Crônicas do Rei Vazio - Capítulo 3
Alter ego
Haviam se passado apenas alguns minutos que Samael colocara sua mão nas chamas, a “plateia” comentava sobre as grandes chamas negras que se formaram, todos sabiam que Samael não era fraco, já que Baran nunca treinaria alguém sem potencial, mas se já não bastasse o tamanho anormal do fogo, havia também a expressão perplexa nunca vista antes de Baran, já que, por conta de sua idade nada o surpreendia, mas hoje, só de olhar para ele… era obvio que nunca tinha visto nada parecido.
“Mas que porra é essa?”, Samael pensou sentindo aquele estranho calafrio.
Mesmo ele sentindo que algo o fitava e o tocava de dentro da escuridão, não conseguia enxergar nada além do obvio manto negro infinito, o aparente vazio, isso o fez lembrar do trecho de um livro que lerá a muito tempo.
“Soul, a pura representação do seu ser, sua alma, sentimentos, pensamentos e índole. As souls usam a própria vida do indivíduo ou de terceiros para funcionar, sendo assim é impossível seu poder perdurar pós sua morte sem algo físico que a prender — L. L. D.”
Samael sabia que os tais “poderes” já foram chamados de outras maneiras ao longo dos séculos, como: bênçãos, manifestação espiritual, maldições, etc. Ele tentou raciocinar, esforçou-se ao máximo para entender o que a escuridão significava.
“Olhar para chamas é olhar para si mesmo… ao menos foi isso que Baran disse”, Samael forçou a sua mente.
Quanto mais Samael olhava para a escuridão, mais ele a sentia a mão lhe apertar, ele respirou fundo e lembrou-se dos ensinamentos de Baran: “A visão é uma ótima aliada, mas ela pode lhe enganar facilmente”. Ele tentou segurar a escuridão, mas isso não funcionou, pois ela passou entre seus dedos como fumaça, a escuridão podia toca-lo, mas só se ele permanecesse parado, ele inalou o ar mais uma vez, tentando em vão sentir algum cheiro distinto, então Samael tentou ouvir.
Um som estridente rasgou seus tímpanos, era como se milhares de gritos ressoassem pelo vazio. E depois… o silencio, ensurdecedor silencio, porem momentâneo; após isso Samael escutou algo além de gritos.
— Finalmente você veio até mim, estava me perguntando quanto tempo mais levaria — ressoou a escuridão parecendo se mexer.
Uma voz estranha, que não era nem feminina nem masculina, ou talvez fosse os dois ao mesmo tempo, como se um duas pessoas falassem em uníssono, uma soava como um trovão, irritada, grave e alta; já a outra lembrava uma gentil brisa, relaxante, aguda e baixa. Aquela voz deixa Samael ansioso, mas também o deixava calmo.
Samael engoliu seco e perguntou — Quem é você?
— Quem sou eu? — a voz disse, seguida pelo som de algo se arrastando.
A escuridão envolveu Samael, só o permitindo ouvir e sentir.
— Que pergunta tola. Criança… como se esquecer? Esquecer de quem esteve com você durante toda sua vida? — falou a voz vindo d esquerda.
Com um som de arrasto atrás de Samael — Como se esquecer daquele que você mais conhece? — a voz soou da direita.
Novamente o arrasto, dessa vez nas suas costas — Como esquecer de quem lhe confortou em sua tristeza?
Samael ouviu o som, como se ela aquilo se arrastasse ao seu redor, na direita, na esquerda, na frente e atrás dele.
— Eu não conheço você, nem mesmo ouvi sua voz uma única vez em minha vida, nem ao menos posso vê-lo, para dizer que não conheço seu rosto — retrucou Samael.
O som de arrasto se tronou mais alto e mais rápido e na escuridão Samael ouviu algo se erguer, um de cada vez os quatro braços da criatura se revelaram, seus dedos longos e pontudo como se fossem garras (eram de proporções exageradamente maiores do que a mão que Samael sentira outrora). A criatura se puxou para fora da massa de escuridão, em seus ombros haviam espinhos, mas eles se moviam como se fossem maleáveis, seu rosto lentamente sendo revelado.
Primeiro Samael viu um conjunto de chifres negros que se assemelhavam um pouco aos espinhos, porem os chifres tinham uma aparência mais solida.
E então seus grandes olhos sé abriram, seis grandes olhos inteiramente vermelhos, a luz vermelha iluminava a escuridão como um grande farol, em seu rosto não existia uma boca, aquela criatura se aproximou de Samael.
Logo abaixo de seu abdômen havia uma cauda tão grande que não podia ver seu final, ao longo de sua coluna emergiam vários espinhos que apontavam para trás, ela era enorme, ameaçadora, mas também era magnifica.
Samael olho nos olhos da enorme besta — M-mas o que é… — ele se calou, sem palavras.
A grande besta de escuridão chegou ainda mais perto de Samael — Me diga Samael. Por um acaso existe uma pessoa que não se lembra de como ela é? Ou você nunca viu seu rosto refletido em um lago?
“Como assim “isso” sou eu? Será que é uma metáfora, ou será que é literal?”, Samael pensou.
A criatura ergueu um de seus braços e tentou encostar novamente em Samael, mas algo lhe segurou, como se algo a tivesse puxado, só agora Samael notara a presença de grandes correntes azuis nos braços, cauda e no pescoço da besta, assim que Samael as notou elas começaram a brilhar, a luz azul incomodou a criatura que puxou as correntes em vão, o som metálico ressoou pelo imenso vazio, enquanto a criatura grunhia de raiva e frustração.
Samael engoliu sua ansiedade — Quem prendeu você? E mais importante, Por que? — questionou Samael com voz tremula.
— Eu não sei, tudo que eu sei é o que você sabe… não, talvez eu saiba um pouco mais do que você, eu me lembro do porquê… — falou a criatura forçando a sua mente.
— Então diga — insistiu Samael esforçando-se em vão para manter sua voz firme.
A besta olhou para o lado fitando o vazio — Eu estou preso, pelo meu pecado, um pecado imperdoável — seu tom se tornou triste e reflexivo.
Samael sentiu uma estranha complacência pela besta — Qual pecado? Você matou alguém?
— Não… — ele inclinou-se para frente e olhou novamente para dentro dos olhos de Samael — Meu pecado? Preencher o vazio que jaz em meu interior.
Samael estava farto de enigmas, ele questionou sé as palavras da criatura eram mesmo abstratas como ele pensava, ou se eram mais literais do que aparentavam, ele sabia que o mais sensato era ser cauteloso, mas sua curiosidade era maior.
Samael continuou encarando a besta — Presumo que você quer que eu te liberte, não é?
A criatura se moveu, como se desse um sorriso — Você não vai, a não ser que eu ofereça algo em troca — afirmou o monstro.
Samael arqueou a sobrancelha — Parece que a história de você ser eu, não é tão mentira assim.
A criatura se ergueu novamente — Você ainda não tem motivação, ou qualquer tipo de determinação, nada que eu tenho a oferecer lhe fará me libertar, mas…
A besta colocou suas quatro mãos uma perto da outra, entre as mãos dela começou a surgir uma esfera de luz vermelha, e ela se moldou em uma espécie de trombeta dourada, uma trombeta pequena com o formato semelhante a um chifre, a trombeta flutuou até as mãos de Samael.
Samael examinou a trombeta — Eee… pra que isso serve exatamente? Além do obvio é claro — ele fez um gesto como se soprasse a trombeta.
A besta puxou suas correntes — Use-a quando tiver determinação, use-a para me chamar, use-a e eu lhe darei meu poder… Use-a e voltaremos a ser um.
Samael olhou para a besta — Entendi senhor determinado, quando eu quiser dividir minha existência com você, eu sopro essa coisa, mas vou avisando, pode demorar muito.
— Eu estou preso a muito mais tempo do que posso contar, mais alguns anos não são nada — a besta disse fechando os olhos.
Samael questionou-se, sobre esse ritual, pensou que talvez todos tenham uma discussão com seu próprio “Ego” (foi assim que ele decidiu chamar a criatura).
— Eu não tenho certeza de que você está falando a verdade. Você sou eu? — Samael provocou.
Ego fez um som de desaprovação — Não faça perguntas das quais já sabe a resposta.
— Você parece muito confiante com a ideia de que eu vou usar isso — Samael apontou para a trombeta.
Ego riu — Está tão focado em me analisar que nem se quer olhou pra você mesmo.
Samael olhou para suas mãos, então ele percebeu, as enormes correntes azuis que estavam presas em seu próprio corpo, era como se eles tivessem acabado de aparecer, elas não pesavam ou machucavam, mas davam a impressão de ser inquebráveis.
Samael balançou seus braços — Entendi… como eu sou você, eu também estou preso. É isso?
Ego balançou a cabeça em confirmação — Somente eu posso romper suas correntes. Um tem que libertar o outro.
Samael pensou sobre o significado dessas correntes, já que ele não estava preso em si, ele viveu uma vida comum até agora, então tal “prisão” talvez esteja relacionado com a sua Soul.
Samael puxou levemente as correntes — Que conveniente pra você.
Mesmo expressando descontentamento pelas correntes que o prendiam, Samael tinha certeza que elas extavam lá por um motivo maior, sua mente não parava de questionar.
Samael pôs a mão no queixo “Por que estou preso? Pra que? Deveria quebrá-las? Talvez fosse pior se eu as quebrasse? A última coisa que eu preciso são problemas”
Samael só queria uma vida calma, ler na sombra do grande carvalho, observar céu e assim seguir a sua vida, ele nem sequer tinha vontade de viajar, ou de conhecer qualquer coisa se não fosse através de seus livros. É claro que ele queria impressionar Baran, mostrar pra ele que todo o treinamento teve resultado, mas ser o mais forte de sua tribo já estava de bom tamanho pra ele.
— E a nossa soul? — perguntou Samael.
Ele estava curioso, supostamente deveria estar aprendendo sobre sua Soul, mas não descobrira nada até agora.
“Talvez eu só não tenha entendido. Mas tudo isso pode significar uma coisa?”, indagou Samael.
— Bem… você é uma espécie de… como vocês chamam mesmo… rei uma espécie de rei. Você é bem forte, mas sabe do que um rei precisa pra ser rei? — Ego disse quase como um sussurro.
— Um reino… — chutou Samael já se preparando para falar sua segunda hipótese.
— Súditos. Um rei só é rei quando alguém acredita que ele é, se não há povo para lhe atribuir poder, então também não há um rei. Então você vai precisar de mais pessoas para usar sua soul direito. — Ego disse orgulhosamente.
— Então… meu poder é um esquema de pirâmide? — ironizou Samael.
Ego riu, era bom ter alguém pra conversar, mesmo que tecnicamente esteja falando sozinho. Samael também riu, mas mesmo tendo feito uma piada, sua curiosidade continuava falando mais alto.
Súditos?… Eu tenho cara de rei por acaso?… Me parece um tanto exagerado… será que é literal, ou só mais uma metáfora?… Talvez eu entenda melhor quando eu sair daqui”, ponderou Samael.
— Acho melhor eu ir agora, antes de ter uma crise existencial — disse Samael com um sorriso.
Ego riu — Achei que toda essa situação poderia ser vista como uma.
Samael riu virou-se e começou a caminhar.
Ego abaixou a cabeça e fechou seus olhos — Boa sorte criança. Você vai precisar.
Samael ouviu a voz de Ego, mas era como se estivesse a quilômetros de distância, por conta disso Samael não tinha certeza sé ele ouvira direito, ou se era apenas um delírio seu, mas essa situação inteira parecia um delírio para ele.
Samael se virou para trás — O que você di… — mas Ego não estava mais lá.
O vazio se dissipou e Samael abriu os olhos, ele presumiu que aquela cena toda acorreu dentro da sua cabeça ou algo parecido com isso, o que pareceram horas, foram apenas minutos, talvez até segundos.
— Não foi tão rui… argh… — Samael sentiu um impacto.
Era como sé algumas memorias voltassem para ele agora e junto a isso as palavras de Ego (como se tudo que ele disse viesse a tona de uma vez). Uma dor aguda tomou a cabeça de Samael, ele sentia que ela ia explodir.
Ele viu uma criatura alada que se assemelhava a uma serpente, ela estava lutando contra outros seres alados (todos eles eram diferentes entre si, nas cores ou em tamanho, quantidade de asas, patas e olhos, tudo era distinto), elas lutavam em espécies de construções flutuantes (construções essas que pareciam templos), a grande serpente negra se movia mais rápido do que seus olhos conseguiam acompanhar, era como se ela teleportasse durante a batalha, mas mesmo assim ela estava em completa desvantagem perante as outras (ela parecia estar protegendo algo). Depois de algum tempo a criatura foi atingida e caiu no chão, ela parecia exausta, os outros seres pareciam estar falando algo para ela, mas Samael não pode ouvir nada além de uma palavra, que foi dita pelo maior dentre elas: “tolice”, as perguntas irromperam em sua mente de novo.
“O que era tolice? Lutar? Proteger seja o que for que ela está protegendo? Talvez ela esteja roubando algo…”, Samael se questionou.
A serpente disse algo, mas Samael não pode ouvir, ela parecia ter aceitado seu destino, seus inimigos atacaram todos juntos, rajadas de energia saíram de suas bocas, a serpente revidou na mesma moeda, mas os números de seus inimigos a superou, o ataque a atingiu em cheio causando uma enorme explosão, quando a fumaça abaixo não havia nada lá a não ser uma enorme cratera, era obvio que ela tinha conseguido escapar, uma delas demostrou-se irritada e alçou voo para seguir a fugitiva, mas a maior das criaturas a impediu, talvez ela estivesse certa de que a serpente morreria.
Samael estava ofegante, ele nem percebeu Baran ao seu lado, Samael olhou para ele, era evidente a preocupação nos olhos de Baran.
— E-eu vi… coisas que pareciam lembranças, mas eu não estava lá — disse Samael enquanto tentava recuperar sua postura.
— Me siga — Baran se virou e começou a andar.
Samael pensou em perguntar “para onde”, mas era evidente que Baran estava apressado. Como Samael foi o último a ser chamado ele podia sair sem preocupações, o que se seguiria da li era um torneio amistoso do qual Iky estava encarregado, Samael olhou para a plateia e fez um sinal de positivo tentando acalmar os ânimos mesmo que um pouco, depois disso ele se virou e continuou seguindo seu professor.
Iky e sua família estavam obviamente preocupados, mas todos eles tinham plena confiança em Baran, ele cuidará de Samael tanto quanto Iky (talvez até mais que ele).
Eles andaram em silencio até a casa de Baran, eles entraram e Baran se sentou no chão, pois na casa de dele não tinham cadeiras.
Baran respirou fundo — Sente-se e escute bem — Baran parecia ter se acalmado.
Samael não se atreveu a falar, mais um dos ensinamentos do próprio Baran: Escute, compreenda, e só então pense em falar. Samael se sentou e olhou para seu mestre, ele sempre dava ouvidos aos concelhos de Baran, por conta da sua soul ele dificilmente errava.
— O que eu vou lhe contar agora é um conhecimento passado de chefe para chefe, dês do começo dessa tribo. É o motivo pelo qual os clãs da tribo dos caçadores se separaram, não por brigas ou desentendimentos, mas sim por um ideal, por um futuro glorioso… — ele puxou o ar mais uma vez.
Os olhos de Baran brilhavam e dentro deles tinham pequenas rodas dentadas, 2 em cada olho, uma grande e outra pequena, a pequena encostava na maior diagonalmente, quando Baran usava sua soul as rodas dentadas giravam.
— Existem pessoas com souls muito semelhantes, eu sou a prova viva disso, a muito tempo existia alguém com um poder semelhante ao meu. Houve um profeta que viveu entre nossa tribo, ele foi encontrado com fome e sem abrigo na floresta, os caçadores o acolheram e o alimentaram, apesar de muito fraco, ele era um homem bom, ajudava a tribo prevendo tempestades, secas e onde encontrar alimento, nessa época a tribo era composta por 3 clãs, os Lobos de Gelo, Corvos Pensadores e Serpentes de Jade. Um dia, quando ele já era muito velho e estava à beira da morte, ele fez sua última previsão:
“Daqui a muitos anos, do sangue mais forte da tribo dos caçadores, sangue esse vindo de uma ancestralidade dos guerreiros mais fortes, nascera uma criança, criança essa que será a portadora da mais poderosa soul que esse mudo já viu, pelo seu comando florestas morrerão e se erguerão, pelo seu querer os ventos devastarão, ela dirá a uma montanha: “Passe de lá para cá” e a montanha assim fará. Eu vos digo que: Na tribo dos caçadores, na casa das Serpentes nascera um rei, um rei que poderá governar o mundo, se assim desejar”
— Como eu disse, existem pessoas com souls muito semelhantes, em outros lugares outros profetas contaram a mesma profecia, com pequenas mudanças, mas em essência era a mesma história. Obviamente não somos os únicos interessados em ter esse “Rei” — Baran fitou Samael — Você sabe sobre quem a profecia fala.
Samael baixou a cabeça, ele paralisou por um instante, ele sabia, tinha absoluta certeza, mas ele temeu, as palavras de Baran lhe fizeram hesitar.
Samael levantou seu olhar encarando seu professor, sua boca seca e suas mãos tremiam, medo, receio, dor no peito, Samael sentiu tudo isso pelo simples fato de pensar no nome, então ele disse sussurrando — Uriel…