos os notassem.
— Essa bagunça que você fez na cidade não vai ficar barato, Weezy — Archie disse, vendo o fogo e destruição por toda parte.
— Precisamos de um plano, não é? — Paul comentou — não podemos simplesmente entrar no palácio. Weezy e o Sacerdote sabe quem somos, provavelmente desconfiaram.
— Eu tenho um plano, Jovem Paul — Victor disse — devemos nos apresentar formalmente a Weezy, dizendo que temos um presente especial e que viajamos quilômetros só para lhe dar. Do jeito que sua mente deve estar tomada por uma visão de rei supremo, ele vai aceitar a regalia sem pestanejar.
— Então aí fazemos a mistura executora bem na sua frente — Paul completou — isso é genial!
— Assino embaixo — Archie disse.
Finalmente na estação, Anderson conduziu o trem voador até os trilhos. Foi uma tarefa um tanto desafiadora, considerando que havia outros trens ali, mas ele conseguiu.
Logo os irmãos puderam desembarcar e pisar novamente em Londres. Para Victor, era a primeira vez. Ver a cidade naquele estado não passava a visão mais grandiosa que ele ouvia falar, mas poderia deixar as visões turísticas para depois.
— Aqui, toma — ele disse, entregando um pedaço de carne crua para Archie — talvez precisemos, torça para conseguirmos água fervente em algum lugar.
Archie acenou, concordando e guardando aquele pedaço de carne crua e podre no bolso de suas vestes.
— Agora meu negócio com vocês acabou, não é? — ouviram Anderson, se esquecendo que ele estava ali — não vão contar que eu os ajudei, não é? Nem mesmo quando estiverem diante da morte.
Seu tom era de súplica.
— Não vamos, relaxa — Archie disse despretensiosamente — prometemos.
— Obrigado, eu ainda serei eu o maior escritor do mundo, lembrem-se disso!
Anderson então fez o trem subir novamente e zarpou dali a toda velocidade.
— Tem certeza que ter deixado ele vivo foi uma boa ideia? — Victor perguntou.
— Eu não concordaria em matá-lo — Paul disse — ele já não era mais uma ameaça, seria desnecessário e cruel.
O cientista percebeu que aquele era um assunto sensível para o garoto, decidindo não tocar mais nele.
Sem mais delongas, seguiram para fora da estação. Paul ia na frente, com a espada em mãos, sabia que talvez alguns monstros os atacassem e ele apenas mataria se esse fosse o caso, infelizmente não tinha escolha e estavam muito perto de terminar aquela situação.
E foi exatamente isso que aconteceu ao entrarem na primeira rua fora de King’s Cross. Haviam alguns zumbis, esqueletos e vampiros causando ao atear fogo em um monumento público, um ato de pura anarquia. Mas ao avistarem o trio, se voltaram para eles, raivosos.
— Estão olhando o quê? — um dos zumbis disse, seu olho esquerdo pulando do rosto em carne viva — Querem passar? Acham que qualquer um pode transitar por essa cidade? HAHA, PRECISAM NOS MATAR ANTES.
Cinco das criaturas vieram para cima deles de uma vez. Paul não recuou, atravessando o cérebro do zumbi que disse aquilo com sua lâmina, em seguida desmontando dois esqueletos ao atacá-los na clavícula. Os vampiros nem tiveram chance com seu sabre que era feito de prata.
Em questão de segundos, havia derrotado os cinco, com o sabre e seu rosto sujos de sangue. Os demais monstros o olharam com espanto, em seguida correndo dali.
— Impressionante, jovem Paul — Victor disse, mas logo se certificou que o garoto não parecia orgulhoso.
— Vamos lá, Paul, esses caras estavam pedindo — Archie disse.
— Tá tudo bem, gente, eu sei que precisava fazer isso — Paul disse, melancólico — eu vou superar.
Os outros o olharam preocupados, mas antes que pudessem discutir mais, ouviram um resmungo familiar:
— Então vocês já estão aqui — era Gaibora Karpa, um pouco ofegante — como chegaram aqui tão rápido? Por acaso fizeram o trem voar?
O trio se entreolhou, mas sabiam que não havia mais tempo de explicar, precisavam logo de um plano para adentrar o palácio. Mas a ave provavelmente tinha algo a lhes dizer.
— Estamos com pressa, amigo, então pode passar o recado — Archie foi direto.
— A Srta. Robinson me enviou para lhes avisar sobre a passagem secreta que leva até o palácio — Gaibora Karpa fechou os olhos e ergueu a cabeça de forma pomposa.
— SÉRIO?! — os três exclamaram, não esperavam por aquele quebra-galho repentino.
— Sim, é só apenas uma das passagens secretas que os nobres do palácio usavam na antiguidade, se bem lembro dos boatos — a ave explicou — a localização é uma casa próxima ao Museu Britânico, número 40.
— Certo, obrigado, ave, agora precisamos correr.
E dizendo isso, Archie e companhia começaram a caminhar às pressas, deixando Gaibora Karpa sozinho e um Igor o olhando de forma esperançosa de novo. Eles realmente só vão prestar alguma educação depois da revolução, não é? Em algumas horas vocês verão acontecer.
Igor fitou a ave, lamentando mais uma vez a refeição que se ia, voltando a acompanhar o trio em seguida.
Em meio ao caos que a cidade se encontrava, eles conseguiram transitar sem serem muito destacados do resto das pessoas e monstros. Afinal, os únicos que os conheciam estavam no palácio, então poderiam se sentir um pouco mais aliviados.
Vez ou outra um monstro tentava os abordar, mas Paul sempre os intimidava com sua lâmina mortífera. Logo eles chegaram na rua do Museu Britânico, onde testemunharam uma imensa fila, guiada por pessoas mascaradas e trajadas com mantos, provavelmente membros da seita de Weezy.
Certamente deviam evitar aquele perímetro, então desviaram da fila e caminharam em direção ao quarteirão, onde a casa do número 40 devia estar. Porém, seria uma busca caótica em meio a tanta gente correndo e ateando fogo para todos os cantos.
— SOCORRO, ELES ESTÃO ATRÁS DE TODOS! — Uma pessoa normal vinha correndo na direção deles.
O trio abriu caminho para o sujeito, notando que três figuras mascaradas o perseguiam, erguendo algo semelhante a colheres gigantes.
— Vocês aí, parados! — um dos mascarados gritou, ao chegar perto do trio — por que não estão na fila para a purificação? Também estão fugindo como aquele homem?
— Purificação? Do que diabos você está falando? — Victor quis saber.
— Nosso Senhor Weezy convocou todos para serem purificados e assim impedir uma rebelião — ele e os outros membros da seita apontaram as colheres para o trio — terão que vir conosco.
— Pode tirar o cavalinho da chuva, cabeça pontuda — Archie disse.
Paul avançou, desarmando os três mascarados, que ao ver que estavam em desvantagem, fugiram como cachorros com o rabo entre as pernas.
— PERDÃO, VOSSO WEEZY, PELA NOSSA FALHA!
Victor foi até uma das colheres e a catou do chão, se perguntando de que forma aquilo seria útil como arma. Dogmas religiosos podem ser realmente esquisitos. Seria melhor se usassem forquilhas.
— A casa número 40 é logo à frente — Paul disse, ao olhar o número 39 na fachada em que estavam.
— Vamos, antes que mais malucos apareçam — Archie disse com urgência.
Então avançaram para a próxima casa naquele quarteirão, onde com alívio confirmaram estar na fachada da casa número 40. Não havia nada de especial nela, como um bom esconderijo deveria ser.
Sem mais rodeios, Archie apertou a campainha. Não tinha certeza se ela funcionava com todo o barulho na rua, até a maçaneta girar e a porta se abrir, revelando Mary com uma adaga na mão.
A aparência dela estava mais intacta que a de Archie e companhia, porém dava para perceber que arrumar o cabelo e retocar a maquiagem não haviam sido suas prioridades nas últimas horas.
— Entrem — a garota disse com um misto de urgência e felicidade.
Obedecendo, o trio e Igor adentraram com pressa o escuro ambiente. Como esperado, as luzes da casa estavam desligadas, mas era perceptível que se tratava de uma residência nobre, com cômodos luxuosos e adornos caros espalhados pela sala de estar.
Sem poder esperar mais um segundo, Archie e Mary se beijaram. Haviam passado tempo demais longe um do outro, com a preocupação aumentando a cada segundo. Mas naquele momento, se sentiam mais leves por atestar que estavam vivos e inteiros.
— Eu fiquei tão preocupada — ela disse, em um longo abraço — fiquei imaginando se conseguiriam sobreviver, se fora daqui estava tudo bem.
— Lá fora tá bem melhor que aqui, eu te garanto — Archie tentou não transparecer preocupação — eu fiquei ainda mais preocupado de você estar no mesmo lugar que aquela aberração do Weezy.
— Felizmente, eu sou mais inteligente que ele — ela parecia um pouco mais leve.
— É claro que é — Archie disse, sorrindo da forma que Mary amava.
Ao se separarem, Mary foi direto abraçar o pequeno cunhado, que parecia ainda mais afetado que o noivo.
— Você tá bem? — ela perguntou de forma complacente — o que aconteceu, Paul? Por que está com uma espada na mão e todo sujo de sangue?!
— Calma, amor — Archie se apressou, vendo Mary levemente horrorizada — é uma longa história…
— O sangue é de muitas coisas, Mary — Paul contou, de forma trivial — de zumbis, de vampiros, lobisomens… talvez eu tenha esquecido de algo.
— Calma, calma, eu posso explicar! — Archie tentou dizer, ao ver a noiva o fitar com os olhos estreitos.
— VOCÊ DEIXOU SEU IRMÃO FAZER ISSO, ARCHIE BECKER? — ela explodiu — não pensou nas consequências que isso traria?!
— Ei, não fala como se fosse minha mãe — Archie estava na defensiva — não tivemos escolha, tá bem? Paul quis ajudar… e diga-se de passagem, ele é excelente em usar isso ai.
— Isso é verdade, Paul? — ela perguntou, impaciente.
— Sim, se não fosse esse sabre, um lobisomem teria matado todos nós.
— Não tá ajudando, Paul — Archie ficou cabisbaixo — calma aí, tá? Vamos por partes.
— Vamos por partes — Mary repetiu, sentindo que sua pressão havia chegado ao limite.
— Esse é Victor Frankenstein, cientista que nos ajudou durante toda a jornada até aqui.
— Pra-zer — Victor gaguejou, ao acenar para Mary.
— Miau — Igor disse, alheio a tudo.
— Ah, esse é o gato de Victor, Igor.
Mary não sabia o que pensar sobre o cientista. Ele parecia extremamente excêntrico, além de estar muito curiosa sobre o seu envolvimento naquilo tudo. Mas antes que pudesse o cumprimentar de volta, uma voz nas sombras disse:
— Se vocês têm um plano para derrotar essa criatura, é melhor colocar em prática logo — a voz estava rouca, mas seu tom autoritário não deixou dúvidas ao detetive.
— Sr. Robinson — Archie disse, só naquele momento, notando o capitão da polícia sentado em um sofá, distante de todos.
Ao contrário de Mary, o Sr. Robinson estava péssimo. Ferido por toda parte do corpo e com os cabelos desgrenhados e sujos. Archie queria muito saber o que havia acontecido, mas não tinha coragem de perguntar no momento.
— Estou impressionado por você estar vivo, Becker. Nem tanto por seu irmão, o professor Richard sempre me contava como ele era excepcional nas aulas de esgrima — mesmo naquela situação, o sogro não perdeu a oportunidade de debochar do genro — mas desembucha, como esperam derrotar essa criatura? Um tiro da minha espingarda não resolveu o problema, duvido que algo mais possa.
— Eu tenho algo que possa destruí-lo — Victor entrou na conversa, mostrando os três ingredientes da mistura executora — isso é o que precisamos para exterminar o Weezy.
— Humph, é isso, é? E como diabos você tem isso em mãos? Quem é você afinal?
— Eu sou um cientista fracassado, cujo maior experimento deu errado — Victor admitiu, sério — eu… criei Weezy.
— O que?! — Mary exclamou, não esperando aquela revelação, olhando para o noivo — isso é alguma brincadeira?!
— É verdade, Mary — Archie confirmou, sério.
— Weezy é o resultado de um experimento que deu errado. Por isso eu tenho algo que possa exterminá-lo — o cientista explicou.
— Mas… do que está falando? Como assim? — Mary ainda parecia confusa.
Archie, Paul e Victor revezaram para explicar tudo o que havia acontecido a Mary e ao Sr. Robinson, desde a criação de Weezy até a seita do Inominável; as misturas e como a família Becker estava conectada com tudo isso.
Ao terminarem, Mary parecia ainda mais atordoada que antes.
— Isso parece mirabolante demais — ela disse — ENTÃO ISSO QUER DIZER QUE SE VOCÊ NÃO TIVESSE ACEITADO SE ENCONTRAR COM ESTRANHOS TARDE DA NOITE EM UM CEMITÉRIO NADA DISSO TERIA ACONTECIDO, ARCHIE BECKER?!
— Eu também refleti sobre as implicações paradoxais disso — Paul comentou.
— Calma, meu amor, como eu ia saber? — eu tô bem ferrado mesmo.
— A culpa foi minha também — Victor disse — eu não tranquei direito a porta do necrotério e toda a estrutura para a realização do experimento era muito frágil… eu estava na completa irregularidade. Só o Jovem Paul que não teve nada a ver com isso.
Mary respirou fundo. Ela sabia que estava agindo por impulso, ninguém imaginaria que um pequeno erro poderia gerar o apocalipse global. Mas mesmo assim, sua mente ainda fervilhava sobre as misturas e outros aspectos da explicação, o que era melhor deixar para depois.
— Tá, então você tem uma mistura capaz de matar o Weezy — Mary tentou organizar as coisas — então só precisamos ir até ele e atacá-lo de forma certeira.
— Eu pensei em irmos como se tivéssemos levando um presente — Victor explicou seu plano — aí fazemos a mistura na frente dele e o ataque vai ser certeiro.
— É um bom plano. Como ele confia em mim, eu posso levá-los até ele… o que está fazendo, Archie? — a garota perguntou, vendo o detetive colocar uma chaleira com água para ferver na lareira.
— Ah, isso é para a mistura — ele disse — lembra que falei que eu podia tomar as misturas sem morrer no processo? Um dos ingredientes é a água fervente.
Eu só não vou questionar isso por enquanto. Ela decidiu, sentindo os neurônios trabalharem demais.
Quando a água ferveu, Archie a colocou em um dos balões de fundo redondo, bem como a carne de guepardo no outro, os misturou até se tornar uma espécie de elixir. Mary assistiu todo o processo achando fascinante, de tão mágico que aquilo parecia.
Archie então ingeriu o elixir, sabendo que não precisaria dele por mais de uma hora.
— Acho que podemos ir, não é? — ele indagou.
— Sim — Mary concordou — Paul, não quer ficar aqui? Não precisa se esforçar mais, você já fez muito.
— Eu não tenho mais medo, Mary — o semblante do garoto parecia mais maduro, apesar de ainda carregar certa ingenuidade — eu quero ir, eu já lutei até aqui mesmo.
Mesmo querendo muito contestar, a garota apenas fechou os olhos e acenou positivamente.
Archie, Paul, Victor, Mary e Igor — que passaria despercebido no caminho por ser um gato — estavam prontos para partir.
— Ei, Becker — o Sr. Robinson chamou — não morra e cuide da minha filha, como um homem que é.
— Beleza, Sr. Robinson — Archie concordou, erguendo o polegar.
Me poupe, pai. Mary pensou, incrédula.