Destino da Quimera - Capítulo 4
“Totalmente fútil”
Esta frase foi a única forma de descrever toda aquela conversa que ouviram até o momento. Noelle, Bella e Monet estavam em completo tédio bisbilhotando o diálogo, chegando a desistir de reconsiderar a hipótese de estarem perdendo tempo, já houvera passado mais de uma hora desde que o trio se uniu ali. Ao menos Monet e Noelle permaneceram escutando, atentos, as troca de palavras feita pelas duas mulheres, enquanto Bella simplesmente encontrou um canto da escada para se encostar e tirar uma soneca, deixando claro que “quanto mais longa a conversa, melhor seu descanso”. E os outros dois não conseguiam deixar de concordar.
Rebecca Lance… Um nome simples, revelado de uma maneira igualmente simplória e sem rodeios, mal demorou para pensar antes de dizer.
Mesmo que este fosse seu nome, alguém na sua posição dificilmente deixaria alguém conhecê-lo tão facilmente sem precauções — como garantir que não há alguém próximo além de quem estar participando da conversa. Por seu cargo, Conselheira Do Império, essa informação pode ser considerada uma peça de ouro em muitas discussões, afinal há um certo peso em manter contato com alguém de tanto prestígio.
Todavia não liberou nenhuma informação tão chocante quanto, no máximo comentários sobre a cidade passar por um pequeno caos devido a chegada dos comerciantes viajantes, que permanecerão em Lunaria até o fim da comemoração de formação dos alunos, por motivos óbvios.
Há uma tradição em dá presentes aos alunos formados como recompensas pelos esforços, algo feito inclusive por professores aos alunos que ganharam sua atenção, como uma de mostrar orgulho.
Claro que isso não era uma novidade, então o pouco de ânimo que sentiram simplesmente desaparecia como uma chama queimando o último pedaço de seu combustível.
Cansada de apenas ouvir em silêncio ou só comentar sobre, Noelle decidiu falar algo para sobrepor o arrependimento que o desânimo trás consigo:
— Por que haveria uma mudança de planos? — Perguntou diretamente a Monet, que havia deixado de lhe encarar com o brilho dourado e receio preenchendo seus olhos.
— Pensei que haveria algo importante acontecendo hoje.
— Só por ela aparecer?
— Só por ela aparecer nessa hora da manhã, está muito cedo para ser uma visita casual.
— É… Talvez aconteça algo, mesmo que seja difícil nesse ritmo.
Uma pausa por um momento e em seguida ambos olharam para Donna, que fez um único movimento brusco para depositar char em uma xícara.
— Ela parece bem relaxada, não é?
— Respondendo perguntas simples, um poucas chatas e repetitivas claro. Difícil se irritar com algo tão simples… Ou quase isso, sabe?
— Aham!! Ela não teria muito sentido social caso isso aumentasse o estressa dela, mas…
— Não faltam motivos para isso acontecer — completou a garota.
— Até que precisar responder umas questões simples dessas parece… um pouco relaxante?
— Sim!
— Quer fazer uma aposta? Vinte minutos até ela se estressar.
Noelle virou seu rosto na direção de Monet e sorriu por um momento, sentia em sua mente que não era uma má ideia.
— Talvez ela não se estresse tão rápido assim…
Como uma coruja notando o mínimo movimento de uma presa desatenta, ou uma falcão prestes a agarrar brutalmente um pequeno animal que ousou andar distraído por uma trilha aberta, os olhos de Donna acertaram tanto Monet quanto Noelle. Sua cabeça havia virado de uma forma suave, por isso encarou ambos por cima do ombro, entre seus fios de cabelo soltos.
Durou apenas dois segundos, pois no momento seguinte uma pergunta de Rebecca chamou sua atenção.
— Bom, vinte Freyres que ela não dura os vinte minutos sem algo quebrar sua tranquilidade! — Monet não demorou para estabelecer uma aposta após aquela cena.
— hm… Aposto o dobro que ela não perde a compostura antes de 30 minutos.
— Tem certeza disso? É um pouco demais.
— Você sabe muito bem, Moe…
— Eu não jogo pra perder.
Como se ambos lessem a mesma frase em um livro, se pronunciaram ao mesmo tempo, algo que gerou um sorriso quase brilhante no rosto de Noelle por sentir certo conforto na situação.
— Eu sei. Eu sei. Ok, Noelle! Ok! O dobro em trinta minutos.
— Ela vai resistir bem mais que isso.
Ambos tocaram os punhos fechados, selando a aposta que fizeram.
Foram minutos quietos, até mesmo mais entediantes, afinal já não pareciam possuir mais sobre o que falar — sendo visível que evitavam perguntas não casuais.
Passados os primeiros cinco minutos, uma questão surgiu na mente de Monet, pois no fim das contas talvez houvesse deixado uma armadilha cair sobre si mesmo e sequer tentou agir contra a grande pedra rolando em sua direção; com dez minutos estava um pouco menos preocupado com o questionamento acerca da aposta.
Quando percebeu a chegada de vinte minutos e teve certeza que perderia de qualquer forma, notou o fato de que Noelle apenas lhe deu uma colher de mel antes de jogar pimenta, uma vez que aos trinta minutos bastou encara-la para receber um sorriso em troca de sua expressão de dúvida, a garota sequer pareceu ter o mínimo pensamento de que iria perder e sua confiança resplandeceu por seus lábios esticados e de pontas um pouco curvadas.
— Então, quer desistir da aposta?
— Não, eu perdi… Mas como sabe dis — parou de falar ao notar que o sorriso dela não sumia. — Sexto sentido.
Ela concordou com a cabeça enquanto falava: — Sim, sexto sentido. Muito útil, né?
— Então, o que vai acontecer?
— Não sei especificamente o que vai acontecer…
— hm… Qual o contexto do que vai acontecer?
— Você ainda não percebeu? É algo tão simples e ainda não notou.
— Se é algo simples, então é simplesmente fácil me dizer.
— Sim, seria muito fácil… — Monet continou encarando ela, que parecia brilhar com a situação. — hehe…
Sem vontade de analisar Noelle, virou sua cabeça buscando por algo visível a seus olhos, porquê sabia que aquele riso era uma forma da garota “perguntar” se era tão difícil assim.
Lentamente a pequena esfera dos seus olhos passava de um canto ao outro do ambiente, tudo que poderia visualizar através daquela porta passou por seus olhos, mas nada diferente surgiu no campo de visão dele, tampouco sentia qualquer alteração mágica incomum. Por um momento ou outro passou seu dedo ao redor da xícara vazia que segurava em mãos, uma pequena distração durante sua reflexão. Pensou por alguns instantes estar olhando para o lugar errado, de muito perto ou simplesmente não havia nada ali que fosse visível, desistindo de encontrar sua resposta.
E antes que conseguisse continuar sua análise da derrota, Noelle lhe interrompeu:
— Sua cabeça vai estourar qualquer dia. Pensando tanto sobre algo tão simples assim, Monet?
— Não encontrei nada.
— É apenas um detalhe pequeno, quer dizer, talvez fique maior do que o esperado…
— Um detalhe pequeno que pode ficar grande?
— Sim.
— Certo…
— Não pense tanto, daqui a pouco acontece, já passaram dos quarenta e cinco minutos de qualquer forma.
— Espera! Por que apostou em trinta minutos?
— É o tempo mínimo esperado, eu falei, não?
Ele não lembrava daquele detalhe, ao menos não totalmente, devido a distração que sofreu nos últimos minutos.
— Vai acontecer a qualquer segundo, só esperar um pouco ma…
Bella quase levantou de imediato ao sentir uma flutuação mágica próxima, levando um pequeno susto a ambos por ter sido de repente quebrando sua inatividade. Seus olhos bem abertos e em seguida semi fechados devido a luz olhavam diretamente para a conselheira, enquanto pronunciou uma palavra: — Diretor?
Bella foi desperta no mesmo momento que sentiu a mana do ambiente sendo minimamente curvada e igualmente a energia de alguém moldando esta, Lance havia acabado de iniciar o uso de uma magia.
Entre seus dedos uma carta foi projetada a partir do nada e seu braço esticado em direção de Donna, concedendo a carta para a mulher. Apesar de verem claramente o papel branco e um selo vermelho fechando a carta, não conseguiam ler sequer uma palavra.
Mesmo sua visão sendo limitada a uma certa distância, seus ouvidos estavam sempre em ação, com seu tímpano quase saltando para fora devido ao impulso de curiosidade.
— Um convite? — perguntou Donna.
— Sim, eu ouvir algo interessante do meu mestre. Os três são basicamente indivisíveis, então é uma oportunidade boa para mantê-las reunidas, não é?
— Verei o que há nesse documento e deixo claro que não irei aceitar nada por elas, e não faço a mínima ideia se irão ou não responder… Menos o Monet, ele gosta de escrever.
Os olhos de Donna analisaram o pequeno selo vermelho, uma resina agora endurecida com um símbolo estampado nela — um cetro envolto numa cobra com uma ponta semelhança a um olho.
Um leve aroma adocicado chegou ao seu nariz enquanto examinava, mas ignorou tão logo passou sua mão acima da carta, como se removesse poeira do ar.
Com seus olhos brilhando em curiosidade, Lance quase deixou escapar uma pergunta indelicada sobre o que aquela mulher houvera feito. O pequeno selo estava cravado por uma magia de segurança, todavia esta simplesmente desapareceu no mesmo segundo que o movimento de Donna fora realizado. Talvez não houvesse sido uma surpresa para ela ver isso em outra situação, mas o feitiço imposto naquele ponto possuía um nível avançado e a quantidade de mana que sentia sendo emitida pelo corpo de Donna não ultrapassar um mago de uma estrela comum, quase de um adepto sem treinamento. Fazer toda aquela magia concentrada sumir num único segundo encontra-se longe de ser algo tão simples.
— Vinda diretamente do Conselho imperial? — Lance assentiu saindo de seu transe momentâneo. — De fato é algo sério.
Sem nenhuma palavra a mais, Donna começou a ler o conteúdo do dito convite, algo que lhe gerou uma certa agitação interna, mesmo expressando a mais pura tranquilidade, como um as águas do alto mar.
“Academia dos insubordinados”
Logo ao ler um dos primeiros parágrafos do convite, o nome da Academia de Ofiicias do Império, local onde supostamente alunos com bons meritos e/ou gênios são enviados para receberem um treinamento rigoroso e servirem cargos de grande importância no império, contudo seguindo a fama que essa instituição ganhou e manteve por muito tempo não seria a melhor ideia. Atualmente o local ainda estava lotado por filhos de nobre com baixa capacidade e talentos ainda piores.
A não muito tempo foi considerada uma instituição para “limpar” o exército de ameaças internas a população, tudo devido a um motivo: O imperador em pessoa precisa agir em muitos casos.
Seja emitindo cartas de expulsão, prendendo (ex-)alunos que ganharam patentes no exército imperial e governam uma pequena região ao invés de apenas manter um posto avançado para segurança, ou simplesmente fazendo-os desaparecer. Não havia o mínimo pudor para esconder esses atos da população, pois preferia mostrar sua maneira de agir como um aviso.
“Remover o fungo que infesta uma floresta é importante antes de plantar novas árvores!”
A frase que uma vez, a muito tempo, ouviu o próprio imperador dizer em resposta a uma casa nobre que possuiu grande poder na época de seu precessor, o antigo e primeiro imperador, fez um certo eco em sua cabeça.
— Então, você conseguiu esse convide…
— Não, o próprio conselho imperial é responsável por essa carta de recrutamento. Eu estou apenas entregando! — um sorriso surgiu no rosto dela, mostrando o qual mal conseguia esconder uma mentira.
— Entendi… Certo, farei Monet e Bella responderem a carta e… — uma pergunta veio a mente de Donna, mas ela perdeu seu foco ao sentir um forte odor amargo tomando conta do ar. — Que?!
O corpo levantou quase no mesmo instante, como estivesse percebendo algo antes escondido de seus olhos — isso é: ela própria ignorou o odor momentos atrás. Dobrando a carta antes de inserir dentro de um bolso em sua vestimenta, se desculpou com Rebecca, pedindo para esta aguardar até seu retorno…
Na escada Bella abanava a mão frente ao seu nariz, o odor parecia tomar o ambiente de uma maneira quase absoluta. Noelle também sentia um certo incômodo pelo cheiro agredindo suas narinas.
E Monet estava mais curioso do que incomodado, já havia acostumado a sentir odores mais intoxicante.
— Como sabia?
— Sexto sentido.
— Certo… Seu sexto sentido apurado pode me dá algum detalhe a mais?
— Acho que não, ele está morrendo sufocado!
— hm… Na verdade, isso é estranho…
— Monet, minhas moedas.
— Sim… Ah, sim, claro… Quarenta Freyres…
Um simples movimento de seu braço permitiu que alcançasse um pequeno saco de moedas preso em sua cintura, que emitiu o som de alumínio sendo acertado desamarrou a bolsa de sua posição original.
Ao abrir o saco, uma centena moedas de dois tipos diferentes estavam presentes, sendo uma dela a conhecida pelo nome Frey.
Frey, a moeda de bronze com minúsculas runas em suas laterais e ilustração um homem barbudo de ambos lados das suas superfícies planas. Seu valor é a base das demais moedas do império — ou seja, 1.
A moeda de Alumínio, um metal não muito comum de ser utilizado, porém leve e durável, nomeada de Ratel, vale o mesmo que 50 Freyres, mesmo sendo algo difícil de encontrar na maioria das cidades e vilarejos.
E ambas compoem a dupla de moedas da plebe, por terem menor valor no reino e boa facilidade de uso na maior parte dos lugares.
Enquanto fazia a divisão daquelas moedas, separando todas as quarentas moedas de bronze para dá a Noelle, sentiu como se estivesse sendo dissecado por olhares e ouvia as duas garotas sussurrando. Quando enfim levou seus olhos até elas, percebeu que estas riam de canto…
— Monet, me diz aqui… — falou Bella, num tom muito manso, se comparado a grande energia que sempre possui.
— O que?
— Você esqueceu o braseiro nas chamas?
— Não conseguiria fazer isso nem desejando… — ele voltou a contar as moedas, mas as frases seguintes lhe fizeram perder o foco.
— Ah, erros acontecem.
— Não é como se fosse tão ruim assim esquecer de algo assim as vezes… — Noelle também entrou no jogo.
— Sim, não precisa se sentir envergonhado por tão pouco.
— Mesmo alguém tão bom em cozinhar as vezes acabar queimando uma coisa ou outra.
Com um suspiro, Monet foi aguentando a perturbação de ambas, acabando perdendo algo que o ocorria no salão pouco metros em sua frente.
Passados quase cinco minutos desde a saída de Donna, a senhorita Lance começou a preparar desculpas mentalmente para seguir em busca do local onde ela estaria.
Primeiramente pensou em segurar o pires que serve de apoio para a xícara, igualmente pegaria o bule e levaria ambos, que encontravam-se vazios naquele momento, mas descartou a ideia. Apenas iria procurá-la pela casa e aproveitar para descobrir mais sobre o lugar.
Claro, nem sempre tudo sai como planejado e ela esperava que não houvesse uma reação ruim caso perdesse completamente seu caminho dentro dos corredores da casa… Bem, de certa maneira chegava a desejar acabar perdendo o caminho. Afinal de contas a Mansão Philiana possui uma longa história e grande renome em todo império, entrar em alguma sala errada ou simplesmente chegar no local certo poderiam ser igualmente gratificante, talvez…
A mente ávida daquela mulher levou seu corpo a levanta-se, mas tão logo estava de pé sentiu algo semelhante ao seu peito ser perfurado, colocando sua mão acima do local que, a pouco agitado, parecia ter se acalmado deixando um sentimento mórbido encobrir por segundos sua animação. Um estalo também chegou aos seus ouvidos, levando sua cabeça a virar de maneira suave para o lado.
— Por favor, senhorita Lance, mantenha-se no mesmo local. — uma indiferença tão absurda estava presenta naquelas palavras que Lance pareceu ter um pequeno choque.
— C-certo… — Sequer demorou para agir, novamente sentou no mesmo local, olhando fixamente para frente.
Pouco mais de um metro atrás dela, uma pessoa estava de pé, e ela sequer conseguia sentir sua presença no local — nem mesmo sonhava em sentir a energia mágica da pessoa. Não conseguiu ver quase nada da aparência, mas os fios de cabelo pareciam brilhar num tom camersim em suas lembranças.
Sabia que não houvera sido afetada por um ataque mágico, mas ainda sim aquele sentimento que lhe cobriu por alguns segundos houvera sido suficiente para lhe deixar tensa. Não havia visto qualquer pessoa entrando na sala a qualquer momento, mesmo quando chegou o local estava vazio.
Por sorte evitou uma dor de cabeça pensando sobre o assunto quando o odor no ambiente tornou-se ainda mais intenso se comparado a antes.
***
A grande cidade de Lunaria circunda toda a Academia Ludos, que localiza-se acima da cidade devido ao terreno elevado qual foi construída sobre, sendo também o local onde as nascentes de água são preservadas e tratadas magicamente, caso alguém tivesse o desejo de visualizar os largos reservatórios de água quase sempre transbordando nesta época de troca entre outono e inverno, se impressionaria com a quantidade de ervas aquáticas e pequenos seres subaquáticos que ali vivem — seres mágicos responsáveis pela purificação da água.
Os reservatórios vigiados todas as 24 horas do dia — e claro, um pouco mais —, eram visíveis do ponto mais alto da academia, onde o rio original (igualmente mais três artificiais) desce pela cidade criando a divisão dos quatro distritos. O olhar de quem estava naquela sala com frequência caía no distrito comercial, onde a maioria dos comércios foram fechados para criar a grande freira de quase uma semana dos viajantes.
Uma dor de cabeça para quem rege a cidade todos os anos, devido a imprevisibilidade dos seres humanos, sabia que uma confusão poderia estourar a qualquer momento, mesmo com a grande quantidade de guardas dispostas por toda a cidade e o reforço dos especialistas da academia agirem na segurança do evento.
Como diretor de Ludos e por consequência regente de Lunaria, não conseguiria apenas sentar e observar tudo que ocorre, seja de acordo com seu planejamento ou não. Mesmo que sua escolha fosse manter uma postura menos preocupada não haveria problemas.
A cinco anos não havia motivos claros para ter dor de cabeça por surgir algo além de sua capacidade de resolução, mas agora temia ser pego pelo mesmo problema que ocorreu a cinco anos atrás, durante a formatura de seu único grupo de aprendizes diretos. Mesmo que tal problema não esteja relacionado a algum deles diretamente.
“Meia hora e ainda não acabou?”
Um som de algo duro sendo quebrado e triturado pela força da mandíbula, quebra totalmente o silêncio geralmente existente dentro daquela sala, caso não houvessem quaisquer encantamentos impedindo a saída de sons daquela sala, todo a passagem até aquele escritório estaria ecoando o mesmo som.
De costas para a pessoa, que estava sentada em uma poltrona rente a estantes de livros, o diretor permanecia observando o lado exterior de sua sala, precisamente a cidade, cujos acontecimentos raramente lhe fugiriam da visão e atenção. Igualmente ao seu foco na cidade e em especial no distrito comercial, suas costas pareciam prestes a serem queimadas de tanto que um olhar estressado permanecia lhe acertando.
— Espero que me diga o motivo da visita, sei que um evento tão pequeno não atrai sua atenção…
Não recebeu qualquer resposta, apenas permaneceu escutando os mesmos sons de algo sendo triturado e mastigado, somente notou uma diminuição no ritmo que este som parecia ser feito.
— Se continuar apenas me encarando logo criará uma passagem em meu torso… — sem respostas, novamente. — Entendo que esteja estressada com algo, mas ainda sim não parece ser muito justo me usar como alvo.
Minutos prosseguiram sem ganhar qualquer resposta.
Única mudança era a dispersão completa daquele som e não retorno do mesmo. Ao olhar para trás, por cima do ombro, conseguiu ver com clareza o pequeno saco de pano que carregava o alimento estando vazio e levantando um pouco mais sua visão encarou diretamente a pessoa, por menos de dez segundos, antes de mudar o foco de sua visão após os olhos travarem nos seus.
— Olhe diretamente para a pessoa quando busca receber alguma resposta, você ainda não é velho o suficiente para perder seus modos.
Ele apenas concordou com a cabeça, ainda sem encarar a pessoa enquanto ela prosseguiu falando.
— Sempre ouvir que humanos ganham um medo maior do que necessário quanto maior o tempo que vivem, você parece ser o exemplo vivo disso.
— Por… — foi interrompido.
— Uma recepção péssima por motivos tolos, mesmo possuindo noção do estresse que me causar estar tão próxima dela. Além de mal ter vontade de olhar em meus olhos enquanto fala, isso me deixa com um grande desgosto na mente, Blanco.
O diretor preferiu permanecer em silêncio.
Banco apenas ouvia aquelas palavras sem formar qualquer resposta para elas, na sua mente era considerado algo desnecessário e se preferível seria muito melhor evitar criar uma confusão apenas por ter levado uma bronca… E principalmente por realmente ter tomado uma atitude um tanto desrespeitosa.
— De qualquer forma, o imperador pediu-me para te notificar a situação das fronteiras e os negócios da família… — a reação de Blanco foi brusca o suficiente para interrompe sua frase.
— Você aceitou um pedido dele? — a figura seria e tranquila do diretor de Ludos foi desfeita em um único instante, como uma criança reclamando da injustiça dos pais.
O dedo indicador daquela pessoa foi erguido, liberando um único feixe dourado composto por uma energia qual definitivamente não era mana. E tal feixe acertou diretamente o terceiro olho daquele homem, que voltou a fazer silêncio enquanto encarava seus livros.
— Não seja tão emotivo, caso tenha algum pedido sabe que farei se ele estiver em meu caminho e não afete meus objetivos. O que você quer pedir?
Após segundos aparentemente meditando sobre o ocorrido, retornou a realidade respondendo a questão: — Qual seu curso atual?
— Hm… Ainda é ousado o suficiente para perguntar isso… Tenho algo para fazer na cidade, caso não der certo retornarei a terceira torre mágica e tomarei sob tutela a minha pequena neta.
— Então irá simplesmente ignorar o problema do império?
— O próprio imperador exigiu a minha “não intromissão” no assunto, meus métodos são muito irregulares para ele, mesmo que hajam resultados… Expressivos!
Blanco assentiu com sua cabeça, mas não pela afirmação da pessoa e sim por concordar com a decisão do imperador.
— Me diga apenas que não entrará em qualquer problema sério igual a sua última visita…
— Eu até faria, mas seria tolice. Mesmo nos últimos cinco anos ainda não conseguir quebrar as mais simplórias camadas do selo que me limita.
A testa dele enrugou e suas sobrancelhas quase uniram, com a contagem que fez em sua mente acrescentando cinco anos…
— Trinta anos! Você… Até mesmo você não conseguiu quebrar esse selo em trinta anos?!
— Sei que três décadas é um pouco demais, mas você precisa ganhar maior costume pelo fato de estar envelhecendo, Blanco. Não precisa reagir tão bruscamente.
A frase quebrou o clima de forma que o diretor apenas liberou um extenso suspiro.
Estava recebendo cada vez mais informações, que chegaram primeiramente condensadas dentro de uma esfera alojada em alguma parte de seu cérebro, depois de receber o feixe de energia diretamente em seu terceiro olho. Quanto menor a esfera se tornava, maior era a quantidade de informações necessárias para assimilar.
— Hm… Me diga, as crianças que ganharam o pedido de recrutamento “especial” de sua aluna são quem eu imagino?
A mão de Blanco acertou sua cabeça, como se mais um motivo para se preocupar houvesse florescido e dado frutos… Amargos.
— Ela ganhou o título de conselheira e tem poder dentro do conselho imperial, mas ainda causa problemas para mim…
— Você escolheu ser como um pai para ela, isso é o que crianças fazem… E farão até tornarem-se tão velhos quanto você, Blanco!
— Eu nunca fui uma criança problemática.
O velho homem sentiu ser acertado por um olhar satisfeito enquanto apoiou suas costas na parede, como alguém sofrendo devido a algum veneno, havia muita informação correndo por sua mente e conversar enquanto absorvia tudo parecia uma tarefa árdua no momento.
— Bom, eu farei minha saída, não tenha tanto desgaste por causa de uma técnica tão simples… — o corpo da pessoa começou a perder cores, desvanecer sem sair do local, igualmente ocorreu com Bella e Monet ao serem afetados pela magia de Blanco.
— Não arrume confusão!
— Tsk! Fique bem, garoto. Espero que arrume esses modos nos próximos anos, antes que eu lhe encontre novamente e… — finalmente desapareceu, deixando nada no local além de uma ameaça incompleta.
Seus pés cambalearam conforme locomoveu em direção da poltrona vazia e cuidadosamente sentou-se.
Próximo a suas têmporas veias pareciam prestes a saltarem para fora da pele, enquanto seus olhos começaram a lacrimejar devido ao estresse da situação lhe causar uma irritação momentânea. A mão cobrindo seu rosto também exibiu um breve sinal de tensão por segundos, havia tremido conforme a pior parte desaparecia.
“Que droga eles fizeram dessa vez?”
Informações sobre negócios proibidos no império surgiram, algo que lhe fez sentir uma breve raiva e arrependimento. Sabia que sequer seria notificado caso fossem apenas crimes pequenos e de fácil resolução — como roubo de impostos ou conspiração. Haviam passado e muito do limite, principalmente por dois crimes em especial: tráfico de escravos e criação de mana condensada.
Há uma lei que situa como escravo qualquer um que cometeu algum crime grave, como tentar matar alguém por motivos fúteis, esta pessoa serve como um serviçal do lorde do território qual foi pego, geralmente usado para manter ruas limpas e servir como mula de carga por algum tempo, antes de reganhar sua liberdade ou passar ganhar uma pena pior.
Tornar um cível inocente em escravo, ou vender um escravo do império, para qualquer pessoa é uma infração cuja penalidade custará a vida do culpado pelo comércio e igualmente de seu comprador, caso não esteja agindo sobre ordens do império.
“De tantas coisas precisavam mexer logo com essa parte da alquimia…”
Mana condensada, algo que levou um império inteiro a ruína para ter seu método de produção descoberto e tomou a vida de milhares de civis e reféns de guerra.
Quebrando sua concentração do assunto, sentiu uma energia familiar entrando no território da academia, algo que chamou toda sua atenção devido a muitas palavras que precisaria trocar com a possuidora dessa energia chamativa.
Possuindo completa certeza que não seria nos próximos minutos que o encontro ocorreria, resolveu forçar seu próprio corpo e mente a um estado inconsciente. Com isso forçaria sua mente a processar melhor as informações que recebera e também absorveria as demais que ainda não conseguiu adquirir.
E sem qualquer demora as luzes se apagaram, os sons cessaram, os odores desapareceram e também os sabores, não sentia nem mesmo o ar tocando sua pele e qualquer senso de equilíbrio fora abandonado.
Tudo se tornou um vazio momentâneo.
Segundos dentro de um abismo obscuro pareceram somente um piscar de olhos para o feiticeiro. Ele abriu os olhos e respirou fundo no mesmo instante que o efeito de sua magia foi desfeito. Estava descansado ao preço de uma dor de cabeça momentânea e alguns segundos de controle incompleto dos sentidos.
Sua sala havia escurecido demasiadamente, mesmo com velas acessas em diversos cantos e orbes de energia que iluminam o ambiente interno, não havia qualquer lugar sem apresentar uma escuridão crescente, como se a luz houvesse deixado seu posto de dissipar as sombras.
Bastou olhar para o teto para conseguir ver uma escuridão quase tão profunda quanto a que mergulhou mentalmente, e esta lhe encarava na forma de uma massa de energia.
Não havia olhos, bocas, mesmo um nariz ou formato de rosto, somente uma grande falta de luz. E apesar da falta de todos esses aspectos, qualquer ser senciente seria capaz de encontrar algum traço modelado naquela figura.
Todavia ela apenas sumiu quando Blanco moveu sua cabeça como um sinal, novamente o lugar pareceu iluminado, tanto artificialmente quanto pela intensa luz entrando pela janela ofuscando sua visão ainda meio debilitada.
“Poderia desaparecer devagar da próxima vez.”
Soltou o ar de seu pulmão e novamente tragou, de uma maneira forte, de forma totalmente audível. Os olhos planavam pela cômodo ignorando por alguns instantes a presença de uma figura coberta por uma capa negra, sentada num dos cantos da sala. Não levantaria naquele momento por seu senso de equilíbrio estar levemente bagunçado, evitaria sentir uma náusea maior do que sentia naquele instante.
— Bom dia Mestre! Seu familiar estava tenebroso como sempre.
As palavras de Rebecca ganharam toda a atenção de Blanco, que questionou por um momento sobre qual familiar referia sua frase.
— E você está dormindo de tarde? Não pensei que veria isso com um evento ocorrendo lá fora.
— Coisas aconteceram… E minha cabeça ainda dói.
— Não seja por isso, tenho um medicamento especial aqui! — um brilho tênue surgiu rente a palma direita da mão e um círculo mágico se formou — Comprei por um valor muito baixo também!
— Monet realmente vende seus produtos por um valor muito acessível…
— Sim, ele até ensinou… Como preservar…? — o círculo em sua mão sumiu antes de algo sair e engoliu a seco percebendo ter liberado informação demais.
— Eu pedi com toda minha sinceridade para não perturbar aquelas crianças, Rebecca!
— Acho que não posso mais…
Ela recebeu um olhar por segundos fulminante, porém ele alterou aos poucos para certo espanto. Algo chegou a mente do diretor logo no momento seguinte a frase e não acreditava ser um ponto a ser considerado.
— Espera aí, eles aceitaram?
— Negaram sem hesitar. — a quebra de expectativa era visível no rosto do Diretor.
— Então qual o motivo pra não poder larga-los? Você já conseguiu uma voluntária para o pedido do imperador.
— Bem, não é definitivo você sabe…
— Não mude de assunto!
— Bom, eu não posso vir para cá atoa e como os estudantes contemplaram minha magnífica presença, não posso ir embora fingindo que não descobrir algo.
Blanco sentiu certo arrependimento por ter tido a bela ideia de levá-la ao quartel de treinamento e não ao laboratório alquímico, ninguém veria seu cordeiro dourado.
— O conselho desenterrou um assunto antigo, Mestre. Algumas famílias colocaram pressão sobre e acabaram enviando alguém, vulgo eu, para cá.
— Qual assunto antigo? Não lembro de…. ah.
— A família Astro ainda não esqueceu o incidente com o caçula e os demais nobres estão bem irritados com “duas crianças de cabelo branco que você vai conseguir encontrar facilmente”.
— E tentou colocar ambos abaixo de suas asas para impedir que tentassem algo?
— Sim? Não faz sentido só ignorar isso e mesmo que reporte será o mesmo que nada…. Você sabe, Mestre, o conselho imperial continua tão fútil quanto poderia ser mesmo após meia década!
Silêncio dominou aquela sala por alguns instantes.
Blanco contemplou o brilhante azul do céu através da vidraça de sua janela. Não era um assunto extremamente sério, mas seria complicado apenas deixar algo acontecer sem intervenções. Enquanto em Lunaria, nenhum membro do conselho seria capaz de alcançar aquelas crianças de forma nociva, mas sairiam logo do alcance acolhedor de seu lar.
Queria prestar algum auxílio à ambos, sim. Porém sua intromissão apenas faria muitos olhares caírem sobre os dois e talvez sequer aceitassem a ajuda, não por pura ingratidão ou arrogância, apenas tentariam suportar de sua própria maneira, como fizeram até o momento atual. Ele precisava resolver um problema maior em seu caminho…
“Isso explica muita coisa.”
Juntando peças em sua mente, conseguiu entender melhor o real motivo de tentar causar algum alvoroço para com aquelas crianças, algo que não esta na área de conhecimento de sua aprendiz.
Se esse realmente fosse o caso, seria realmente útil manter uma asa sobre aquelas crianças, e lhe encarando estava alguém que serviria bem para um bom trabalho abaixo dos panos.