Guerra de Deuses - Capítulo 1
Era uma noite fria de inverno; iluminada pelas brilhantes luzes da cidade. Acima, o céu estava assustadoramente escuro. Não havia nuvens, estrelas ou a própria lua.
O som de carros e pedestres alcançavam com certa facilidade os ouvidos dele, fazendo-o acordar daquele sonho ilusório.
A multidão ruidosa não percebia, mas naquele beco escuro, próximo do centro, havia um grupo de jovens. Reunidos, causavam um alvoroço em uma cena comum de ser vista.
Ele sentiu o golpe acertar com força, retirando-o dos pensamentos tardios e ininterruptos em que divagava. Em seguida, outro soco jogou-o no chão, atordoado.
Caiu e ficou coberto de lama, naquela viela sórdida. Apanhava e era humilhado sob gritos de alegria dos seus agressores.
Um deles se aproximou e colocou ambas as mãos, frias, no rosto encardido dele.
— Arskan, meu querido amigo. Já não tinha falado pra você que se visse essa tua cara outra vez, arrancaria teus dentes?
O jovem à frente era um dos seus “colegas de classe”. O uniforme escolar dele, luxuoso, mostrava que era o mimado filho de uma família rica.
Claro, covardia era quase o sobrenome de Arskan, portanto não ousaria dizer isso na cara dele, mas a vontade era grande. E, como um bom covarde, fez o que sabia de melhor, implorar.
— P-por favor… — Uma mistura de ranho e lágrimas o impediam de implorar direito. Porém continuava, incessante. — M-me desculpa! Por favor. Me deixe ir.
Risadas ressoaram pela penumbra e, logo, recebeu outro ataque. Caído no chão frio, não conseguia nem se levantar para tentar fugir.
— Você me deu um ordem? Foi o que entendi!? — Recebeu mais uma dúzia de golpes ao ponto de vomitar tudo o que tinha no estômago. — Eu! Não! Vou! Dizer! Outra! Vez!
A cada palavra, bem adicionada de uma semântica agressiva, ele acertava-o com um golpe a mais. Parou por um momento para recuperar o fôlego. Pareceu cansar de atacar.
—Hey, cara, acho melhor pararmos. Se ele morrer, vamos ter problema. — Um, dos dois amigos do agressor, disse isso olhando para o seu relógio. — Temos que voltar pro alojamento logo.
O jovem rico estalou a língua com inconformidade e respondeu:
— Já vou, porra! Só deixa eu terminar aqui.
Arskan quase agradeceu aos céus por isso, porém ainda foi agraciado com outra porção de ataques. Terminado, o agressor agarrou os seus cabelos negros e o encarou nos olhos.
— Não quero te ver nunca mais, lixo humano. Se voltar a aparecer na escola, eu te mato.
Assim estava decidido. Para ele, aquilo era uma chance enviada dos céus. Nunca mais ousaria pisar naquele lugar. Fugiria e nunca mais o encontrariam. Somente assim poderia viver livre…
Ou…
“Mato eles aqui mesmo.”
De repente, Arskan retomou controle do seu corpo. Encarou o olhar bravo de um jovem que lhe era estranho à frente. Atrás dele, havia um par composto de um gordinho e um baixinho.
O gordo olhava para o relógio com impaciência. Enquanto isso, o baixinho apenas ria em alto e bom som.
Uma dor percorria o seu corpo, mas não era nada que não pudesse aguentar.
— Em que merda de lugar estou? — perguntou-se em voz alta, recebendo em troca um soco no rosto.
Foi arremessado para trás.
“Como não consegui reagir a isso?”, perguntou-se outra vez, mas desta vez em silêncio.
Até um momento atrás, até o último poro do meu corpo estava incutido em poder.
“Como posso estar tão fraco?”
— Enlouqueceu de vez, seu merda?! — O grito do jovem rico ressoou no seu ouvido, mas ele fingiu não escutar.
Tentou levantar o corpo magrelo e se surpreendeu por estar ainda mais fraco do que no momento da sua morte.
Cuspiu um pouco de sangue e limpou o rosto ferido. O frio da montanha gélida foi substituído pela brisa gelada de uma estranha cidade que lhe era familiar.
— Você, onde estou? E por que me ataca? — disse para o jovem à frente.
— Ele enlouqueceu de vez mesmo, rapazes — zombou o baixinho.
— Droga! Falei que samerda ia dar nisso — comentou o gordo.
O gordo e o baixinho tiveram reações diferentes a fala dele, mas o jovem ficou enfurecido. Olhando-o, lembrou-se de um fantasma do seu passado, mas não poderia ser possível.
— Pare de se fingir de maluco. Um órfão como você não merece nem estar vivo.
— Órfão? — Arskan não escutava isso há tanto tempo, mas como poderia ele saber disso?
— Droga! — A frustração pareceu abater-lhe, mas Arskan não conseguia entender tal situação.
— Será uma Dungeon? Uma Conquista Ilusória? Se for, então são realmente fantasmas do passado?
“Agora entendo. Talvez tenha que enfrentar o meu passado. Já passei por algo similar antes, mas… eu não morri?”
O jovem mimado partiu em sua direção em um ataque direto. Quando se aproximou, ele desviou do soco que mirava o seu rosto e chocou sua cabeça contra a dele, quebrando o seu nariz e lhe causando dores fortes.
“Dor?”
Outra novidade estranha. Já não sentia dor há muitos anos, portanto um ataque tão simples não deveria ter lhe causado quaisquer danos.
Com o jovem caído no chão, conseguiu tempo para encarar sua situação. Estava vestido com o mesmo uniforme deles, mas o seu era de qualidade bem pior.
Também estava sujo de lama, terra e fedendo a mijo que provavelmente não era dele. Os rostos à frente também não lhe eram ordinários.
Buscando profundamente, lembrou-se de já ter passado por essa situação há muitos anos. Foi trazido a um beco, apanhou até não aguentar mais, saiu da sua escola e teve que viver de favores até o dia da Invocação Mundial.
Contudo esse não foi um momento importante na sua vida. Na verdade, era tão irrelevante que era até difícil de lembrar. Afinal, todos, que um dia lhe fizeram mal, estavam mortos.
Então esse deveria ser somente outro dos joguinhos dos deuses para lhe causar dores de cabeça. Não deixaria que isso se realizasse. Se queriam realmente algo dele, teria que ser à força.
— Vocês continuam brincando comigo? — gritou aos céus. — Acham que não consigo participar do joguinho de vocês? Pois estão muito errados! — O seu rosto estava recheado de loucura.
Quando viram sua fúria desesperada, os dois de pé assustaram-se. Eles deram alguns passos para trás, mas o caído logo tentou revidar o golpe que lhe foi dado.
— S-seu! Maldito!
Tentou outra vez atacar, porém foi recebido apenas com outro golpe e voltou a cair no chão. Arskan aproveitou para montar no torso dele e acertou o seu rosto incessantemente.
Quando a sua face ficou recheada de sangue, ele levantou a mão. Tentava agarrar o seu colarinho, mas Arskan não lhe deu chance. Os seus olhos pareciam não acreditar no que viam.
Mas ninguém acreditaria que um medroso de repente pudesse começar a lhe espancar.
O pequeno delinquente encarou o rosto dele. Especificamente olhou para os olhos. Ele então viu: um par de olhos negros e sem vida, tão profundos quanto o próprio céu e tão escuros quanto o próprio abismo.
Este era o olhar de alguém que sobreviveu ao inferno. Após tantos anos naquele mundo, qualquer pessoa teria olhos assim.
Aquele jovem sempre o atacou por simplesmente sentir-se inferior.
Neste época, Arskan era estudante de uma renomada escola; um bolsista, enquanto o outro, um jovem rico, pagava uma boa quantia todo mês para estudar lá.
Sendo Arskan um dos melhores alunos, ele não conseguia aceitar.
O próprio sentimento o devorou por dentro, assim como o desejo de vingança consumiu Arskan. Ele era digno de pena, mas… essa pena não viria de Arskan.
Como uma cobra, ele moveu o seu corpo para as costas do jovem e enrolou seu pescoço com ambas as mãos.
— Arskan?! Hey! P-por… — Arskan não queria lhe ouvir implorar, então, antes que pudesse terminar, quebrou o seu pescoço.
O corpo ainda quente dele bateu no chão e Arskan levantou, limpando suas roupas. Estava surpreso pelo evento ainda não ter acabado.
— Amigo, pare de brincadeira! Levanta logo.
— Cara… Ele não está respirando!
A dupla que estava paralisada até o momento correu na direção do seu parceiro, mas era tarde demais. Ele já estava morto.
O gordo se levantou e olhou nos olhos do inimigo com fúria. Ele realmente se importava com o amigo, mas isso resultaria no mesmo.
Correu na direção dele, feito um touro furioso. O corpo grande dele poderia ser um problema caso atingisse Arskan em cheio, porém a sua lentidão o permitia ter vantagem.
Assim que se aproximou, Arskan apenas desviou e colocou o pé na frente. Como planejado, o gordo caiu no chão com dureza.
Sem lhe dar tempo, buscou por algo e encontrou uma pedra do tamanho de uma mão no chão.
Enquanto tentava levantar, acertou-lhe com força e continuou batendo até que o som de algo se quebrando ressoasse.
O sangue vazou, mas Arskan conseguiu evitar que o sujasse muito. Apenas as suas mãos ficaram vermelhas.
Ainda com a pedra em mãos, encarou o rosto do último infeliz. Ele olhou para o garoto e notou que havia se urinado inteiro.
— A-arskan… você é louco? Por que você matou eles? A-a p-polícia vai vir e… você vai ser preso.
— Por que eu fiz isso? — Ele queria rir, mas não conseguia. Para ele, os deuses possuíam um senso de humor mórbido. Depois de todos os anos , ainda lhe perguntavam o porquê. — Porque eu posso!
O baixinho ficou branco. Virou-se e tentou fugir, mas logo Arskan o seguiu. Reparando que iria fugir, tentou ativar uma habilidade comum
— Passo Veloz! — proclamou, mas, para a surpresa dele, nada aconteceu.
Essa era uma habilidade simples e, mesmo no estado terrível do seu corpo, ainda deveria ser capaz de usá-la, portanto surpresa era normal.
Isto acabou por dar o tempo que o jovem precisava para chegar aí fim do beco.
Quando Arskan acreditou que seria tarde demais para persegui-lo, um cheiro assaltou suas narinas. Entre o sangue, urina e merda daquele beco, sentiu o perfume da coisa mais pura que existia.
— Mana…
O baixinho que fugia, de repente, como mágica, desapareceu na frente dos seus olhos e até os cadáveres, recém mortos, sumiram. Restou, só, Arskan parado alí.
Ele encarou aquilo por um instante, em contemplação, e as coisas começaram a se juntar na cabeça dele. O seu corpo mais fraco que no momento da morte, a impossibilidade de usar habilidades e essa lembrança do passado retornando… talvez não fosse simplesmente uma lembrança.
E, para completar, aquela última mensagem, que ressoou nos céus de todo o mundo, tornou tudo real.
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Os Novos Deuses Precisam ser Encontrados
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— Voltei ao passado…