Carnaval no Abismo - Capítulo 4
Sem sombra de dúvidas, a capacidade de mentir é o que nos torna superior a todos os outros animais racionais.
A facilidade que temos para enganar, ludibriar, fingir e esconder sentimentos são dádivas incríveis que nascem conosco e evoluem conforme o passar do tempo. Fingimos choro, guardamos segredos e utilizamos a nossa astúcia para conseguir os brinquedos que queremos. Ficamos mais espertos, fortes, cruéis. E quando finalmente chegamos à fase adulta, nos tornamos monstros descontrolados que usam a mentira como válvula de escape para tudo. Se brincar, todas as nossas frases e ações no dia a dia possuem algum objetivo oculto, visando apenas o benefício próprio.
Discorda da minha opinião? Então que tal fazermos um breve teste para prová-la?
Suponhamos que um mendigo te pare no meio da rua pedindo alguns trocados. Por acaso, você o ajudará com a mais pura das intenções, sem esperar receber absolutamente nada em troca?
Eu, particularmente, duvido. Você o fará por dó, buscando tirar um peso da consciência. Ou pior ainda! Apenas para se livrar dele o mais rápido possível! Aposto que sequer guardará o rosto dessa pessoa na memória por mais de dez minutos.
Só não pense que estou te julgando por isso, tá? Afinal de contas, eu e todos os outros também agimos do mesmo jeito. Com nossas mãos porcas, ousamos colocar uma aureola brilhante sob as nossas cabeças e fingimos sermos anjos. Mesmo que não terminemos com os nossos rostos estampados em matérias jornalísticas ou em postagens nas redes sociais, já ficamos satisfeitos o suficiente com o simples fato de podermos falar para nós mesmos: fiz a minha boa ação do dia!
Isso acontece porque somos criaturas excessivamente nojentas, tanto por fora quanto por dentro. O ponto mais extremo do egoísmo, o cúmulo da podridão. Seres horríveis que nunca hesitam antes de tirar vantagem dos, igualmente horríveis, mais infortunados em busca de sentir o prazer de um orgasmo cerebral. Nos lambuzamos em atos falsamente altruístas com o intuito de ganhar um lugar no Paraíso.
Ou vai me dizer agora que aquele dinheirinho que você joga na cestinha da igreja não tem o objetivo secundário de comprar uma cadeira próxima de Deus para poder assentar o seu traseiro fedido?
Hump. Não sei quais são as regras lá de cima, mas fingir humildade, tecnicamente, também se enquadra na categoria “mentir”. E, consequentemente, apenas te deixa um passo mais perto de agonizar nas profundezas do Inferno. Por isso, fica esperto.
— A história da humanidade não passa de uma longa novela escrita por um sadomasoquista maluco que contratou apenas vilões para atuarem em uma comédia dramática. — Dei um longo suspiro e levantei uma sobrancelha. — Ué? Por que estou discutindo comigo mesma sobre um assunto tão aleatório mesmo?
Provavelmente, é o tédio agindo. Eu tenho esse maldito hábito de ficar pensando baboseiras quando fico entediada.
— Já tem o quê? Cerca de uma hora que estou trepada aqui em cima? Meu bumbum tá doendo.
Não são nem seis da manhã, mas o Sol já está alto o suficiente para fazer todo o cenário que me cerca brilhar num tom alaranjado.
Normalmente, agora eu estaria curtindo o auge do sono. Ou, quem sabe, indo dormir após maratonar alguma série aleatória. Porém, no dia de hoje, abri mão de tudo isso para poder me pendurar na grande árvore que fica ao lado do dormitório do colégio.
O que estou fazendo de tão importante?
Basicamente, pescando.
E como diabos vou pescar algo em um local que sequer possuí um lago?
Então, é que neste caso em especial, estou procurando um peixe que tem o corpo de uma modelo e a capacidade de respirar fora d’água.
— Oh! E lá vem ela, desfilando toda elegante pelo seu habitat natural.
A diretora Melissa observa o horizonte com seus olhinhos cheios de paixão. Inspira e expira profundamente procurando absorver toda a energia que apenas o nascer do Sol pode propiciar.
Mal sabe ela que a sua predadora está à espreita, chacoalhando a calda freneticamente, prestes a dar o bote.
— Te peguei!
Com uma jogada de mestre, a tarrafa lançada caiu sobre o corpo dela. Em seguida, pulei do galho, enrolei as suas coxas com uma corda e dei um nó firme, anulando qualquer possibilidade de escapatória.
— Mas que porcaria é essa?! Solte-me, sua doida!
— Economize a saliva, criatura selvagem! Ninguém aparecerá para te salvar de mim.
Comecei a puxá-la rumo à parte de trás do prédio, onde se encontra o almoxarifado. Assim que entramos, tranquei a porta e escondi a chave no decote do meu terninho.
— Finalmente, estamos à sós. — Falei com um tom travesso.
— Qual é o significado do ataque?! Enlouqueceu de vez?!
— Não se finja de idiota! Você provocou tudo isso! É sua culpa!
— Minha?!
— Óbvio! Nos últimos dias, você tem corrido de mim feito um deputado com dinheiro na cueca fugindo da Polícia Federal! Por um acaso, tem noção do quanto me fez sofrer durante esse tempo?! — Enxuguei uma lágrima que se formou no canto do meu olho esquerdo. — Desde o nosso primeiro encontro, não consigo parar de pensar em você! Já não me alimento direito, durmo ou cumpro corretamente com os meus deveres de tutora! Pareço uma fumante compulsiva num universo sem cigarros!
— E-e-eu n-não estava f-fugindo! A-apenas estive muito ocupada com o trabalho e…
— Não me venha com desculpas esfarrapadas! Pra começo de conversa, foi você que penetrou o meu corpo sem permissão! Agora, é seu dever assumir a responsabilidade por esta semente que está crescendo dentro de mim.
Acariciei a minha barriga e dei um sorriso maternal.
— Não me lembro de ter plantado nada em você!
— É o quê?! Não me diga que já se esqueceu do rala e rola especial no chão daquele boteco que fedia a vômito?! — Fingi uma expressão de espanto. — Se sim, permita-me relembrá-la.
Aproximei o meu nariz do pescoço dela e dei uma longa fungada.
Ah, sim… Este perfume…
É como se um pedaço do Paraíso estivesse preenchendo o meu interior. Um cheiro mais alucinógeno e viciante que qualquer droga.
— Uaa…! E-espere um pouco…! — Melissa gemeu e se contorceu. — N-não fa-faça isso…! Uh…!
Sem dar ouvidos, toquei o pescoço dela com a ponta da minha língua. Imediatamente, o sabor mágico me fez revirar os olhos. Sinto como se eu não pudesse mais viver sem sentir o gosto dela.
— Você é tão… deliciosa!
— Fuaa…! — Ela deu um gemido ainda mais sensual que o anterior, fazendo-me arrepiar até os cabelos da… — Solte-me…! Estou… implorando…!
— Você diz isso, mas sequer está fazendo força para se libertar. Tem certeza que não está adorando este momento tanto quanto eu? — Recebi o olhar de um animal fofo encurralado. — Hoje, você me pertence.
No instante em que assoprei a orelha direita dela, aconteceu novamente. O corpo da Melissa explodiu, liberando uma densa nuvem de fumaça branca que nublou completamente a minha visão.
— Finalmente…
E quando essa nuvem se dissipou, notei que a magia tinha sido desfeita.
Todas as curvas sedutoras e pele sedosa dela desapareceram, sendo substituídas por um formato oval e textura crocante. O cheiro peculiar do seu corpo se intensificou tanto que apagou até mesmo o forte odor dos produtos de limpeza que nos cercam.
Diante dos meus olhos, encontra-se a verdadeira diretora. Uma coxinha maior do que eu com pernas finas feito gravetos e grandes olhos verdes esbugalhados. No entanto, diferente da primeira vez, agora estou mentalmente preparada para lidar com tamanha anormalidade. Na real, pode-se dizer que esperei ansiosamente por isso feito uma criancinha acordada de madrugada aguardando a chegada do Coelhinho da Páscoa.
— Você é… deslumbrante.
— Deslumbrante…? Não está com medo de mim…?
— Deveria estar? — Sorri. — Pode ficar despreocupada. Eu nunca teria medo de um ser tão intrigante.
Os olhos dela brilharam como se fossem dois diamantes. Suas bochechas coraram ainda mais. Melissa está genuinamente surpresa com o fato de existir alguém que não sente nojo da sua aparência.
Uaa… Estou me segurando tanto para não dar uma grande mordida nela! Quero descobrir qual é o sabor do seu recheio!
— Ué? O que é aquilo?
De repente, a diretora mudou de assunto, quebrando o clima.
— Obviamente, um objeto voador não identificado.
Na verdade, está mais para um drone que invadiu o cômodo usando a pequena janela no alto.
— Objeto voador…?!
Em estado de choque, o queixo da Melissa caiu no chão e suor frio começou a escorrer pelo seu rosto imenso. E essa expressão ficou ainda mais exagerada assim que rajadas de flashes vindas do objeto nos cegaram.
Espero que o nosso momento íntimo esteja sendo registrado em alta qualidade, pelo menos…
— Uma câmera! Aquilo tem uma câmera!
— Sim, sim. Notei isso também.
— E agora está indo embora… Não, não, não! Parado aí! Volte agora mesmo!
Com apenas um movimento desesperado, a diretora rasgou a rede que a prendia como se fosse feita de papel e correu atrás da câmera indiscreta. Porém, todo esse esforço foi inútil. O drone a driblou com extrema facilidade e deixou o almoxarifado pela mesma rota que usou para entrar.
Desolada, Melissa caiu de joelhos. Parece até uma esposa que acabou de encontrar o marido saindo de um motel barato com outra.
— Não fica assim. São apenas fotos.
— Você não consegue entender?! Alguém acabou de registrar a minha verdadeira face! O que acha que vai acontecer se ela vazar?! Será o fim da minha carreira profissional!
— Oxe? Eu jurava que todos já sabiam.
— É claro que não! Como diabos eu conseguiria gerenciar uma instituição desta magnitude tendo uma aparência tão bizarra?!
— Bem, naquele momento, no barzinho, você não pareceu se importar quando se transformou na frente da representante de classe.
— Apenas porque Lorena é minha tataraneta!
— Espera aí?! Tataraoquê?! Quantos anos você tem?!
A diretora deu um grande sorriso sofrido. Lágrimas começaram a correr sem controle, completamente devastada.
— Ah, ferrou… Perdi tudo… É o fim do Isana Ágora…
— Mas que merda, eim? Realmente, uma peninha. Enfim, foi muito legal trabalhar com você. Agora, se me der licença…
Quando virei de costas, pronta para dar no pé, uma mão extremamente fina com a força surreal de um gorila, agarrou o meu pulso.
— Não finja que não tem nada a ver com isso! Foi você que destruiu tudo pra começo de conversa! Então, já sabe, né?! Pode começar a pensar em uma maneira de dar um fim naquelas fotos ou então…
Ela passou o dedo indicador bem lentamente pela sua garganta inexistente, deixando claro que a minha vida está em jogo aqui.
— Fala sério… Acho que acabei de me meter em outra situação bem irritante…