As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 41
“Apesar dos olhos serem a janela da alma, conforme dito em textos sagrados, nem sempre vós enxergais a realidade como ela é” — Pulget, o pequeno
As ruas de Londres estavam irreconhecíveis. O pavimento estava desgastado e sujo, graças a todo tipo de lixo que se estendia pelos bairros. Bem como as várias pilhas de lixo em combustão, deixando o ar execrável, com um forte cheiro de fumaça.
No entanto, ao contrário do que se via quando no início do eclipse, às ruas agora se encontravam consideravelmente mais desertas. Os poucos que transitavam por ali, pareciam doentes ou inofensivos.
O que restava era todo o caos causado pelas transformações repentinas das pessoas e a chegada de Weezy no distrito real. A visão poderia ser considerada a de um mundo completamente utópico até alguns dias atrás.
A trupe seguia pelos cantos mais sombrios da cidade, em busca de evitar qualquer conflito. Paul tinha um palpite do motivo da rua estar tão deserta:
— Talvez Weezy tenha convocado todos os seus guardas para proteger o castelo, já que agora provavelmente ele sabe que existem passagens secretas no palácio.
— Tem que ser muito ingênuo para tomar uma decisão dessas — Aaron disse — sem vigilância pelas ruas, a chance de uma rebelião contra seu regime é muito maior.
— Se pomos a mesa que o déspota se reputa um deus, sua tolice transcende os limites conhecidos — Pulget comentou, deixando Paul fascinado.
— Isso foi muito sábio, professor, irei tabular em minha mente.
— Pelo que vejo, Sir Paul tomou posse de meus vícios de linguagem — o homúnculo disse, com um sorriso genuíno.
— Eu acho que sei também o porquê ele quer segurança máxima no palácio — Archie sugeriu, as sobrancelhas franzidas em uma expressão séria — ele pretende se casar com Mary. Aquele imbecíl deve querer fazer uma cerimônia… mas eu vou morrer antes que isso aconteça!
— Isso igualmente prova meu ponto, deuses não pensam com a outra cabeça, pois eles não a possuem — Pulget afirmou.
— Como assim? — Archie quis saber, mesmo tendo noção do que Pulget estava falando.
— Há uma teoria que diz que homens possuem duas cabeças, em termos figurativos, a racional e a carnal.
— Eu discordo que elas sejam figurativas, acho que elas são literais — Archie provocou, de forma irônica.
— Defina essa ideia.
— Deixa pra lá, não é tão interessante assim.
Enfim, após cruzar algumas avenidas discretamente, chegaram à fachada do Museu Britânico.
A estrutura imponente e pomposa exalava uma grandiosidade indescritível, exatamente como um centro histórico deveria ser. Porém, o restante ao seu redor lhe dava um aspecto de abandono, como um templo antigo perdido.
Pulget ficou encantado, bem como Paul, que mesmo já tendo o visitado várias vezes, sempre se emocionava ao olhar aquela estrutura mágica.
— Tenho um forte anseio em descobrir as maravilhas deste lugar — o homúnculo expressou.
— Eu posso lhe mostrar, professor — Paul disse, empolgado — já vim aqui várias vezes.
— Não se empolgue tanto, não estamos aqui a passeio — Aaron lembrou.
— Temos que tirar proveito dessa viagem para que ela não seja um completo infortúnio, alquimista — Pulget retrucou, em um tom sábio.
— Certo — Aaron seguiu na frente — mas fiquem alerta, um inimigo pode estar nos esperando ali dentro.
Os outros seguiram o alquimista, já nos degraus que levavam ao interior do museu. Pulget disse baixinho para o garoto:
— Os inimigos sempre acendem de forma inesperada. Mas não tema, minhas bolas já derrubaram gigantes!
Bom, elas realmente derrubam pessoas. Archie pensou, ouvindo tudo.
Atravessaram as pilastras rumo ao interior do museu, que estava fechado. Era uma grande sorte que ninguém tivesse entrado ali para destruir tudo. Provavelmente a seita ajudou a impedir aquilo, já que passaram boa parte do caos inicial do eclipse usando a fachada do museu como palco.
— Olha que visão estarrecedora! — o homúnculo comentou ao ver aquela belíssima arquitetura pela primeira vez.
O museu podia ser considerado uma escultura à parte, com ornamentos históricos surgindo logo de cara, junto de um corredor, onde cada centímetro era polido, desde o chão até as paredes.
Seria um local perfeito para visitar e explorar ao máximo, Pulget achou uma pena estar lá naquelas circunstâncias. Nem sequer havia uma boa iluminação disponível, o que tornava difícil a contemplação.
Aaron tirou uma lanterna de um dos bolsos do seu sobretudo, deixando Archie com dúvidas sobre quantas coisas o alquimista conseguia guardar nas vestimentas. Então o futuro é isso? Roupas grossas com mil bolsos?
— Não vai ser fácil, esse lugar é enorme — Aaron disse, enquanto eles caminhavam — a passagem secreta pode estar em qualquer sala, mas é melhor procurarmos nas que contêm as peças mais famosas…
— Nem sequer irão chegar a fazer isso — foram surpreendidos por uma voz desinteressada — pois é aqui que conhecerão seus verdadeiros medos, Freud explica.
Subitamente, as luzes do museu acenderam, fazendo o grupo ficar cego por alguns segundos. Mas logo que recobraram a visão, notaram um garoto transformado em zumbi, porém bem-vestido, parado no meio do corredor. Ele aparentava ter mais ou menos a idade de Paul. Atrás dele havia várias telas de pintura enfileiradas, eles puderam distinguir.
— Quem é você? — Aaron perguntou, sabendo que só havia uma resposta possível.
— Melhor proferir logo o que foi solicitado — Pulget disse, materializando uma bolinha cromada.
— Meu nome é Hermann Rorschach, natural de Zurique, na Suíça, nasci em oito de novembro de 1984… espera, isso por acaso é uma entrevista?
Esse cara é maluco? Archie pensou, incrédulo.
— Responda de forma objetiva: a que mestre você serve? — Aaron insistiu, pouco convencido com o perigo daquele jovem zumbi.
— Bem, eu sirvo aos ensinamentos de Sigmund Freud, pai da psicanálise, como bem sabem. Em breve serei o seu sucessor espiritual em excelência e avanço para… espera, quando foi que ficou claro que teria que ser tão específico?
— VOCÊ É ALGUM TIPO DE MALUCO POR ACASO?! — Archie perdeu a paciência.
— Maluco é um termo pejorativo, repense suas palavras. Pessoas com transtorno de esquizofrenia precisaram de um tratamento sério, Freud explica.
— Bom, acho que podemos concluir que ele não é uma ameaça, não é? — Paul indagou, vendo que Rorschach era um estudante apreciador de Freud, apesar de transformado.
— Creio que esteja certo, Paul — Aaron concordou — vamos indo.
O quarteto e Igor então seguiram seu caminho, mas Rorschach ainda permaneceu no meio corredor, e no momento que eles chegaram perto, o freudiano fez um gesto para eles pararem.
— Ei, quem disse que eu vou deixá-los passar? — Rorschach disse, sua expressão ainda indiferente aos outros, com os braços cruzados — precisam fazer o meu teste antes, se passarem, lhes digo onde está a passagem secreta que procuram.
Os quatro se entreolharam, mas logo Aaron disse baixinho para eles:
— Esse garoto será uma figura importante na história da humanidade, não podemos matá-lo — Aaron avisou — eu sei muito bem qual o teste dele, vamos fazer isso e seguir.
— Mas se ele aprontar alguma, tá liberado fazer ele desmaiar? — Archie perguntou.
— Muito provavelmente não será necessário, apenas não o matem.
Um silêncio então se instaurou, onde o grupo se afastou e encarou o jovem Rorschach, cuja postura indicava indiferença. Mas de forma repentina, ele saiu da frente das telas de pintura, dispondo umas do lado das outras. As telas estavam pintadas com desenhos confusos e abstratos, à primeira vista parecendo mais uma mancha que qualquer outra coisa.
— Pareidolia, um fenômeno psicológico muito intrigante — Rorschach explicou, apontando de forma dramática para uma estátua ao leste do pátio — esse fenômeno nos faz reconhecer rostos humanos ou de animais em objetos, sombras, formações de luzes e etcetera, Freud explica.
— Tipo as nuvens em formas de animais no céu? — Paul questionou, sempre se empolgava com o menor estímulo de conhecimento.
— Sim, essa também é uma manifestação da pareidolia — o garoto freudiano pigarreou antes de continuar — estão vendo essas manchas nas telas? Se não estiverem podem se considerar cegos… mas isso não vem ao caso agora. O teste que eu criei consiste em usar a pareidolia para de alguma forma entender a mente das pessoas. Ou seja, cada um pode olhar para essas manchas e ver algo diferente. Isso proporciona um diagnóstico único para cada indivíduo! Freud ficaria abismado com tamanha sagacidade.
— Tá legal, mas o que a gente precisa fazer pra passar no teste? — Archie perguntou, impaciente.
— É muito simples — pela primeira vez o garoto sorriu, um sorriso claramente de alguém mal-intencionado — apenas foque na mancha e me digam o que vêem nela.
Archie já estava olhando para uma das manchas e não via nada ali, mas fingiu se focar para convencer Rorschach.
Aquilo estava estranho. À medida que o detetive focava mais no quadro, a forma parecia fazer mais sentido, porém ele não queria acreditar no que a mancha estava se parecendo. Não, tudo menos elas, eu vou fechar os olhos!
Não conseguiu.
Aos poucos sua visão ia ficando turva, duplicando a mancha e lhe dando um aspecto ilusório de profundidade. Mas, além disso, ela começou a chacoalhar, a princípio a forma inteira, mas logo ele notou que apenas as partes que representavam as asas se moviam para cima e para baixo freneticamente.
Mas que merda é essa? Eu tô vendo uma borboleta gigante?!
Assim ocorreu também com Paul, com outra mancha.
Espera, são duas pessoas muito grandes uma do lado da outra! Eu consigo ver. O garoto pensou, entusiasmado. E elas estão com as mãos erguidas tocando uma na outra, alinhadas com os pés.
Assim como ocorreu com Archie, a imagem causou um efeito alucinógeno de distorção, onde ele começou a não entender a profundidade da mancha e vê-la saindo do quadro e se movimentando.
Espera aí, são duas pessoas… iguais? Não, não pode ser ele. E duplicado ainda por cima?!
Paul viu Richie, o valentão da gangue do Quentin, duas vezes maior que ele. O desespero foi tanto, que Paul saiu correndo dali, deixando Pulget, que também olhava fixamente para a mancha, cair com tudo no chão.
Felizmente, ele foi salvo por Igor, que estava do lado de Paul.
— Oh, muito obrigado por me salvar, besta felina cheia de bravura — o homúnculo se ajeitou, como se estivesse em uma montaria — creio que estou reconhecendo quem está naquela mancha.
O mesmo processo aconteceu com Pulget, que ao associar a imagem a alguém, foi tomado pelas ilusões de profundidade, assim fazendo um rato gigante sair daquela tela.
— É EL RATÓN! FUJA, BESTA FELINA! — Pulget puxou a pele do pescoço de Igor, o fazendo correr dali, com um rato gigante em seu encalço.
Rorschach estava de costas para eles, mas pelos gritos e agitação que ouvia, podia deduzir que seu teste havia funcionado. Eles caíram direitinho, meu mestre Weezy ficará orgulhoso e eu serei posto como um sucessor digno de Freud em seu reinado absoluto.
Então decidiu se virar, só para ver a dois metros dele o homem de sobretudo e óculos escuros lhe encarando. Rorschach quase caiu para trás ao tentar recuar.
— Espera aí, como não foi dopado pela minha mancha? — perguntou, indignado — antes de me virar notei que estava focado nela tanto quanto os outros.
— Esse é o meu segredo — Aaron tirou o óculos escuro, revelando um par de olhos castanhos penetrantes — eu estava de olhos fechados.
Maldito, ele me enganou direitinho. Hora de colocar o plano B em ação.
Sem qualquer honra, Rorschach saiu correndo dali, deixando para o alquimista a tarefa de persegui-lo. Aaron esperava que as alucinações não afetassem severamente os outros, pois não tinha muito o que fazer, então logo sumiu do corredor inicial correndo atrás do jovem Rorschach.
***
Archie sentia o sangue gelado, a pressão subindo, mas que em qualquer outro momento da jornada. Estava diante do seu arqui-inimigo natural, aquele que sempre sentiu nojo e consequentemente medo sem saber o motivo.
A borboleta o perseguia sem pudor, seus olhos gigantes fixados no garoto de forma agonizante. Ele nem sequer se deu ao trabalho de perguntar se aquele inseto era real ou não, deixou o medo falar mais alto e simplesmente tentou despistá-la correndo entre as estátuas e estantes.
Eu não vou olhar pra trás, não vou. Ele repetiu, correndo de forma tão desajeitada que a qualquer momento sentia que iria tropeçar. Tá, se eu não ouvir nenhuma estante cair, significa que não é real.
PAFT!
Aquele era o som de provavelmente muitos vasos e artefatos históricos no chão, mas isso não importava, o maior problema para Archie era a confirmação de que a borboleta criada pela mancha de Rorschach era, sim, real.
— A GENTE VAI MORRER! — ele gritou, subindo as escadas, decidindo apenas se esconder.
Se o estudante freudiano era capaz de criar monstros por meio de pinturas, ele era o vassalo de Weezy mais poderoso enfrentado até o momento. Tinha que ser logo a merda de uma borboleta?! Eu não vou conseguir enfrentar isso.
***
— Ei, Richie 1, esse é o esquisitão adotado pelos Beckers — Richie 2 disse, em tom de deboche.
— Estou vendo, Richie 2, e ele parece ainda mais esquisito!
Paul não queria acreditar. Ele já tinha visto muitas coisas surreais ultimamente, mas ele não tinha dúvidas de que aquilo se tratava de apenas uma alucinação. Aquele era o teste de Rorschach: fazer as pessoas imaginarem seu pior medo vividamente.
Então decidiu apenas ficar parado, ignorando a existência dos Richies, com os braços cruzados e um sorriso no rosto.
— Ei, que pompa toda é essa, Becker? — Richie 1 perguntou, irritado.
— Eu acho que ele está debochando da gente, Richie 1 — Richie 2 deduziu.
— Vocês não são reais, são só ilusões dos meus traumas de infância — Paul disse, confiante, fechando os olhos — se eu ignorar, vocês vão su…
POW!
Ele mal teve tempo de reagir, sendo acertado com forte impacto no nariz. Paul perdeu o equilíbrio e caiu no chão, sentindo sangue escorrer do nariz e a visão turva. Não, não é possível existir um inimigo com tanto poder.
Passou a mão pelo nariz e confirmou que o sangue era real.
— Chega de brincadeiras, esquisito — Richie 2 disse, assomprando o punho esquerdo — vamos mostrar o lugar de um delinquente como você, não é, Richie 1?
— Exato, Richie 2!
Paul cerrou os dentes. Sabia que não tinha outra alternativa senão lutar. Bom, já que eu estou nessa forma de morcego, acho que a luta será mais justa.
***
Santo Skript! Como cresceu, El Ratón. Pulget se impressionou com a criatura quase o triplo do seu tamanho.
O homúnculo se sentia em uma cena digna de grandes epopéias. Montado em seu corcel (Igor) ele cavalgava a uma distância segura da besta colossal (El Ratón), mirando com dificuldade seu arco e flecha (bolas) em um ponto vital da criatura.
O velho inimigo, sempre volta para cobrar a dívida da vingança. Pulget divagou, relembrando do combate que ele teve com El Ratón há muito tempo.
Era difícil conduzir Igor, que parecia fazer um esforço gigante para derrubar o homúnculo.
— Não tema, bravo corcel, só preciso garantir um tiro certeiro e tudo isso acaba — eu já o venci uma vez, só preciso vencê-lo de novo!
Ele enfim encontrou o ponto vital de El Ratón, a nuca. Girou a bola entre suas mãozinhas, no objetivo de acumular velocidade para um lançamento efetivo. Os sons que o rato gigante emitia pareciam mais rugidos que qualquer outra coisa.
É tempo de redenção. Pulget pensou, apreciando a poesia daquele momento. Hoje paguei minha dívida, lutei a boa luta.
No momento em que ele disparou, Igor fez uma curva brusca, fazendo o homúnculo perder o equilíbrio e despencar da sua montaria. A trajetória da bolinha passou muito longe da nuca de El Ratón, encontrando seu destino final no fim do corredor.
As inconveniências sempre surgem nos momentos mais pertinentes, como de costume.
Pulget ainda estava se recuperando da queda, quando viu a enorme sombra preencher o pedaço de piso o qual se encontrava. Os olhos da fera roedor gigante clamavam por um banquete.
— SQUEAK! SQUEAK! — El Ratón disse, com o gutural triunfante de sua voz.
— Não mudou nada em seu ego, pelo que vejo — Pulget disse, se colocando de pé e ajeitando seu monóculo — eu sempre soube que as coisas sairiam do meu controle.
O rato o ignorou, avançando contra Pulget, que não se abalou. Logo, a bolinha rebateu em uma estátua no fim do corredor e retornou com força suficiente… assim atravessando a nunca de El Ratón.
O roedor gigante despencou para o lado, com os olhos vazios. Ainda fungou uma última vez antes de falecer. Pulget contemplou o inimigo caído, até ele desvanecer como fumaça.
Agora sei o porquê de Art ter me intitulado Rei Davi. O homúnculo pensou, orgulhoso de si mesmo.
Voltando a realidade, notou que estava sozinho no grande hall. Logo percebeu que fora tomado por alucinações, o que significava que os outros também deveriam estar em apuros. Preciso encontrar o corcel felino, é arriscado eu ficar andando no chão e ser pisado como uma peste, o quão desonrosa seria tal morte…
***
Aaron acelerava o máximo que podia para manter Rorschach à sua vista. O garoto tinha a vantagem de não estar correndo com um sobretudo coberto por utilidades alquimistas. Essa situação não era prevista. Se soubesse, as coisas seriam diferentes.
Já havia enfrentado toda sorte de inimigos, então decidiu que não comeria poeira para um adolescente.
Ele e o garoto subiam mais e mais escadas, dobrando vários corredores. Até o momento Aaron não fora despistado, logo o garoto se cansaria e não haveria outra opção senão enfrentá-lo.
— Desista, homem de vestes excêntricas, nunca entregarei a localização da passagem secreta — Rorschach gritou, claramente já ofegante pela carreira — o trato era passar pelo meu teste.
— O truculento aqui é você — Aaron gritou, conseguindo de forma espantosa, acelerar mais a corrida.
O jovem Rorschach arregalou os olhos, convencido de que o outro não desistiria. Então terei que jogar sujo!
Finalmente, ele adentrou uma sala ao invés de virar mais um corredor. Aaron não se animou tanto, sabendo que poderia ser uma armadilha.
O jovem havia entrado na sala 4, onde se localizava um dos artefatos mais populares do Museu: A Pedra de Roseta. Lá havia textos que foram cruciais para a compreensão de hieróglifos do antigo Egito.
Mas quando Aaron chegou ali, a sala estava inundada em um breu, sendo possível distinguir apenas algumas silhuetas dos artefatos ali presentes.
— Apareça, Rorschach — Aaron disse, com um leve tom de ameaça em sua voz — isso não precisa acabar do meu jeito.
— Meros disparates não me afetarão, homem de vestes excêntricas — ele ouviu sua voz, logo se voltando para de onde a ouviu.
Sem dificuldade nenhuma, encontrou a silhueta do jovem, encostado na parede norte da sala, que não parecia nenhum pouco preocupado.
Houve um silêncio entre os dois oponentes. Aaron estava aguardando a carta na manga de Rorschach. Nunca imaginou que o famoso psiquiatra fosse tão truculento.
— Nada me impede de neutralizá-lo agora — Aaron quis persistir na tentativa de resolver aquilo na conversa — então me diga, onde está a passagem secreta?
— Minhas manchas são feitas com meu sangue, o que produz esse efeito alucinógeno — o jovem mudou de assunto repentinamente — esse é o meu poder… espera, por que estou contando tanto?
Ele deve ter algum distúrbio. O alquimista concluiu.
— Ah, sim, sobre a passagem secreta — Rorschach continuou — eu já disse, precisa concluir o meu teste antes.
E de forma repentina, as luzes se acenderam, revelando diversas pinturas das manchas de Rorschach, seja na parede, no chão ou em qualquer um dos artefatos ali dentro.
— Agora você não tem opção, homem de vestes excêntricas! — o jovem psiquiatra mostrou um sorriso amarelo.
Maldição, eu não posso olhar. Aaron fechou os olhos por debaixo dos óculos escuros. Mas dessa forma eu fico vulnerável! Preciso deixar essa sala.
Desorientado, ele caminhou às cegas para onde ele imaginava ser a saída da sala 4. No fim havia realmente caído em uma armadilha, e sua tolerância para com Rorschach diminuído drasticamente.
— Aonde pensa que vai? — ouviu o oponente dizer, bem próximo — quantas vezes vou precisar repetir? Só vai sair daqui depois que concluir meu teste.
E dizendo isso, Rorschach desferiu um chute no rosto de Aaron, o pegando desprevenido. O alquimista caiu no chão, sentindo sangue escorrer pelo nariz. Pelo menos um dente seu havia sido quebrado e mesmo assim ele permaneceu com os olhos fechados.
— Abra logo esse olhos — Rorschach insistiu, agora com uma nota de raiva em sua voz — com esse teste, eu entrarei para a história da humanidade!
Aaron abriu só um pouco os olhos para descobrir que o jovem estava com um quadro na mão, apontado para o alquimista, onde uma de suas manchas estava desenhada. Espero que o que eu esteja pensando funcione, senão estamos perdidos.
Aaron então abriu os olhos, fitando com firmeza o estudante freudiano. Fingiu estar focado na mancha de Rorschach, só para dar tempo do espelho tridimensional se manifestar.
De forma engenhosa, Aaron projetou o espelho tridimensional na sua frente, mas de forma parcial, para que Rorschach não o notasse graças a sua transparência, enquanto que para o próprio alquimista ele visse apenas seu reflexo.
Se seu plano desse certo, em alguns segundos algo aconteceria…
— Espera, que diabos é isso? — Rorschach disse, claramente confuso — essa mancha… mas eu nem tô olhando pra nada, só para o homem de vestes excêntricas… O QUE, SOCORRO!
Como esperado, o feitiço se voltou contra o feiticeiro. O jovem freudiano começou a correr desnorteado pela sala, como se estivesse sendo perseguido por alguém invisível.
Já chega disso, o tempo tá passando.
***
Eu nunca pensei que morreria de infarto. Archie pensou, com o coração acelerado.
Ele havia conseguido uma lança de uma armadura histórica. A sala era grande o suficiente para ele conseguir manter uma distância da borboleta gigante, porém só a possibilidade de furar o inseto gigante e ver os líquidos viscosos dos seus órgãos vazando já lhe matava de nojo.
Merda, merda, eu nunca quis isso. Por que diabos isso te enoja tanto, Archie Becker?!
Assim o inseto avançou, vendo que o detetive estava cedendo em atacar. Archie disparou dali, pois o pior que poderia acontecer era a borboleta tocá-lo, isso ele não sabia dizer se aguentaria.
Como estava correndo no escuro, ele acabou colidindo de cara com um monolito ali posto. A dor foi lancinante, o fazendo cair. A lança deslizou no piso polido. Por um momento ele ficou desnorteado, mas só até sentir o que mais temia.
As patas do inseto se apoiaram em sua cabeça, bem como as asas que batiam freneticamente até enfim parar. Sentiu um arrepio de pânico por todo o corpo, era como se tivesse caído em uma banheira cheia de estrume. Uma sensação desagrável de forma absoluta.
Ele não conseguia nem pensar direito, apenas se desvencilhou, gritando, para longe do inseto.
— MEU DEUS, SOCORRO! QUE NOJO! MERDA!!!!
Ele ouviu o bater das asas lhe perseguindo. Não havia muito que pudesse fazer, ou terminava aquela nojeira de uma vez, ou sofreria para sempre. Eu acho que prefiro morrer.
Archie decidiu tomar uma decisão: assim que sentisse a lança cravando no inseto, ele a soltaria, assim não sentiria tanto nojo.
Ele então se jogou no chão, no objetivo de deslizar até a lança. Assim que ele a colocou em mãos, sentiu que o inseto estava próximo. Desligando o cérebro por completo, ele cravou a ponta da lança direto nos grandes olhos da borboleta, a fazendo grunhir de agonia.
No mesmo instante, soltou a lança e viu o inseto despencar, tendo seus últimos espasmos antes de falecer. Ele nunca se sentiu tão aliviado na vida, só naquele momento se dando conta de que estava coberto de suor.
E então vomitou, todas as últimas poucas refeições que fez durante a jornada até ali. Demorou alguns segundos para colocar tudo para fora, até ser capaz de raciocinar novamente.
Ufa, pensei que minha hora tinha chegado. Voltou a se lembrar do que o havia levado até ali. Merda, será que os outros foram atacados assim também? Preciso verificar.
***
— Hahahaha, ele não é de nada, não é, Richie 2? — Richie 1 riu alto.
— Não é? Hahahaha, ele realmente pensou que tinha chance — Richie 1 se gabou.
Paul estava caído, a alguns metros dos oponentes. Os Richies o acertaram precisamente, de forma covarde. Mesmo sendo mais forte naquela transformação, ainda não era páreo para os brutamontes.
Eu não posso perder agora. Paul pensou, se levantando, apesar da dor, ficando de joelhos. São só ilusões, eu não posso perder para ilusões!
Nesse momento ele lembrou como sempre foi fraco mentalmente. Nunca viu valor em si mesmo. Sempre se martirizou por não ser como Archie, mesmo sabendo que aquilo não mudaria.
Aquela jornada havia mostrado que ser forte nem sempre significava satisfação, pois teve que suportar muitas coisas horríveis. Mesmo assim, ele ainda era aquele mesmo garoto retraído e sem atitude, sem muitos amigos.
— Uma vez esquisito, sempre esquisito, HAHAHAHA! — Richie 1 disse, gargalhando.
Foi então que lembrou. Há alguns dias, quando foi encurralado pela Gangue do Quentin e Mary surgiu para salvá-lo, bem como suas palavras esclarecedoras:
“O senhor não deveria se comparar ao seu irmão, independente do que o seu pai diga. Archie é maravilhoso, a sua forma, e você, Paul, é incrível também. Um tem coisas que o outro não tem e vice-versa, e isso é completamente normal.”
Completamente normal. Paul se focou naquelas palavras. Eu devia ouvir mais o professor Pulget, ele não tem medo ser quem é, talvez eu devesse apenas me aceitar e lidar com isso.
Cerrando os dentes, o garoto se colocou de pé, mesmo instável. Se colocou em posição de combate, mostrando que não ia desistir tão fácil. Os outros precisavam dele e ele precisava dos outros para impedir todo esse caos.
— Ora, quer dizer não vai desistir, esquisitão? — Richie 2 perguntou, soprando os punhos em seguida.
Droga, eu não tenho um plano. Paul pensou, sabendo que apenas sua determinação não iria garantir a vitória. Se ao menos eu pudesse enfrentar um de cada vez…
— Não tema, Sir Paul — ele ouviu uma voz fanha, vinda do chão — eu irei me juntar em sua peleja, junto de meu corcel implacável.
Paul olhou para baixo e viu Pulget, que estava montado em Igor e segurava uma bolinha cromada na mão. Ele poderia ficar impressionado, mas antes tinha uma pergunta:
— Professor! Então o senhor consegue ver os dois Richies?
— Se está se referindo a esses roliços gigantes, sim — o homúnculo respondeu, parecendo mais sério que o habitual — as manchas que contemplamos naqueles quadros de leitura, nos fizeram ter provações vividas. Eu já venci a minha, então foquei na mancha a qual você estava diante, no intuito de ver seus algozes e poder ajudá-lo na provação.
Paul só conseguiu ficar boquiaberto. Não tinha palavras para descrever qual era seu sentimento naquele momento. Nunca pensou um dia que estaria lado a lado de seu filósofo favorito, menos ainda que lutaria ao seu lado.
Mas podia deixar as emoções para depois, no momento, haviam dois Richies bem irritados e sedentos por combate os aguardando:
— Professor, eu acabo com o da esquerda e o senhor com o da direita.
— Acordado, Sir Paul.
No mesmo instante, Richie 1 e Richie 2 avançaram. Paul ficou com o segundo, perdendo completamente o foco do professor ao precisar desviar de um golpe em cheio. Richie 2 quase despencou de tanta convicção que colocou no golpe, mas assim que notou seu erro, se virou com ferocidade para o garoto.
— Como ousa desviar do meu soco, esquisitão!
— Você é idiota por acaso, acha mesmo que alguém gosta de levar um soco seu? — Paul se orgulhou da sua provocação. Ele também poderia ser ousado do seu jeito.
Mais raivoso que nunca, Richie 2 avançou contra Paul, provando que era um touro ambulante. Mesmo assim, quase foi atingido pela investida do oponente. Deveria ter cautela ao pensar nos próprios passos.
— FICA PARADO, BECKER!
Paul decidiu tentar algo diferente, ao notar um detalhe. Richie 2 sempre corria com as pernas bem abertas, então em sua próxima investida, decidiu tentar algo arriscado.
E sem rodeios, o touro ambulante avançou.
Assim que ele estava na metade do caminho, Paul se jogou no chão liso, deslizando para debaixo de suas pernas. Por pouco, foi capaz de sair do seu caminho. Assim, rapidamente se colocou de pé e correu até suas costas.
Com um grito, Paul fincou suas garras de morcego nas costas de Richie 2… e não deu certo,
Nem sequer afundou, era como se tivesse apenas coçado. Droga, a gordura do seu corpo o torna resistente para ataques diretos.
— NÃO TENTE TRUQUES SUJOS! — o brutamontes número dois vociferou, desferindo um golpe contra Paul usando seu antebraço.
O garoto foi arremessado a alguns metros, com uma queda feia. Ele concluiu que só não havia sofrido mais danos graças a sua transformação. Se eu pudesse usar uma espada, eu duvido que ela não atravessaria esse cara.
Mas olhando para trás, ele encontrou uma oportunidade, graças a estátua “Hoa Hakananai’a”, um dos conhecidos moais removidos da Ilha da Páscoa. Como um touro que Richie 2 era, de certo avançaria direto para onde Paul estava.
Eu só preciso me jogar para o lado no último segundo.
— Fique parado, esquisitão — Richie 2 disse, já triunfante ao ver o garoto abatido — é o fim da linha para você. Deveria ter continuado na rua.
E dizendo isso, Richie 2 avançou, colocando toda a sua força naquela investida. Dessa vez ele fechou mais as pernas. Não havia para onde o garoto fugir.
Quando o brutamontes estava a dois metros de Paul, o garoto se lançou para a direita. Assim, o estrago foi feito.
Preocupado com o professor, o garoto se virou para ver como ele havia seguido a batalha… e Richie já estava no chão, com uma ferida circular na testa.
Quando Pulget notou o garoto o observando, fez uma tentativa de joinha com um dos seus quatro dedos. Paul sorriu, aliviado. Ele se voltou para Richie 2, que como esperado fora completamente nocauteado por Hoa Hakananai’a, logo desvanecendo como fumaça. Aquele era o fim da ilusão causada por Rorschach.
Certo, precisamos ver como Archie e o Sr. Schmidt estão.