As Paredes do Céu Negro - Capítulo 17
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— Ai! — alguém grunhiu.
Essa pessoa era o homem que Enos tinha atropelado há cinco minutos. Escorado em um muro, sentado na calçada, o homem estava enfaixando a ferida na mão. Daniel acompanhava de perto, agachado ao seu lado.
— Você é bem precavido, moço. É bem inteligente da sua parte andar com esse kit de primeiros socorros na mochila.
— Hehe! É o dever do universitário estar pronto pra tudo, garoto! Um dia você vai entender essas palavras!
Então, o rosto de Daniel ganhou um ar sombrio.
— Eu sei que já falei isso antes, mas desculpa pelo que aconteceu! O meu pai acabou se distraindo por um segundo e você estava passando na faixa… Desculpa mesmo!!
Enos, que estava um pouco distante dali, ouviu o comentário e franziu a testa. O homem notou, mas não se queixou.
— Ei, ei, garoto, tá tudo bem! Sério mesmo! Foi só um cortezinho na mão, isso acontece com todo mundo. Nem você nem o seu pai precisam se preocupar com isso. Sério!!
O garoto não sabia o que sentir a respeito da situação. Para piorar, o seu próprio pai não estava se importando nem um pouco com o estado do homem que atropelou. Mesmo tendo sido apenas um “toque bruto”, ele ainda se ferira com o para-choque do carro, um pequeno corte se abriu na palma da sua mão esquerda.
Daniel olhou na direção de Enos, um olhar consternado no rosto. Ele não acreditava no que estava acontecendo. Por algum motivo, Enos, o causador do acidente, estava agindo como se fosse a vítima. Os braços cruzados e a distância do ferido só evidenciavam sua indiferença. Era vergonhoso na mesma medida que era incomum.
Daniel se lembrava do que ele disse poucos segundos após o acidente. Diante de alguém que poderia ter se ferido gravemente, aquela reação deveria ser a menos provável.
— O quê? Tem alguém ali! Batemos em alguém! Precisamos descer, papai!! — gritava desesperado.
Quando ele tentou abrir a porta para sair do carro, Enos o barrou com uma das mãos. Seu rosto aparentava frieza, mas tinha um fundo de confusão.
— Vamos esquecer isso. Vai, precisamos abastecer o carro pra ir ao shopping.
Ele não pôde acreditar no que Enos disse. Se não fosse o momento de distração criado pelo silêncio entre eles, Daniel sequer conseguiria sair do carro e ir até o ferido.
Voltando-se para o homem à sua frente, o garoto analisou a sua mão esquerda.
— Você a enfaixou bem rápido — disse.
O homem sorriu com orgulho.
— Eu não brinco em serviço! — respondeu. — Obrigado pela ajuda, garoto. Foi muito gentil da sua parte parar pra ver como eu estava.
— Não fiz mais do que a minha obrigação.
O homem alargou o sorriso, rindo de leve. Ao contrário do brutamontes a alguns metros dali, o pequenino tinha um coração de ouro.
— Então, qual é o seu nome?
— Uh? M-Meu nome é Daniel, e o seu?
Antes de responder, o homem se reergueu do chão e limpou a poeira das roupas com as mãos. Oferecendo uma delas ao menino, levantou-o também.
Daniel analisou mais atentamente a aparência daquela pessoa. Era muito magro, talvez na casa dos sessenta quilos, e também não era muito alto. Sua pele pálida contrastava com os cabelos negros e lisos que escorriam até a nuca. Pequenas sardas marrons saltavam nas bochechas, produzindo uma cor mais escura naquela região do rosto. Quanto às roupas, vestia um moletom verde-escuro leve e calças pretas.
O mais surpreendente não estava na indumentária. Na verdade, localizada no pescoço, havia uma tatuagem um tanto peculiar. Um par de cobras com escamas tão vermelhas quanto o fogo enrolava-se no pescoço dele, como se o enforcassem. O desenho era extremamente detalhado, por isso Daniel se sentiu acuado ao olhar para a tatuagem.
— O meu nome? — o homem disse de forma retórica. — Eu me chamo Cássio. É um prazer te conhecer, pequeno Daniel.
Cássio estendeu um aperto de mão ao menino, que não relutou em aceitar.
— Se não for incômodo, qual é o nome do grandalhão ali?
Enos rangeu os dentes ao perceber que falava de si. No entanto, não abriu a boca para dizer nada.
— Ah, bom, érrrr… — Daniel estava envergonhado com a atitude do pai. Mesmo assim, prosseguiu: — O nome dele é Enos. E ele é o meu pai.
— Bom, filho é que não seria com esse tamanho!
Cássio riu sozinho.
— Oh, desculpem os meus modos — tornou a falar, agora mais sério. — Enfim, agora já está tudo bem comigo! Eu agradeço a ajuda, pequeno Daniel, mas preciso resolver algumas coisas. Falou!!
Cássio sentiu alguém segurá-lo pelo moletom assim que começou a andar para longe.
— Pequeno Daniel? — perguntou, confuso.
— Se não for pedir demais, eu e meu pai gostaríamos de te dar uma compensação, senhor Cássio. Que tal comer alguma coisa com a gente? — sugeriu ao mesmo tempo que fuzilava o pai com o olhar. Enquanto para Cássio era um convite, para Enos era uma imposição.
O universitário alternou o olhar entre pai e filho algumas vezes, refletindo sobre a sua próxima decisão. O olhar furioso de Enos o dizia para pensar muito bem no que estava para fazer.
— Eu acho melhor nã…
— Pai — a voz firme de Daniel soou.
Enos foi surpreendido pelo chamado. Então, aguardou o que viria.
— O senhor Cássio está convidado pra comer conosco, não está? — perguntou em tom de ameaça, sem se preocupar em esconder as intenções.
Enos não pôde deixar de ficar incomodado. Porém, como era um pedido do seu estimado filho, ele se sentia na obrigação de acatar.
— Vamos a uma padaria que eu conheço. É perto daqui.
Ouvir a voz daquele grandalhão pela primeira vez alertou o instinto de sobrevivência de Cássio. Se ele não estivesse presente desde o início, até poderia parecer uma frase comum, mas o teor oculto de raiva estava totalmente direcionado a ele. Era horripilante, no mínimo: um homem adulto de vinte e sete anos intimidando um universitário magrelo de dezoito ou dezenove anos.
— Então tá decidido! Vamos! — Daniel caminhou a passos rápidos até o carro, aguardando que Cássio o seguisse.
Antes de ter a chance de caminhar até o carro, Cássio sentiu algo errado nos seus arredores. Olhou para o grandalhão de antes e percebeu o problema. Agora fora do campo de visão do filho, Enos o ameaçava mais abertamente com os olhos gélidos de um predador encarando a pobre presa. Ele sequer tentava disfarçar sua hostilidade.
Só o pensamento de estar no mesmo carro que aquela pessoa o fazia suar frio.
“Eu vou morrer!!”