Caçador de Feitiços - CAPÍTULO 0 - PRÓLOGO: ATÉ BRUXOS...
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— O que está acontecendo? — questionou um homem de cabelos grisalhos, enquanto
sutilmente coçava sua barba.
— Ah, que bom que chegou cedo, está prestes a iniciar a execução. — Um outro homem
respondeu, desta vez alguém que parecia ser importante, talvez um membro da alta cúpula
do ministério da justiça?
— Que interessante! Aliás, qual o seu nome?
— Sir Wallace Rodson, é um prazer conhecê-lo meu caro. — Estendeu sua mão em um
gesto de cumprimento, — e quanto ao seu?
— Meu nome é Frederick, da casa Coldrin, o prazer é todo meu. — E logo retribuiu o aperto
de mãos.
Os dois homens conversavam em completa harmonia, aguardando o momento em que a
pena seria aplicada ao infeliz condenado, que se mantinha imóvel como uma estátua, em
silêncio absoluto, ciente de que não veria o céu estrelado naquela noite. O dia estava
consideravelmente quente, afinal, era verão, e o sol brilhava como nunca antes.
Finalmente, a hora marcada chegou. O homem condenado à decapitação, por um motivo
que nem mesmo os habitantes que presenciavam sua punição conheciam, subiu as
escadas do palco na praça dos algozes. Foi ali, vinte anos atrás, que o então governante
daquela cidade foi assassinado por cinco indivíduos nunca identificados;
Cinco flechas foram disparadas. Agora, no presente, um homem seria morto não por
flechas, mas acorrentado por cinco grilhões de metal, revestidos com óleo de flor-de-Dália,
antes de sua cabeça rolar ao chão.
— Hum, então essa é a sensação de quando estamos prestes a morrer… — disse o
condenado, com um leve sorriso de alívio, embora triste por dentro.
— Cale-se, você não tem nenhum direito de fala — coagiu um dos executores.
— Entendi, me perdoe.
À medida que ele dava mais passos em direção ao seu fim, as pessoas ficavam em
completa euforia para finalmente encarar o rosto daquele homem. Quando, enfim, ele se
revelou, viram um homem magro, tão magro que era difícil entender como ele ainda estava
de pé. Seus olhos refletiam um escarlate puro, algo raro naquelas bandas, e seu rosto
assemelhava-se ao de uma mulher.
As pessoas que presenciavam a execução começaram a cochichar entre si, comentando
sobre a aparência incomum do condenado. Logo, a suspeita se espalhou pela multidão:
aquele homem deveria ser um bruxo.
Seus olhos de cor escarlate, culturalmente associados à magia, e sua figura andrógina reforçavam as suspeitas de que ele não era uma pessoa
comum.
Um burburinho crescente tomou conta da praça até que, de repente, um nobre se destacou
no meio da multidão, avançando em direção ao palco. Sua presença impunha respeito;
vestia um manto luxuoso e uma espada pendia de seu cinto, refletindo a luz do sol. Quando
chegou ao centro do palco, ergueu a mão, pedindo silêncio, e a multidão rapidamente
obedeceu.
O nobre, com uma voz firme e autoritária, começou a falar:
— Cidadãos, hoje é um dia em que a justiça será feita. Este homem, diante de vocês, é um
bruxo, praticante de artes obscuras e inimigo de nossa sociedade. Suas ações nefastas
ameaçam a paz e a segurança de todos nós. Foi decidido pelo conselho que ele não pode
mais viver entre os homens de bem. Sua magia não terá mais poder sobre nossas vidas.
Ele foi condenado justamente, e agora será entregue aos carrascos para que a execução
seja realizada. Então, eu, Lorde Marcus Starling, o condeno, homem sem nome, a morte
por decapitação.
Com essas palavras, o nobre deu um passo para trás, acenando para os carrascos que
esperavam nas sombras. A multidão, ainda em silêncio, observava atentamente enquanto
os carrascos se aproximavam do condenado, prontos para cumprir a sentença.
Enquanto o nobre se afastava, as pessoas na multidão começaram a sussurrar umas para
as outras, absorvendo suas palavras e a iminência do espetáculo macabro.
— Eu sabia que havia algo de errado com ele — murmurou uma mulher de meia-idade,
ajustando seu xale. — Aqueles olhos escarlates… Nunca vi nada parecido.
— Dizem que os olhos de um bruxo ficam vermelhos de tanto ver sangue derramado —
comentou um homem ao seu lado, balançando a cabeça. — Esse aí deve ter feito coisas
terríveis.
Um jovem, curioso, inclinou-se para a frente, tentando ver melhor o condenado. — Será
que ele vai gritar quando a lâmina cair? — perguntou com um sorriso ansioso.
— Bruxos não gritam. Eles amaldiçoam com seus últimos suspiros — respondeu um velho,
com uma voz rouca. — É por isso que tapam a boca deles antes da execução. Para impedir
que lancem uma praga.
Enquanto o murmúrio da multidão crescia, os carrascos se aproximavam do condenado,
que agora estava ajoelhado. As correntes de flor-de-Dália que prendiam suas mãos e pés,
eram capazes de neutralizar efeitos mágicos, o homem foi preso firmemente a um tronco de
madeira. Um dos carrascos, vestindo uma túnica escura e capuz, segurava um pano grosso
em mãos, pronto para amordaçá-lo.
O condenado levantou a cabeça, seus olhos escarlates varrendo a multidão. Por um breve
momento, pareceu que ele tentava gravar na memória os rostos de cada um ali presente.
Em seguida, fechou os olhos e murmurou algo ininteligível, que soou como uma prece ou
talvez uma maldição final.
Enquanto os carrascos se preparavam para abate-lo, o bruxo manteve os olhos fechados.
Em sua mente, pensamentos se entrelaçavam, num último desejo de paz.
“Eu nunca quis isso,” pensou ele, sentindo o peso da resignação sobre os ombros. “Tudo o
que eu desejava era uma vida simples, uma vida onde pudesse caminhar pelas ruas sem
que as pessoas se afastassem, com medo de mim. Nunca quis ter esses olhos. Nunca quis
que eles me vissem como um monstro. Só queria ser… normal.”
Ele recordou os poucos momentos de alegria em sua vida, as raras ocasiões em que fora
tratado como qualquer outra pessoa. “Se ao menos eles pudessem entender… Não sou
diferente deles, não deveria ser condenado só por existir. Talvez, um dia, o mundo mude.
Talvez, um dia, não haja mais condenações por sermos quem somos.”
Enquanto esses pensamentos inundavam sua mente, ele sentiu uma onda de tristeza
profunda. Sabia que não viveria para ver esse mundo de aceitação, mas ainda assim, a
esperança brotava em seu peito, como uma pequena chama que se recusava a apagar.
Uma única lágrima deslizou pelo seu rosto, brilhando sob o sol. A gota escarlate, misturada
à cor dos seus olhos, rolou devagar até o queixo e caiu ao chão, desaparecendo na poeira
da praça.
A multidão, ao vê-lo com os olhos fechados e os lábios se movendo ligeiramente, tomou
seus gestos como uma maldição silenciosa. Sussurros de medo e indignação corriam entre
eles.
— Vejam, ele está tentando amaldiçoar-nos mesmo agora! — exclamou alguém, a voz
carregada de pavor.
— Não olhem para ele! — gritou uma mulher, virando o rosto. — Fechem os olhos ou ele
poderá enfeitiçá-los!
Os murmúrios aumentaram, e a tensão na praça cresceu, enquanto o bruxo, alheio aos
julgamentos e condenações, permanecia imerso em seu mundo interno de saudades e
anseios.
Mas… quem disse que bruxos não choram?
Quando o machado finalmente caiu, e sua vida foi arrancada num instante, o silêncio se
abateu mais uma vez.
A lágrima na poeira era a última lembrança de que, por trás dos olhos escarlates e da
aparência incomum, havia um ser humano, com sonhos e desejos tão simples quanto os de
qualquer outra pessoa.
Aplausos, foram os únicos sons ouvidos naquele momento, aplausos de pessoas que eram
manipuladas, coagidas e levadas a pensar daquela forma. Talvez elas nem sejam cruéis de
fato, apenas pessoas e pessoas podem ser controladas.
ENQUANTO ISSO: EM DOMINUS CASTLE
Na capital real de Brystal, duas figuras se encontravam na sala do trono, envoltas em uma
conversa carregada de tensão. O imperador Jasper Newgrace, sentado em seu trono de
mármore, observava com atenção a figura à sua frente. Vestindo uma armadura reluzente e
um manto branco com bordados dourados, a figura — líder dos Paladinos e da religião
oficial do reino — mantinha o rosto oculto sob um capuz, revelando apenas os olhos
brilhantes e penetrantes.
— Majestade, as execuções continuam conforme vossa ordem — disse a figura, a voz
calma e autoritária ecoando pela vasta sala. — A purificação do reino é essencial. Os
bruxos representam um perigo constante e insidioso. Se queremos proteger nosso povo,
precisamos erradicar essas abominações.
Jasper, com uma década de reinado, inclinou-se ligeiramente para a frente, o rosto
assumindo uma expressão de preocupação cuidadosamente ensaiada. Por trás de seus
olhos calculistas, ele ponderava sobre os impactos políticos de suas ações.
— Entendo sua posição — respondeu Jasper, adotando um tom grave. — Mas as
execuções têm gerado inquietação. O descontentamento cresce entre o povo, e não
podemos ignorar os rumores de rebelião. Além disso, os reinos vizinhos, embora não
compreendam completamente a ameaça dos bruxos, observam o que consideram um
excesso de brutalidade. Sem mencionar os bárbaros do norte, que se tornam cada vez mais
ousados. Precisamos ser cautelosos para não perder aliados valiosos.
A figura, impassível, deixou que um silêncio significativo preenchesse o espaço antes de
responder, com uma leve nota de desafio na voz:
— Majestade, são os impostos exorbitantes que causam descontentamento, não a nossa
luta contra os bruxos. O povo clama por segurança, e é isso que oferecemos. Quanto aos
reinos vizinhos, posso garantir que, se eles compreendessem a verdadeira ameaça, nos
apoiariam incondicionalmente. Devemos guiá-los, mostrar-lhes a importância da fé e da
pureza. O caminho da compaixão é o caminho da fraqueza.
Jasper apertou os punhos, ocultos pelas dobras de seu manto, mas manteve a expressão
de serenidade. A figura sempre sabia como atingir seus pontos fracos, como questionar seu
controle sobre o reino sem nunca levantar a voz. Jasper sabia que os Paladinos eram um
poder à parte, respeitados e temidos. Contudo, ele precisava manter a ilusão de autoridade.
— Talvez… — disse Jasper, medindo suas palavras. — Se pudermos controlar os bruxos,
trazê-los ao nosso lado, poderíamos não só aplacar o descontentamento, mas também
fortalecer nossa posição frente aos reinos vizinhos e aos bárbaros do norte. Imagine o
poder de ter esses seres ao nosso serviço, ampliando nosso alcance. Seríamos a nação
mais poderosa do mundo.
Os olhos da figura brilharam por um instante, como se um lampejo de impaciência cruzasse
seu olhar.
— Com todo o respeito, Majestade, isso é um risco que não podemos correr. Bruxos são
intrinsecamente corrompidos pelo poder que possuem. Eles nunca se submeterão
verdadeiramente. Usá-los seria como convidar a serpente para o berço. Não devemos comprometer nossa fé por uma ilusão de poder temporário. Nosso dever é purificar, não negociar.
Jasper sentiu o calor subir ao seu rosto, a frustração ameaçando romper sua fachada de
calma. Ele sabia que a figura não o temia, que havia sobrevivido a muitos reis e
imperadores antes dele. Mas Jasper também não podia ceder facilmente.
— A fé é importante, claro — disse Jasper, tentando recuperar o controle da conversa. —
Mas meu dever é com o reino, com seu poder e estabilidade. Devemos encontrar um
equilíbrio. Talvez possamos fazer algumas concessões, ajustar os impostos para aplacar o
povo, ao mesmo tempo em que continuamos a nossa campanha contra os bruxos. Mas
precisamos ser inteligentes, estratégicos. Não podemos nos dar ao luxo de perder o apoio
do povo e dos aliados.
A figura ficou em silêncio por um momento, a sala pesada com as palavras não ditas.
Finalmente, falou:
— Majestade, é sábio buscar equilíbrio, mas não às custas da segurança do reino. A fé nos
guiará, e os Paladinos estão prontos para seguir vossas ordens, desde que estas não
comprometam a pureza de nossa missão. Cuidai para que vossa busca por poder não vos
leve à destruição.
A figura manteve seu olhar fixo no imperador por um instante a mais, um silêncio tenso
preenchendo a sala. Finalmente, sem dizer mais nada, deu meia-volta e saiu em silêncio
pela grande porta dupla, seus passos ecoando suavemente sobre o piso de mármore.
Jasper observou a figura desaparecer nas sombras do corredor, sentindo um frio estranho
percorrer sua espinha. Mesmo sendo o imperador, ele sabia que sua posição não era tão
segura quanto gostaria.
Com a saída da figura, o peso da sala pareceu aliviar, e Jasper soltou um suspiro contido.
Ele se levantou do trono, caminhando até uma das grandes janelas que se abriam para a
vasta extensão de seus domínios. A visão de Brystal, brilhando sob o sol da manhã, era
grandiosa, mas o imperador não conseguia se livrar da sensação de inquietação que
crescia dentro dele.
E tudo isso aconteceu há duzentos anos.
Hoje, o reino de Brystal é bem diferente. Dominus Castle continua a erguer-se majestoso no
coração da capital, mas os tempos mudaram. Bruxos e suas artes sombrias são agora
apenas histórias de fogueira, contadas por anciãos para assustar crianças. Alguns
acreditam nas lendas, outros as descartam como mitos ultrapassados. A Inquisição e as
caças aos bruxos se tornaram uma memória distante, ofuscada pelo brilho da modernidade
e pelas preocupações cotidianas.
Mas a figura ainda está de pé.
Testemunhou os séculos passarem, as dinastias surgirem e caírem, e o mundo mudar ao
seu redor. Os olhos da figura ainda brilham com a mesma intensidade,
observando sociedade que uma vez buscou purificar. O trono pode ter mudado de mãos, os costumes
podem ter evoluído, mas a figura continua em seu caminho, firme em sua fé inabalável.
E enquanto o fogo das lendas bruxuleia e ameaça apagar-se, um pensamento persiste nas
mentes dos que ainda se lembram. Se os bruxos realmente existiram, como os livros
antigos dizem, e se foram caçados até a extinção, então por que, às vezes, à noite, as
sombras parecem mover-se com uma vida própria? Por que, em certos lugares esquecidos,
ainda se ouvem sussurros de feitiços antigos?
E a pergunta, sussurrada nas horas mais escuras da noite, não deixa de atormentar?
ESTÃO SE ESCONDENDO?