As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 40
“O legado não está no sangue, mas sim nas mãos de quem o carrega” – Pulget, o pequeno
Lapsos de memória iam e vinham, como um sonho em camadas. Archie não sentia nada, apenas tinha visões do seu passado. Ele não sabia explicar o motivo, talvez estivesse no pós-vida.
Primeiro viu seu irmão, Paul, entrando pela primeira vez na residência dos Beckers. Archie já era quase um adulto e achou estranho ver aquele garoto e seu pai dizendo que ele o deveria chamar de irmão.
Paul não conseguiu olhar em seus olhos, parecendo muito envergonhado. Para piorar, Archie sentiu ciúmes pela felicidade no rosto do pai ao contar que aquele garoto era o novo membro da família, deixando a sala sem dizer nada.
Aquela cena desvaneceu e outra se formou.
Archie era uma criança, caminhando na rua com uma lupa, após virar a esquina com a dica da garota chamada Mary.
Ele lembrou que a pouco naquele mesmo dia, na espreita, ouviu seu pai dizer a sua mãe:
— O garoto é desprovido de brilhantismo, Agatha — sua voz denotava ira — como que ele vai ser capaz de levar o legado da família para frente?
— Que se exploda seu legado, Henry — a mãe parecia ainda mais furiosa — ele é nosso filho, devia amá-lo do jeito que ele é!
— O legado é maior que isso, Agatha, foi isso que meu pai me ensinou, isso que toda família Becker seguiu desde que Sir Arthur, o patriarca, entrou para a história como um gênio. Não vai ser meu filho quem vai quebrar esse ciclo virtuoso!
Archie se lembrava com precisão daquelas palavras, começando a chorar assim que elas vieram à mente. Ele não podia aguentar mais aquilo. Era por isso que estava procurando o cachorro do vizinho. Estava decidido a se tornar um grande detetive e mostrar ao pai que seu sonho valia a pena.
— Ei, Archie — ele se virou e viu que era Mary, com as mãos para trás — posso ajudar a procurar o cachorrinho?
A cena se dissipou novamente; Archie estava beijando Midna. A cena corta e ele levanta enquanto ela dormia para ir embora, decidindo deixar o chapéu como forma de desculpas.
“Você surpreendentemente não é uma pessoa ruim”, ouviu-a em seus pensamentos, enquanto pulava de telhado em telhado rumo ao Hotel Overlook.
Outra transição.
Agora era Victor quem o olhava, em um cenário totalmente branco. Archie não aguentou as lágrimas, se sentindo culpado.
— Desculpa — ele tentou se aproximar do amigo, mas não conseguiu — se eu não tivesse ido àquele cemitério me encontrar com aqueles caras, nada disso teria acontecido. Toda essa merda é culpa minha, eu quem devia ter morrido!
O cientista nada disse, ignorando as palavras de Archie. Era tarde demais para dizer as últimas palavras, ele sabia.
E foi assim que seus sonhos terminaram, com Archie sentindo algo fluir pelo corpo. Era como os efeitos das misturas, mas aquele parecia estar deixando seu corpo menos dolorido.
Seus sentidos iam retornando aos poucos, mas ele já conseguia ouvir vozes… algumas eram desconhecidas.
— Logo ele vai acordar, o efeito da poção é imediato — ouviu uma voz suave, como veludo, pronunciar.
— Lembro-me de tempos de outrora, quando eu e meu confrade Art, estávamos à beira da inexistência, trucidados, onde tomamos essa poção — essa voz era fanha e um pouco rouca ao mesmo tempo — ali começou nossas desventuras surreais.
— Isso é muito empolgante, professor — era claramente a voz entusiasmada.
A visão de Archie estava aguçada, se sentia confuso. Se bem lembrava, eles estavam em uma situação lamentável antes dele ficar desacordado. Isso com certeza é o pós-vida.
Mas assim que a visão se tornou nítida, ele percebeu estar em uma espécie de cabana, onde uma lareira crepitava e iluminava o local. Além disso, viu seu irmão Paul, que ao perceber seu despertar, foi ao seu encontro na cama.
— Funcionou! — ele disse, contente, em sua forma monstruosa — você está vivo.
— Você… tá bem, Paul? — ele perguntou, um pouco grogue — essa… transformação não te deixa sujeito aos controles do… Weezy?
— Eu não senti nada diferente na minha mente, só no meu corpo. Então eu acho que não — duvidou da própria afirmação ao olhar para uma das patas de morcego. De fato, demoraria para se acostumar.
Mas logo tudo que havia acontecido foi retornando, desde a morte de Victor até a última esperança que já não tinham. Com isso, o detetive tentou se levantar rapidamente, mas foi impedido pelo irmão.
— Cadê Mary? Ela também foi morta?! — Archie perguntou, desesperado.
— Não, ela deve ter sido mantida presa — o irmão disse, pressionando o ombro esquerdo de Archie — você precisa se deitar, Archie, ainda não está totalmente curado.
— Na verdade, está sim — um estranho quem disse, com Archie finalmente o notando ali — o efeito da poção é imediato.
— Quem é você? — Archie perguntou, considerando sua vestimenta a mais excêntrica que havia visto na vida.
— Ah, esse é o Sr. Schmidt, Archie — Paul apresentou, com o homem fazendo um gesto de cumprimento para Archie — ele e o Professor Pulget estão aqui para nos ajudar a derrotar Weezy!
— Peraí, quê? Você disse Pulget?
— Exatamente, gafanhoto moderno — ouviu aquela voz fanha de novo, mas não vendo o dono em lugar nenhum — aqui em cima, ser racional.
Só então ele sentiu algo em sua cabeça, retirando na palma da mão um ser pequeno e humanoide, trajado como um intelectual de ponta. Mas o que diabos! Eu devo ter morrido, não é possível.
— Espera aí, eu tenho muitas perguntas — ele tentou se acalmar, aquilo estava confuso demais — primeiro, você é o tal Pulget, o pequeno, que Paul tanto fala?
— Decerto, camarada — Pulget, o pequeno, confirmou.
— É ele mesmo, Archie. Eu nunca poderia imaginar que ele era um homúnculo — Paul confirmou, empolgado.
— Mas isso não faz o menor sentido…
— Eu sei o que está pensando, Archie — Aaron o interrompeu — então eu vou sanar suas dúvidas rapidamente, pois talvez não tenhamos muito tempo.
Ele retirou dois balões de fundo redondo novinhos de uma bolsa, entregando-os a Archie, que os recebeu com curiosidade, mas lembrou que o homem estava prestes a lhe contar tudo.
— Pois bem — Aaron disse, se sentando novamente em uma poltrona próxima à lareira — eu sou líder sênior da Sociedade Secreta e Unificada dos Alquimistas. Ou seja, sou um grande amigo de Arthur Becker, bem como Pulget — o homúnculo balançou a cabecinha em confirmação — eu sei que vai parecer surreal, mas a esse ponto já viu coisas extraordinárias o suficientes para crer… não pertencemos a essa época, somos viajantes do tempo.
— QUÊ?! — Para Archie aquilo era mais impossível que qualquer outra coisa — viagem no tempo? Isso existe? Então podemos acabar com tudo isso, não é? Por isso que vocês vieram aqui!
O próprio detetive se surpreendeu com a aceitação e proposta imediatas.
— Não, Archie, infelizmente não é tão simples — Aaron continuou, calmamente — a viagem no tempo é perigosa e pode gerar diversos paradoxos temporais indesejáveis. Por isso, só viajamos quando o Sistema nos solicita, para resolver problemas que podem afetar os rumos da humanidade e envolvem diretamente a Sociedade Secreta e Unificada dos Alquimistas.
— Sistema? Como assim? — Archie perguntou, ainda muito confuso.
— O Sistema é uma rede neural hiper-complexa, criada em 20XX, o ano da queda, pela Dra. Haruka Michi — o olhar de Aaron se tornou um tanto sombrio — não se sabe o que aconteceu exatamente, mas o que sabemos é que um dia o mais brilhante Mestre de Misturas antes de Arthur, Amadeus Sparkle, viajou no tempo e se encontrou com o Sistema usando a mistura de viajem no tempo, o que causou diversos paradoxos, mas com a ajuda do Sistema e sua sabedoria inumana, ele os resolveu e foi integrado na Sociedade Secreta dos Alquimistas por Sparkle. Desde então ele serve como destruidor de lacunas da ordem do espaço-tempo.
— Tá, isso é muita informação — Archie se sentiu atônito, começando a andar de um lado para o outro — tem um livro recente sobre isso, não tem? Sobre viagem no tempo.
— Sim, “A Máquina do Tempo” de H.G Wells — Paul citou, sentindo sua mente explodir de forma metafórica.
— Tá, então o Sistema disse para vocês virem aqui para o quê? Derrotar Weezy? Isso irá fazer o Eclipse acabar? — Archie quis saber, sem esperança alguma.
— Não sabemos, mas isso é o melhor que podemos fazer — Aaron abaixou a cabeça — a culpa disso tudo é minha também, eu fui inconsequente… eu quem entreguei a caderneta de Arthur Becker para Frankenstein.
Fez-se um silêncio, com Archie e Paul, digerindo a revelação aterradora. Então, no fim, o verdadeiro culpado estava ali na frente deles, confessando seu crime.
— Oh, quão cruel podem ser os caminhos do Paradoxo — Pulget comentou, tristonho, em cima do ombro de Paul.
— O QUÊ?! — Archie exclamou, no mesmo momento tomado por uma raiva, se pondo de pé e indo agarrar Aaron pela gola do sobretudo — ENTÃO FRANKENSTEIN MORREU POR SUA CAUSA?!
Sem piedade alguma, Aaron o afastou, desferindo um soco no estômago de Archie, o fazendo agonizar no chão. Paul ficou perplexo.
— Não se exalte, Archie — Aaron manteve a postura — ele iria se matar de qualquer jeito, não entende? É desse tipo de paradoxo que estou falando. Sua morte foi adiada, mas algo pior aconteceu, bem pior. Agora vê o perigo de alterar os rumos do destino?
— Mas então… por que diabos entregou a caderneta para ele? — Archie perguntou, se recuperando do soco — por que o Sistema também mandou?
— Não — o olhar do Alquimista naquele momento parecia carregado de significado, mesmo com os óculos o cobrindo — os Frankenstein são da minha linhagem. Em algum momento tivemos que mudar o nome por motivos de imigração. Eu vi o futuro pelos jornais, eu vi que após a morte de Victor, seus pais não teriam outros filhos e a linhagem acabaria… eu fui egoísta, quis que minha linhagem tivesse um legado brilhante, tão brilhante quanto o dos Becker.
Agora tudo fazia sentido para Archie. O problema era muito maior do que ele imaginava. No fim, a única maneira de mudar as coisas era no presente, como se uma lei do universo definisse isso.
— A culpa não é só sua — Archie disse, após um suspiro — eu também causei isso, quando eu aceitei o caso com desconhecidos em um cemitério à noite.
— Não há exatamente um único culpado em um paradoxo temporal — Aaron explicou — pense comigo, se Amadeus Sparkle não tivesse viajado no tempo, não estaríamos nessa situação agora.
— A culpa pode ser terceirizada ad infinitum — Pulget concluiu.
— Mesmo assim… eu ainda me sinto responsável — Archie disse, ainda abalado.
— Eu e você ainda somos, mesmo que não totalmente — Aaron disse — por isso viemos aqui, o que pudermos fazer para que esse mundo não seja dominado por um ser poderoso como Weezy, iremos fazer.
— De acordo — Paul disse, determinado.
— Concordo com absolutamente todos os pontos apresentados — Pulget disse.
O detetive assumiu um semblante melancólico, perplexo em como toda aquela tragédia havia se desenrolado. A coisa era muito maior do que o Longo Eclipse e o nascimento de Weezy. Quem sabe quantas mais ramificações o paradoxo poderia gerar? Se ainda pudesse fazer algo, decidiu não deixar a oportunidade passar:
— Certo, vamos dar um chute na bunda daquela criatura desgraçada — em nome de Victor Frankenstein.
Para Archie, era sobre honrar seu amigo. Se Victor não pudesse ser feliz, ele seria dez vezes mais por ele. E o único jeito disso acontecer, era Weezy deixando de existir. Além disso, Mary ainda deve estar lá, do jeito que aquele monstro é idiota, ainda deve ter esperanças de se casar com ela.
Aaron foi até a lareira, onde um bule fora posto ali para esquentar água. Ao removê-lo de lá, o entregou a Archie, com carne crua de guepardo.
— Vá, faça sua mistura — o alquimista disse.
— Eu posso ingerir qualquer mistura — Archie lembrou de contar.
— Eu sei que é especial, Archie, mas no momento é tudo o que temos — Aaron tirou um frasco do bolso, tomando seu elixir — você é um mistério para todos nós alquimistas, mas podemos pensar sobre isso outra hora.
Archie concordou, pegando seus novos balões de fundo redondo, para preparar o elixir.
— Muito bem, confrades, qual a próxima etapa? — Pulget perguntou, parecia o mais tranquilo entre todos ali.
— Precisamos encontrar uma forma de entrar no palácio — Paul disse, coçando o queixo com a garra de morcego.
— Eu tenho uma pergunta mais importante. Como iremos derrotar Weezy? — Archie quis saber — você não é um filósofo? Como espera nos ajudar?
— Evidente que um jovem tolo como você iria me subestimar — o homúnculo então fechou os olhos, juntando as duas mãozinhas e se concentrando, até uma bolinha de metal cromada surgir entre suas mãos — já derrubei gigantes com meu poder no passado.
— Bolas? Sério? Como que isso iria aju…
BAM!
Sem aviso, Pulget lançou a bola, que passou de raspão na orelha esquerda do detetive em uma velocidade inestimável. A parede da cabana às suas costas não aguentou e um buraco esférico minúsculo se formou ali.
— Tá, entendi, tamanho não é documento — Archie se convenceu, conferindo se sua orelha estava no lugar — e qual o seu poder, Sr. Sobretudo que esqueci o nome?
— É Aaron Schmidt — o alquimista disse, e após um gesto com as mãos, uma espécie de espelho de três dimensões surgiu na frente de Archie — tente dar um soco.
Receoso sobre o que diabos era aquilo, Archie socou com toda a força o espelho a sua frente. Em uma fração de segundo, toda a dor do soco foi multiplicada, o fazendo ser arremessado para a porta da cabana.
— MERDA! — ele disse, irritado após se colocar de pé — ISSO DOEU, TÁ BOM? PODERIA TER APENAS CONTADO O QUE ELE FAZIA!
— É sempre melhor mostrar do que contar — Aaron deu um sorriso divertido, deixando o garoto ainda mais furioso.
— Mas isso é o suficiente para derrotar o Weezy? — Paul indagou.
— Quanto a isso, eu tenho uma mistura executora.
Archie e Paul se entreolharam, queriam perguntar a mesma coisa.
— Foi exatamente dessa forma que tentamos derrotar Weezy… e não deu certo — Paul disse, tristonho, lembrando do que aquilo havia custado.
— Foi o próprio Sistema quem nos informou que essa mistura seria a solução, não se preocupem com isso — Aaron os tranquilizou — não é a mesma que vocês prepararam, isso eu garanto.
Espero que sim. Archie pensou, mas pelo que eles disseram, o tal Sistema parecia ser uma fonte confiável.
— Creio que a situação presente requer urgência, camaradas — Pulget avisou, sereno.
— O professor tem razão — Paul concordou, sentindo falta da sua espada, mas naquela ocasião iria ter que se virar com sua atual forma — e como vamos invadir o palácio de novo?
— Pela passagem secreta, não? — Archie respondeu — aquela que Mary descobriu.
— Mas não acha que a esse ponto eles já saibam dela?
— Ainda é mais seguro do que tentar na linha de frente, só precisamos estar cara a cara com Weezy.
— Exatamente — Aaron concordou — só precisamos sobreviver até estarmos de frente para ele, e isso eu garanto que nós quatro juntos seremos capazes.
E com aquelas palavras e o plano arquitetado, o quarteto deixou a cabana, mas antes…
— Miau! — era Igor, com uma expressão sombria os chamando.
— Pode vir conosco, Igor — Archie disse — você agora faz parte da família.
Animado, o gato os acompanhou.
Agora finalmente partiram da cabana no meio da floresta, que não era muito densa e o horizonte do distrito real podia ser visto com facilidade.
A chuva e os trovões haviam cessado, o céu negro pelo eclipse estava limpo de qualquer detalhe além da lua coberta.
De um lado, Paul e Pulget caminhavam e uma conversa de ídolo e fã ocorria:
— Como porventura conheceste minha persona filosófica, Sir Paul? — o homúnculo filósofo questionou.
— Quando era criança, encontrei um livro de citações suas no lixo — o garoto respondeu, com um sorriso de orelha a orelha.
— Julguei que fosse meu apreciador-nato — Pulget disse, ofendido.
— Não, não é isso…
Paul então explicou toda a sua história com o livro “Teoria do Não-Transcendental” e o contexto para tê-lo encontrado.
— Oh, sim, vejo como é fundamental o contexto de todas as coisas.
— Eu aprendi a ler melhor por sua causa, mas nunca imaginei que fosse um homúnculo, professor. Quer dizer, acho que ninguém imaginou.
— A alcunha “o pequeno” foi posta em meu nome para este propósito. Como não tomaram consciência?
— Alguns pensaram que a alcunha era metafórica, enquanto outros pensaram que o senhor sofria de nanismo — Paul disse, sem ser capaz de tirar o sorriso do rosto.
— Defina, nanismo.
— Pessoas que nascem com deficiência de crescimento, ficando com uma estatura menor que a média da maioria das pessoas.
— Oh, interessante, de fato. Mesmo anos de conhecimento e minha persona ainda adquirindo informação nova, é fascinante.
Por outro lado, Aaron e Archie caminhavam lado a lado, em silêncio. O detetive não queria pensar muito, pois sempre acabava lembrando de seu amigo morto, então decidiu fazer uma pergunta:
— E então, Arthur Becker era tão genial assim?
O alquimista, que parecia disperso, fitou Archie com curiosidade.
— Sim, ele é o maior e o mais brilhante alquimista que eu conheço — Aaron respondeu — mas nem sempre foi assim. No início, ainda jovem, Arthur era muito atrapalhado e impulsivo, mas com o tempo foi se tornando genial.
Será que papai sabe disso?
— Mas nem ele poderia ingerir todas as misturas? — Archie quis saber.
— Não, ingerir misturas diferentes pode ser extremamente perigoso para o organismo, causando efeitos indesejáveis e irreversíveis — Aaron explicou, em tom de alerta — você é a única exceção que temos conhecimento.
— Sei — é óbvio que existiam outros, só não foram descobertos — Frankenstein me explicou um pouco sobre as misturas e uma tragédia para explicar os efeitos… mas quantos tipos de misturas existem? São infinitas as possibilidades?
— Bem, quase. Porém, existem misturas que não recomendamos, já que seus efeitos são irreversíveis, como as amaldiçoadas, onde você pode ganhar uma doença, morte, aparência deformada ou poder incontrolável para sempre.
— Existiu alguém que sobreviveu após tomar isso sem sequelas?
— Sem sequelas… a única pessoa que consigo lembrar é a Srta. Julia Aurora — Archie ficou boquiaberto ao ouvir aquele nome — mesmo assim, demorou até que ela pudesse dominar o seu poder por completo.
Então Mary estava certa! Esse mundo é realmente muito maluco. Archie pensou, estupefato.
— Há claro, e tem a Mistura Meta, a mais perigosa de todas — Aaron continuou — todos que a tomaram tiveram uma morte horrível, assim os alquimistas tiveram que transformá-la em tabu para que não perdêssemos gênios que pensassem poder ser exceção a essa regra.
— E o que é essa tal Mistura Meta? — Archie sentiu curiosidade.
— Simples, os ingredientes da mistura são fragmentos de balões de fundo redondo.
— Que coisa mais tosca — Archie comentou — por que alguém faria essa mistura? Qual efeito eles esperavam?
— Talvez que a magia dos balões se tornasse ilimitada se ela fosse feita com o mesmo material que possibilita que a mistura seja feita — Aaron tentou explicar de uma forma simples — talvez realizar desejos, moldar a realidade, ter força ilimitada? Vai saber.
Archie achou aquele conceito intrigante, realmente ficando curioso sobre a Mistura Meta, porém ele sabia que talvez ela só fosse demais para o organismo humano.
Eles caminharam rumo ao bosque fora da floresta, de lá iriam por um caminho menos hostil até a cidade, que naquele momento provavelmente estava em fúria.
ZOOM!
Ouviram um som suspeito emergir da vegetação trevosa. O quarteto e Igor ficaram alerta. Não seria tão absurdo esperar um inimigo os atacar ali.
— Vejo que conseguiram escapar do castelo e sobreviver, impressionante. Também vejo que tem novos aliados — disse uma voz calma e metódica. Eles descobriram que o dono encostado em uma árvore, era o sacerdote da seita.
— Você? Como chegou até aqui?! — Archie perguntou, raivoso.
— Se acalme, eu não vim para lutar — Damon disse, tranquilo — não há mais motivo para tal, agora que sei que aquele não é o Weezy, mas sim um impostor.
Archie e Paul se entreolharam, perplexos. Aaron decidiu não interferir, enquanto Pulget parecia muito curioso para perguntar o que Damon era exatamente.
— Ele é uma múmia, professor, foi transformado por Weezy assim como eu — Paul contou, como se tivesse lido os pensamentos do homúnculo.
Esse, sim, é um conterrâneo legítimo de meu ser, o homúnculo elogiou mentalmente o garoto.
— Então foi só agora que percebeu? — Archie debochou, lembrando que a culpa era de Damon que o convidou para ir ao cemitério naquela noite — a gente já sabia disso desde o início, tava na cara!
— O eclipse me cegou, confesso, estava cético demais para achar que era apenas uma coincidência — o sacerdote ignorou os gracejos de Archie — mas agora tenho certeza de que não há como uma criatura tão desvirtuada como aquela ser o Weezy, por mais que eu o tenha feito acreditar que era.
Aquilo lembrou o garoto sobre o paradoxo temporal e a terceirização infinita da culpa por todos os acontecimentos do Longo Eclipse.
— E então? Desembucha, por que está aqui? — Archie foi direto.
— Vim propor uma trégua, pois como disse, não há mais motivo para sermos algozes, tampouco aliados — Damon explicou, seu olhar frio por trás das ataduras era assombroso e incômodo — ambos temos o mesmo objetivo, então não irei interferir na sua tentativa e nem vós na minha.
— Tá legal — Archie apenas disse.
— De acordo — Paul concordou.
— Este um é sábio de não se meter convosco — Pulget complementou.
— Então está consumado, por mais que tenham poucas chances, é melhor nos unirmos nesse momento — Damon se virou, pronto para deixá-los — há uma passagem secreta que leva ao palácio no Museu Britânico, há alguma chance do impostor ainda não ter descoberto.
E dizendo isso, o sacerdote sumiu no breu da floresta, deixando uma informação valiosa para o grupo.
***
O palácio de Westminster parecia mais calmo. Os vassalos de Weezy haviam vencido a batalha, descartando os corpos de vários rebeldes nos jardins, onde Weezy disse para os membros da seita queimar em seu nome.
Já o tirano, decidiu não deixar sua sala real, mesmo que ela estivesse destruída. Ele pediu para alguns servos virarem seu trono, para que ele pudesse observar os vastos jardins e o trabalho árduo de seus vassalos para descartar os corpos.
Mas não só isso, a visão que mais lhe enchia de orgulho era a enorme cruz de madeira que ele mesmo ergueu e montou no meio dos jardins. Lá, o corpo de Victor Frankenstein, seu suposto criador, estava. Acreditar naquela possibilidade era menos pungente, considerando que Weezy, mesmo sendo Deus ou criação, era perfeito.
Frankenstein estava pregado ali, como forma de lembrança a todos que qualquer retaliação a sua divindade, o resultado seria apenas o engrandecer, pois ele já estava fadado ao sucesso absoluto.
O fatalismo era sobre Weezy, ele era a finalidade da existência.
— Milorde parece radiante — o Gárgula comentou, ao ver o mestre com um sorriso largo.
— Como não poderia estar? Eu sou o Alfa e o Ômega, afinal — Weezy disse, sentindo um arrepio ao pronunciar aquelas palavras — me diga, por onde anda o Sacerdote? Ele deveria ver o quão grande é o Deus dele.
— Não vi o Sacerdote em nenhum lugar do palácio, milorde… mas ouvi um dos membros da seita dizer que ele havia deixado o palácio e dito que você não era o verdadeiro Deus.
O Gárgula se encolheu, vendo a expressão do tirano se alterar levemente, com seus punhos se fechando. Então aquele miserável realmente dúvida da minha divindade? Então o deus que ele adorava era fraco.
— HAHAHAHA — o súdito se surpreendeu ao ver o mestre cair na gargalhada — ele acha isso é? Quanta heresia, ele devia saber que não é Deus quem o deve agradar, mas sim o oposto. Se eu não superar suas expectativas, a culpa é sua por ter expectativas tão baixas, não é?
— Sim, milorde, vossa vontade é a que deve prevalecer…
— Senhor! — Weezy ouviu, se virando com o trono, apesar do seu peso — encontramos esse garoto no Museu Britânico investigando as passagens secretas.
Dois sentinelas esqueletos traziam um garoto franzino e bem-vestido, cuja expressão era de pura apatia e sono. Ao ver Weezy, ele não pareceu amedrontado, apenas bocejou.
— Diga seu nome ao mestre, pedaço de estrume! — um dos sentinelas disse, jogando o garoto diante do tirano.
— Eu sou Hermann Rorschach, tenho quatorze anos e estudo psicologia — o garoto disse, sem se levantar, apático e sonolento — estava no Museu Britânico olhando algumas estátuas e tendo devaneios sobre a psiquê humana… até que peguei no sono e agora tô tendo esse sonho maluco, Freud explica.
Weezy sorriu, achando o garoto no mínimo interessante. Talvez ele tivesse alguma serventia afinal de contas.
Então se pôs de pé, foi até Hermann e tocou em sua cabeça, o purificando.