Destino da Quimera - Capítulo 6
Bella estava arrependida por ter entrada onde não deveria, sua face expressava claramente um pavor incomum para uma pessoa. Não apenas a cena que visualizou por apenas alguns segundos antes de sair de imediato, como também os sons contínuos que ainda continuava escutando mesmo fora da sala, àquilo parecia uma alucinação tenebrosa… Ou um pouco pior, afinal se tratava de algo real.
— Ela estava doente a muito tempo? — perguntou Monet, dentro da sala.
— Não! Eu acho que não… Olha, eu não sei garoto! — o aldeão de barriga arredonda mantinha um estresse claro em sua voz.
— Certo, como não sabe de nada, o senhor poderia só esperar do lado de fora… — Era posso notar a desconfiança completa de Monet.
— Não posso deixar ela sozinha aqui! Não é porque vocês são curandeiros que confio em vocês! V-você princi… Principalmente numa criança! — ele basicamente cuspia enquanto gritava, mas Bella não conseguia ver isso.
A garota ignorou o fato de ainda estar assustada com a cena que viu a pouco e tentou ver o que ocorria dentro do cômodo por uma brecha ao lado da porta.
— Senhor, entendo que não saiba de nada, mas se puder apenas não gritar ago… Aah! — Neil estava cobrindo a visão direta para aquilo que assustou a garota.
Deitada numa cama simples, de pano e feno servindo como estofado, estava uma mulher de lábios levemente estourados e com veias saltando da testa, além de estar com o rosto quase todo avermelhado.
Havia mordido seu lábio inferior ao ponto de sangrar devido a dor e força que fazia e igualmente cravou de forma um pouco profunda suas unhas na mão do aldeão, que acabou sendo afastado da mulher pelo garoto.
— Monet! Venha me ajudar, tá saindo!
No mesmo momento que Neil saiu de sua linha de visão, jogou o próprio corpo pro lado e sentou encostada na parede. Aquele era realmente uma cena que preferia esquecer.
Esperava pelo momento que tudo “acabaria” ao ouvir o som de choro, como todos sempre lhe contaram, uma criança após nascer sempre chora…
Olhar para algumas frestas abertas no casebre de madeira mostravam o brilho do luar encontrando seus olhos, foram quase cinco horas de espera para o processo iniciar naturalmente, isso enquanto preparavam tudo necessário.
Já estavam nesse procedimento a quase uma hora e meia.
Também havia a viagem de quase um dia inteiro até aquela casa isolada na floresta, perto do pequeno Vilarejo da Areia Negra. Dependendo do resultado do dia, sequer conseguiriam ver a marcha dos novos recrutas, os alunos recém formados na Academia Ludos que partiram para seu treinamento direto nos acampamentos do Exército Imperial.
Bella desejava ver, especialmente, se Noelle conseguiria marchar sem mostrar uma expressão emburrada no rosto, uma vez que provavelmente estaria na frente de um dos regimentos devido ao seu destaque em torno dos anos.
“Se ela for com aquela espada velha…”
Sorrindo com seu próprio pensamento, pode escutar o som semelhante de um forte tapa.
— Neil… O que é isso? — perguntou Monet quase abafado por um choro de recém nascido.
Não conseguiu escutar a resposta do homem devido ao choro da criança, mas não queria prestar muita atenção ao que havia dentro da sala, principalmente visualmente. Sua curiosidade estava focada no que estava a sua frente naquele momento.
Uma lagartixa havia caído do teto e atingindo o assoalho, fazendo o sol semelhante ao de um tapa ao chocar contra o piso. Chegou a parecer irônico a sincronia com o início do choro da criança.
Bella segurava uma lamparina rente ao corpo da criatura enquanto a cutuca com o bico metálico de sua bota, estava próxima de segurar o pequeno animal pela cauda quando ouviu o relincho de cavalos.
“Que droga é essa agora?” — aqueles relinchos de inquietação pareciam um alerta de algum predador próximo, afinal o próprio aldeão havia alimentado e dado água para os animais a pouco tempo.
Estava curiosa e ficar no mesmo local não parecia servir muito para esclarecer o que ocorria, mesmo olhar pelas brechas seria um pouco ineficaz, conseguia ver apenas em linha reta.
Ela até ficou quieta por algum tempo, mas acabou perdendo para seus próprios impulsos.
Começou a caminhar na direção da porta, a única entrada e saída do velho casebre, sentindo o quão estranho aquele local é. Havia apenas dois quartos, um deles sequer havia algo dentro e tampouco uma porta.
Igualmente estranho era a pequena área de cozinha divida com a sala, onde apenas uma grande mesa com duas cadeiras, uma despensa com alimentos expostos e um fogão metálico coberto por fuligem. Não parecia o melhor local para uma pessoa grávida viver.
Na verdade seria difícil duas pessoas, sem filhos ou mesmo uma delas estando grávida, viverem de forma normal, ao menos por aquelas condições que via no ambiente.
“Como ele tem cavalos?”
— E como esse cara conseguiu dinheiro pra um curandeiro? — resmungou a garota.
Bella abriu a porta e apenas conseguiu ver muita escuridão, o pouco iluminado pela lua quase não lhe ajudava a definir o que havia ao redor. Claro, a luz da lamparina auxiliou a ver os animais fora da casa, próximos a entrada ainda presos na mesma carroça — cuja estrutura parece bem mais nova se comparada com a casa.
É claro que pode ver, distante, coisas brilhando.
Uma floresta cercava aquele local, então entre troncos de árvores e arbustos algumas coisas mostravam sua luminosidade própria. Monet já houvera lhe explicado diversas vezes o tema, mas ainda sim não gravava em sua mente o assunto.
Bioluminescência, muitos cogumelos, animais e as vezes ervas mágicas, emitem esse brilho de seus corpos e não são visíveis durante o dia por serem muito fracos em comparação ao sol.
— Bella, venha aqui. — Ouviu a voz de Monet, que abriu levemente a porta daquele quarto iluminado.
Quando estava fechando a porta, viu um pássaro incomum próximo aos cavalos, apenas de relance, um animal de olhos grandes… Nenhum um pouco exponencial ao resto do corpo. Ele voou após a lamparina ser direcionada contra ele.
Todavia a garota simplesmente fechou a porta, colocando um grande pedaço de madeira entre duas “garras” nos cantos da porta. Cada vez mais que olhava, mais rústica aquela casa parecia.
Quando estava a um passo da porta, lembrou de não olhar para dentro do cômodo, já estava incomodada o suficiente com a cena de antes, mas apesar de não olhar estava curiosa sobre a criança, pois não ouvia mais o choro.
— Sobreviveu? — disse Bella, ainda sem tentar olhar dentro da sala.
— Sim, mas não é sobre isso. Vem!
Foi puxada para dentro da sala antes que pudesse dizer qualquer coisa, pela surpresa do momento acabou não conseguindo reagir ao mesmo momento que sentiu o puxão.
Em cima da cama a mulher estava pálida, respirando com intensidade, mantendo uma completa falta de esperança em seu rosto. Neil mantinha uma certa agonia em seus olhos, então observava a criança deitada ao lado da mulher.
“Que merda é essa!”
Bella encarou o corpo do aldeão caído, encostado em uma das paredes. Uma grande mancha vermelha em seu rosto deixava claro ter sido atingido por algo.
Ao lado do corpo, uma adaga perfeitamente cravada entre as tábuas de madeira do assoalho. Não era difícil sentir uma energia sendo liberada pela lâmina, enquanto causava certa repulsa a mente de quem lhe observava.
Monet tocou dois dedos na testa da mulher que lhe encarou com aquele olhar quase sem vida, triste, o tipo de expressão que uma pessoa não costuma mostrar após o nascimento de sua criança.
Permaneceram por segundos encarando um ao outro, então uma lágrima escorreu pelo olho direito antes de fechar ambos os olhos, caindo no sono de forma brusca. Algo seguido por Monet removendo seus dedos da testa dela, encobertos por uma energia de cor preta, cuja sensação passada mostrou-se mais terrível do que da lâmina.
— Ela é uma cobaia — falou o garoto sem enrolar.
Os olhos do homem voaram em sua direção como flechas, havia surpresa em sua feição, mas ele apenas assentiu e encostou suas costas contra uma parede, fechando os olhos.
“Uma barreira mágica e quatro pessoas que não escondem seu fluxo de magia…”
— O que mais ela te contou?
— Estava assustada, então apenas contou que é uma cobaia… Muitas vezes.
— Por que essa criança tem um núcleo de mana formado?! — gritou Bella, com seus olhos quase saltando para fora da cabeça.
Apesar de ser brusca, não foi uma reação insensata por parte da garota, na verdade foi menos impulsiva se comparada com de uma pessoa comum. Aquela informação que descobriu era o suficiente para causar um alvoroço e uma chuva de boatos.
Humanos deixaram de nascer com núcleos mágicos formados a algumas centenas de anos, na mesma época que a taxa de natalidade diminuiu e a mortalidade infantil cresceu, tudo devido a experimentos de guerra, abandonados e esquecidos por todos…
Neil havia entendido que entrou numa enrascada junto as crianças quando chegou na casa, pois apesar de ser um curandeiro também é um comerciante e seus olhos raramente falham ao avaliar uma situação — ao menos não duas vezes seguidas.
Ele jurava, quando o aldeão e os cavalos de raça domesticados chegaram, que seria um pedido de algum nobre que teve um filho fora de seu casamento direto e agora precisava esconder o nascimento da criança de uma esposa furiosa e sua família.
Esse pensamento pendurou até ficarem cada vez mais afastados do vilarejo, passando próximo das entranhas da floresta, um lugar perigoso e igualmente belo.
“Talvez seja apenas um meio de esconder alguém…” Pensou naquela situação.
Quando viu o casebre velho no meio da mata, com um pequeno lugar para cavalos e um poço artesanal meio cheio, sentiu o tamanho do problema que havia em suas mãos.
Ao menos ele pensou ter certeza que não passaria de um caso complicado, um crime não totalmente incomum de ser praticado por muitas pessoas — algo que está longe de ser apenas uma imoralidade da nobreza.
Poderia ir embora sem receber o restante do pagamento, não foi tão trabalhoso quando imaginou que seria e nem precisaria observar a criança para ter certeza que não morreria por insuficiência de mana…
Mas aquilo estava totalmente fora de sua expectativa.
— Bella, não grite tão alto… Guarde um pouco da surpresa também.
As crianças olharam para ele ao ouvir aquela frase, um pouco confusos por que havia dito.
— Escutem, há alguns cães de caça lá fora. Preciso que vocês saiam daqui sem qualquer ferimento, então precisam sair antes que comecem a atacar…
Percebeu o fato de não ter sido atacado no mesmo momento que encostou na parede devido a presença das duas crianças, nem todo mercenário é totalmente insano. Ao contrário, alguns nem mesmo aceitam contratos para sequestrar uma criança, quem diria ferir uma.
Neil é um comerciante e contratar, vez ou outra, mercenários é um ato comum, principalmente para servirem como escoltar a uma carga ou caçarem algum animal mágico. Os cães de caça são mercenários com uma sede de sangue um pouco maior, aceitando contratos de assassinatos e sequestros com frequência, algumas vezes contratos piores.
Deixar a crianças fugirem não seria um problema, principalmente se não forem vistos, mesmo que Neil não escapasse dessa brecha.
— Prestem atenção, há os cavalos… Não, chamaria muita atenção na floresta. Tem uma trilha a oeste, perto de um riacho, só chegar até ela e seguir para o norte.
Bella encarou ele o suficiente para perceber que não haveria alguma palavra sobre as ações dele próprio.
— E você… Não virá?
— Não agora, tenho que dá um jeito aqui… O bebê e a mulher podem piorar. E talvez convencer os cães a não perseguirem vocês, nunca se sabe o que passa na cabeça dessas pessoas, não é?
Silêncio acompanhou o último resquício da voz daquele homem, normalmente seria possível ouvir sons da floresta, como folhas balançando por brisas de ar, mas o silêncio naquele momento era quase total. O som de respiração preenchia a sala.
— O que fará com a criança?
— hm… Acho que não importa muito o que ocorrerá, eles vão acabar levando a criança de qualquer forma. Estou velho demais para ir contra quatro mercenários de uma vez só.
Os olhos de Bella atingiram Monet, que fechou a boca da mulher quase no mesmo momento, não conseguia saber o que fizera nos últimos minutos por não está focando no garoto.
— As veias mágicas estão danificadas e falta energia pro corpo aguentar suprimir toda mana que será absorvida. — Assim como outras vezes Monet não enrolou ou hesitou.
— Ela morreu por causa do parto?
— Não, a lâmina estava encantada por algum tipo de magia caótica, ele tentou me acertar com ela e a energia ricochetou em mim e acertou ela. Ainda está viva.
— Calma, aquele som de tapa quase agora foi você acertando ele?
— Isso ai, usei aquele bofete que aprendi com Emma — disse neil. — agora vão logo antes que percam a paciência.
— Você não… — silêncio por alguns instantes ela pensava. — vai conseguir sair daqui sem nós! E nós também não vamos a lugar algum.. hm… Tem animais selvagens na floresta! E todo o resto também! — a pequena aflição em pensar sobre Neil sendo morto lhe causava uma confusão em suas palavras.
— Não é muito difícil sobreviver na floresta, principalmente perto de uma vila, os animais são mais cautelosos e mantém distância. Sabe, tem caçadores nela.
— Não é esse o ponto principal agora. E se você morrer aqui? Eu não quero ver a Maria triste porque o pai morreu! Vamos embora juntos ou ninguém vai!
O bebê começou a chorar, enquanto Neil apenas sorriu sem mostrar seus dentes.
Bella iria continuar gritando, mas sentiu Monet segurando seu pulso enquanto caminhava em direção da saída, sem expressar qualquer emoção no rosto.
— Vamos logo ou ninguém vai sair daqui. Se tivermos sorte conseguimos chamar ajuda a tempo…
Monet parou de andar ao sentir a garota imóvel, ele nem mesmo havia usado qualquer força para tentar puxar ela, mas ela usava muita força para não sair do lugar.
— Choro incessante, sangue pingando e explosões… — antes de terminar sua fala, o garoto conseguiu sentir o antebraço de Bella girar e remover aquela atadura feita por seus dedos.
Uma disputa entre um brilho dourado e púrpura surgiu com o encontro de ambos os olhos.
Bella estava quase emitindo o som de um ranger de dentes, mostrando claramente em sua expressão uma fúria absurda por ter ouvido aquelas palavras do garoto.
E ele sequer mostrava o mínimo de surpresa ou hesitação.