As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 42
“Os símbolos, em semântica, são as analogias necessárias para perpetuar uma tradição, seja ele algo ou um indivíduo. Mas deixo a indagação: até que ponto devemos levá-los em conta?” – Pulget, o pequeno
O vestido da princesa acabou lhe caindo bem, por mais incrível que parecesse. Ele era branco, sem nenhuma manga ou bordado. Ela não precisava, muito menos queria mais do que aquilo.
Já havia derramado todas as lágrimas que tinha de derramar. A ficha já havia caído, ela sabia que Weezy não podia ser derrotado tão facilmente. Archie deve estar morto, Paul está a salvo… mas até quando?
Não enxergava motivos para pensar positivo. Ela devia estar morta, se não fosse a insistência da criatura em querer se casar. Mary foi obrigada a entrar naquele quarto real e colocar aquele vestido, no entanto, ela não tinha intenção nenhuma de consumar o casamento com o tirano.
O que faria no meu lugar, mamãe? Uma raiva súbita lhe tomou. Iria se casar com um monstro? Acha que assim ia conseguir algum resultado?
Ela fechou o punho, fazendo o máximo para se conter e não chamar a atenção dos sentinelas que estavam fora do quarto, a vigiando. Eu não sou a senhora, eu não preciso fazer isso, eu prefiro morrer!
Mesmo Weezy possuindo seu pai como refém, lembrou do que ele disse quando deixou a cela nas masmorras:
— Você não deveria ter feito tanto por mim, filha.
— Que história é essa, papai? — Mary perguntou, indignada — queria que o deixasse morrer por agir sem pensar?!
— Seu erro é achar que agi sem pensar — Maxwell a fitou. Ela nunca o viu tão sério quanto naquele momento — eu sou um policial aposentado, praticamente. Desde que virei capitão, eu não fiz mais nada, exceto rondas pelo bairro sem propósito algum. Eu detesto ver injustiças, na primeira oportunidade que eu puder agir, eu vou agir, mesmo que isso custe minha vida. Espero que tenha ficado claro. Nunca se sacrifique por mim, eu morreria por dentro se a visse sofrendo por minha causa.
Aquelas foram as palavras mais diretas e realistas que ela já tinha ouvido do pai. Por mais que não concordasse com aquele seu método, decidiu que respeitaria sua decisão, pelo amor que sentia por ele.
Se ele soubesse que Weezy quer se casar comigo, não gostaria que eu o fizesse apenas para mantê-lo salvo.
Mary já havia tomado sua decisão. Não havia mais esperanças, a realidade era clara, mesmo assim, ainda restava uma tentativa final. A esse ponto, Mary desconfiava das fraquezas de Weezy.
Por debaixo da saia longa, ela pôs sua adaga no coldre, sabia que não havia perigo. O ego da criatura era tão grande que provavelmente não via mais nada como uma ameaça. Mas eu preciso usar na hora certa.
Naquele instante, a porta do quarto foi aberta por um dos sentinelas. Nem sequer bateram para verificar se Mary já estava vestida. Mas ela não esperava tanta educação daqueles monstros de qualquer forma.
Quem entrou no quarto foi o gárgula, assistente fiel de Weezy. Ele vinha com um buquê de rosas na mão e uma carta.
— Srta. Robinson, trago-lhe um presente de milorde — o ser de pedra disse, entregando as rosas à garota — Milorde também solicita sua presença na sala real, então por favor, me acompanhe.
Mary refletiu sobre o motivo dele não entregar as flores pessoalmente, já que a convocou. Mas decidiu que preferia daquela forma, nem imaginando a expressão de nojo e desprezo que ela faria diante de qualquer gesto romântico da criatura.
Sem dizer nada, ela acompanhou o gárgula, sem sequer uma expressão simpática no rosto, já estava cansada de fingir. Ao cruzar a porta, sentiu o desconforto dos olhares dos sentinelas zumbis, chegando a ouvir o que eles sussurravam:
— Que mulher, hein!
— Estou vendo, olha esses cabelos, essa anca…
Felizmente logo se afastaram, pois ela estava a ponto de retornar e matar aqueles zumbis. Sua paciência ou qualquer senso de etiqueta já havia desaparecido naquela situação, só queria provar seu ponto, que nunca deveria se sujeitar a homens tão sujos para ter alguma regalia na vida. Eu não preciso tolerar isso, não mais.
Por isso, sustentava seu pensamento em Júlia Aurora e em todas as mulheres históricas que conhecia, que lutaram por sua dignidade e de suas semelhantes até o fim. Se eu morrer, que meu ódio ecoe bem alto antes.
Seguiram em silêncio pelos corredores sujos do castelo. Pelo visto, Weezy ainda não havia aprendido sobre a etiqueta higiênica dos nobres. Isso fez Mary deduzir algo que repudiou: a criatura provavelmente nem sabia o que era tomar banho.
Ela passou o restante do trajeto tentando deixar tais pensamentos, mas ao adentrarem a sala real, a visão do monstro de quase três metros sentado de costas não ajudou muito. Prestando um pouco de atenção, ela notou pequenos bichos se movendo por seus pelos.
Em seguida, notou o enorme estrago na parede, feito pelo cientista na primeira tentativa de derrotá-lo usando a tal mistura executora. Pelo visto, o tirano a usava para espiar os jardins.
— Aqui está ela, milorde — o gárgula avisou.
— Sente-se ao meu lado, minha querida — Weezy ordenou.
Querida? É sério isso? A garota pensou, indignada.
Notou que havia uma cadeira ao lado do trono. Quando Mary se sentou, a discrepância da altura de Weezy em relação aos demais se tornou ainda mais nítida. Até mesmo sua forma de sentar era diferente, dessa vez estava com a perna direita sobre o joelho esquerdo.
E como se não fosse o bastante, haviam dois charutos em sua boca. Mary já havia desistido de entendê-lo. Talvez Weezy fosse apenas limitado psicologicamente de alguma forma.
Ela não quis dizer nada, apenas ficando cabisbaixa.
— Por que não olha para a frente, minha querida?
Eu não sei se aguento ser chamada de querida por essa coisa tantas vezes.
A última visão da garota antes de ser levada pelos sentinelas era a de corpos serem descartados nos jardins, por isso decidiu manter a cabeça abaixada até o momento. Siga o plano, Mary.
E dizendo aquilo para si mesma, levantou a cabeça. Mas nem precisou viajar muito as redondezas com seus olhos para notar o que havia de diferente ali: o corpo do cientista chamado Victor Frankenstein, pregado no alto de uma cruz que se estendia a mais de cinco metros do chão.
— Por que… — ela soltou, perturbada com a imagem, pois há algumas horas havia falado com aquele homem.
— Que bom que perguntou, minha querida — um olhar de puro sadismo estava estampado no rosto do tirano — eu estava lendo sobre um tal de Jesus, que as pessoas acreditavam ser o filho de Deus. Uma lenda boba, pois eu sou o verdadeiro Deus, mas enfim, encontrei nisso um bom simbolismo. Pois se a morte de Jesus justificou esse deus como o salvador da humanidade, esse homem, me justificou como o ser supremo, o Deus invencível! HAHAHAHA!
Mary passou a mão por debaixo da coxa, sentindo o coldre onde sua adaga estava. O que não lhe faltava naquele momento era vontade de tentar, mas não o fez, lembrando que só havia um momento certo para a execução.
Fitou o corpo de Frankenstein, sabendo que aquele homem havia criado Weezy e se perguntando o quão diferente ele seria se a seita não o tivesse colocado em um pedestal de deus.
— Olhe para baixo agora, minha querida — Weezy a dispersou daquele raciocínio.
Olhando para o centro dos jardins, ela notou que vários sentinelas estavam preparando mesas, cadeiras e até um palco de madeira; além de muito bebida e uma decoração mal feita das flores dos jardins.
Ela sabia muito bem o que era aquilo: os preparativos do casamento. Mas decidiu não esboçar nenhuma reação. Weezy não ganharia nada dela, apenas seu ódio, no momento oportuno.
— Sabe… eu irei confessar, não irei mais me segurar — o gutural da voz de Weezy se tornou um tanto cômico, em sua tentativa de ser mais simpático — lhe acho a mais esbelta de todos os seres, como se fosse a minha própria imagem e semelhança. Por esse motivo a escolhi para ser minha noiva.
Ainda por cima é um maldito narcisista, por que não estou surpresa? Mary pensou, com deboche.
— Sim, és a mais linda entre as mulheres, nenhuma nunca ultrapassará sua beleza — o deus Weezy parecia nervoso ao dizer aquelas palavras, agora com três charutos na boca.
A garota continuou a ignorá-lo, apoiando o braço na cadeira e colocando a mão sobre a bochecha esquerda. Queria demonstrar ao máximo o tédio que sentia.
— NÃO VAI FALAR NADA, DROGA?! — Weezy explodiu, fechando o punho e esmurrando o encosto do trono.
Mesmo assim, Mary não reagiu, apenas bocejando em resposta. Era exatamente aquele o efeito que queria causar, provando para si mesma o quão frágil era Weezy, exatamente como um homem mimado quando não tinha o que desejava de uma mulher.
— Em breve você será a minha esposa, então é melhor começar a me tratar melhor, pelo bem do seu pai — Weezy esperneou, mas a garota continuou impassível — eu lhe reivindiquei daquele fracote que se dizia seu noivo, o matando, agora você pertence a mim! Espero que entenda isso.
Eu prefiro morrer que pertencer a alguém, quanto mais a um monstro estúpido que se acha um deus. Mary se segurou para não externar aquilo.
O que a impediu foram dois servos de Weezy entrando repentinamente na sala real.
— Milorde, milorde, terminamos o gâteau — um dos sentinelas, um zumbi trajado de chef, disse, balançando os braços.
— Podemos pôr esta obra de arte no tableau e levar para a cerimônia? — o outro cozinheiro disse.
— MAS É CLARO QUE SIM, SEUS IMBECIS — Weezy bradou, na hora expulsando os dois cozinheiros.
Assim, Mary conseguiu o que queria, fazer o tirano calar a boca. Weezy catou um livro qualquer do chão e começou a ler, com quatro charutos na boca, ocasionalmente olhando para Mary. Em determinado momento, ele começou a matar os insetos voadores que o rodeavam, após um deles tocar seu olho, incomodando sua leitura.
Já a garota, ficou observando a cerimônia sendo arrumada, até que de repente seis cozinheiros traziam consigo um bolo de pouco mais de três metros em uma tábua larga. Mary nunca havia visto um bolo tão grande na vida.
— Está impressionada com o tamanho do bolo, não é? — Weezy disse, para sua infelicidade — ele representa a grandeza que será nossa união, a minha grandeza!
Dessa vez Mary precisou se conter muito, para não cair na gargalhada. Pensou que talvez já tivesse enlouquecido por estar tempo demais naquele ambiente.
***
O quarteto e Igor estavam ao redor de Rorschach, que ainda agonizava da ilusão que estava tendo graças à própria mancha. O grupo esperou pacientemente, já que precisavam de uma informação dele.
— Isso que eu chamo de tiro sair pela culatra — Archie comentou, com os braços cruzados.
— O paradoxo da culatra me assola há anos — Pulget disse, pensativo, no ombro de Paul.
— Esse cara é realmente perigoso. Criar ilusões capazes de ferir é um poder e tanto — Paul disse, atônito.
— Que bom que era um tolo — Aaron olhava fixamente para Rorschach, pronto para interrogá-lo quando chegasse o momento.
Felizmente, logo o jovem freudiano pareceu voltar a si. Encarou os quatro oponentes com surpresa, retornando a sua expressão apática.
— Parece que vocês passaram no meu teste — Rorschach disse, suspirando e cruzando os dedos atrás da nuca, sem intenção de levantar — sendo assim, preciso cumprir o que prometi e lhes dizer onde fica a passagem secreta.
— É bom mesmo, camarada — Pulget expressou, materializando uma de suas bolinhas — senão terá uma pelota no núcleo de sua existência.
— Eu estava querendo cortar a parte das ameaças, elas fazem parecer como se estivesse fazendo isso por obrigação e não boa e autêntica vontade própria — Rorschach, ainda deitado, suspirou, apontando o dedo para o lado — a Pedra de Roseta, estão vendo?
O grupo se virou, observando o importantíssimo artefato histórico. Se questionaram onde diabos havia um botão secreto ou brecha para uma passagem secreta ali, até Rorschach responder:
— É só empurrar a pedra e um caminho no subsolo surgirá, junto de uma escada para descerem.
Os quatro olharam incrédulos para o jovem.
— Confiem em mim, só precisa de um pouco de força para empurrar.
— Por que haveria uma passagem secreta tão facilmente acessível aqui? — Paul questionou, atônito.
— Qualquer um poderia tentar empurrar e encontrar isso — Archie disse.
— A psiquê dos monarcas ou duques que escolheram essas passagens secretas é intrigante, não? Freud explica — Rorschach refletiu, agora fechando os olhos.
— Não importa, precisamos ir — Aaron os chamou — vamos, rapazes, empurrar esse negócio.
Com o esforço dos três, o pedestal do artefato se moveu. No fim, era um buraco tapado. Seu tamanho era suficiente para um adulto conseguir descer pelas escadas.
Sem rodeios, eles fizeram isso. Paul e Pulget, que foram os últimos a descer, olharam para Rorschach uma última vez. O jovem ainda estava deitado no chão, parecendo refletir sobre algo.
— Melhor não atrapalharmos seu monólogo interno, Sir Paul. Ele servirá para algo no futuro — o homúnculo disse baixinho.
Paul concordou e continuou a descer a escada de mão.
Quando estavam lá embaixo, Aaron ligou a lanterna. O pouco que eram capazes de observar, notaram que o túnel em que estavam era tão monótono quanto o da outra passagem secreta. Sendo assim, apenas seguiram o caminho reto em silêncio.
Archie se sentia ansioso. Logo estaria cara a cara com Weezy novamente, mas dessa vez seria a última, seja para o bem ou para o mal. Mas apesar de confiar em Aaron, tinha seus receios, o que o fez deixar uma alternativa perigosa, caso tudo desse errado. Isso se eu for capaz de fazer.
Após alguns minutos caminhando, chegaram ao fim do túnel, visualizando uma porta. Aaron tomou a frente para puxar a maçaneta, estando preparado para dar de cara com um inimigo.
Mas assim que entrou no novo ambiente, descobriu se tratar de uma adega. O local parecia abandonado, com poeira e teias de aranha para todo lado. Isso era o que menos importava, já que havia alguém ali, encostado na porta.
— Ah, é você — Aaron disse, quando ele e os outros já haviam entrado na adega.
— Vejo que conseguiram chegar até aqui sem muitos problemas — Damon disse, sútil como de costume — eu poderia dizer que estou impressionado, mas já o disse mais cedo.
— Qual é a sua? Estava esperando a gente? — Archie perguntou, com a cara fechada.
— Precisava garantir que não iriam causar alvoroço na chegada — o sacerdote explicou, seu olhar penetrante e tom calmo inquebráveis — depois do que fizeram, a segurança no palácio aumentou ainda mais, precisamos agir com cautela.
— Precisamos? Então somos realmente aliados? — Paul indagou.
— Por ora, pode se dizer que agir em grupo é a solução mais sábia. Mesmo sendo um falso deus, essa criatura é poderosa.
— E qual é o seu plano para derrotar ele? — Archie perguntou, com os braços cruzados, naquele tom de deboche.
— Não é pragmático eu revelar meus segredos — Damon respondeu — mas quando falharem, verão.
— Que cortesia, não vejo hora de falhar — Archie retrucou.
— Me acompanhem, aqui não é um lugar seguro para planejamentos.
Mesmo a contragosto, Archie e companhia seguiram Damon. Mas sem abaixar a guarda, pois ele ainda não parecia digno de confiança.
— Uma situação semelhante me ocorreu quando estava em minhas aventuras com Art — Pulget comentou, com a bolinha na mão — não abaixe a guarda, Sir Paul.
— Certo, professor.
Assim que deixaram a adega, descobriram que o corredor externo era ao ar livre, com a visão dos jardins surgindo. Além disso, havia dois sentinelas esqueletos desmontados no chão, provavelmente executados por Damon.
Mas ao caminhar um pouco, uma visão se tornou mais nítida, deixando Archie, Paul e Aaron em choque. O detetive foi até o parapeito, pelo impulso de ver melhor e verificar se era mesmo o que estava enxergando.
Maldito. Ele pensou, com um misto de ódio e tristeza, socando a superfície do parapeito com o punho direito.
Eles viram, a grande cruz erguida, e Victor Frankenstein pregado nela. Seu cadáver fora colocado de qualquer jeito, cabisbaixo, com os ferimentos feitos por Weezy expostos.
— Victor — Aaron disse baixinho, tirando os óculos.
Uma sensação horrível tomou conta de Paul, fazendo lágrimas caírem involuntariamente. Pulget ficou igualmente abalado, pois nunca lidou bem presenciando a morte.
Archie simplesmente não aguentou, se lembrando da história de Victor, do seu sonho, em como sua vida foi conturbada. Pensar que ele morreria de qualquer forma, graças ao destino imposto pelo paradoxo temporal, era ainda pior.
Mas naquele momento também se lembrou do último olhar que ele lançou a Archie, o misto de sentimentos conflitantes. Ele sabia que ia morrer, ele sabia que não tinha mais volta… mas não parecia decepcionado.
— Ele provou o seu ponto — Paul disse, se juntando a Archie, ainda com lágrimas nos olhos — no fim ele era, sim, um dos maiores cientistas que já viveu nessa terra. Weezy sabe disso, por isso o pregou numa cruz dessa forma, como um simbolismo.
— Sua leitura foi precisa, Sir Paul — Pulget disse, sério — ele foi pregado como um mártir. O tirano espera que lembrem quem o pôs em sua posição atual, por mais que fossem inimigos.
Archie continuou olhando. Não havia mais volta, mas ele havia feito uma promessa, que viveria mil vezes melhor pelo amigo. Mas, além disso, havia algo muito maior. O sonho de um homem, seu propósito…
— Não esqueçam — Archie disse, com uma expressão de determinação absoluta — Ele morreu com apenas uma coisa lhe faltando, e vamos cumprir isso. O que faremos essa noite, será em memória de Victor Frankenstein.