Guerra de Deuses - Capítulo 4
Arskan se sentava em uma poltrona próxima da janela do avião. Uma aeromoça se aproximou para verificar se estava tudo certo e para oferecer alguns doces e outros petiscos.
Com um sorriso um pouco bobo e um olhar afiado, tocou-lhe o ombro e levemente deixou um pequeno papel cair sobre o seu colo.
Ela despediu-se com cordialidade e foi atender outros clientes na aeronave.
— Nossa! — exclamou Henry que sentava logo ao lado dele. — Essa aeromoça é mesmo encantadora. O que tem nesse papel?
— Provavelmente o número dela. — Pegou o papel e rasgou sem nem mesmo olhar o conteúdo.
— Senhor? — Ele ficou boquiaberto. — Sei que não gosta de relacionamentos, mas recusar o convite daquela moça é loucura. Estou começando a achar que o senhor é assexuado.
Arskan levantou uma sobrancelha com o comentário, porém decidiu o ignorar por completo; o comentário e o motorista. Havia uma única pessoa em todo o universo que o interessava.
Parou de pensar sobre o ocorrido e passou a observar os demais passageiros. Ele havia alugado um jatinho particular para a sua viagem, porém um imprevisto o impossibilitou de viajar com ele.
Acabou tendo que comprar passagens em um voo comercial comum.
Era fim de ano. Famílias viajavam por todo o país. Ele não acreditou que havia conseguido duas passagens tão de imediato.
Atualmente, o avião se dirigia para a Amazônia. O rosto dos brasileiros parecia livre de preocupações. Sorrisos enormes e um olhar vívido eram as únicas coisas no ambiente calmo.
Aquele era um rosto inacreditável para alguém que conheceu o país anos antes. A expressão no rosto da grande maioria era o completo contrário do atual.
“O Brasil foi um dos poucos países que melhoraram após o incidente.”
A invocação levou a maior parte dos líderes mundiais e pessoas com algum tipo de poder e influência. No Brasil não foi diferente.
Mais de noventa porcento dos políticos desapareceram junto à mensagem no céu. Como em qualquer outro país, o caos de alastrou desenfreado.
Demorou anos para que os poucos que sobraram conseguissem estabilizar a nação. Desde ponto em diante, o país teve um crescimento exponencial.
Livres da corrupção massiva, o povo conquistou um suspiro de alívio. Agora a alegria rondava a população.
O avião decolou e as horas começaram a passar com o tique-taque do relógio.
Cansado de olhar para as nuvens, Henry, entediado, cutucou o jovem ao lado e iniciou uma conversa.
— Cinco anos já passaram, né? — contemplou ele olhando para cima e relembrando. — Nem senti esse tempo passar.
— É, sei.
— Nesse tempo, o senhor sabe, a gente teve vários problemas, mas agradeço você; apesar de você sumir por vários dias e, sempre que volta, eu preciso ir buscar você no hospital. Mesmo assim, ainda agradeço.
Arskan olhou para o rosto do companheiro ao seu lado. Algumas rugas surgiam no rosto e alguns fios brancos brotavam na cabeça.
Um olhar cansado de alguém que trabalhou a vida inteira, mas um sorriso sempre gentil. O corpo frágil que poderia se despedaçar ao vento, porém a confiança de que poderia aguentar um prédio sobre as costas.
E a empatia sem fim de alguém que nunca se deixou abater. Alguém que nunca se deu por vencido e encarou o terrível desastre com um sorriso.
Ele poderia dizer que gostava do homem. Não gostar de alguém assim era um absurdo. Leal, trabalhador e homem de família.
O problema era esse. No outro mundo, poderia até sobreviver. Tinha grandes chances na verdade. Entretanto possuía uma família.
Atenas tinha o costume de separar aqueles relacionados por amizade e confiança, e unir aqueles relacionados por sangue.
“Uma maneira cruel de trazer a realidade?” Talvez fosse, mas era questionável. A consciência daquele mundo nunca fora bem clara.
“É melhor não preocupar ele.”
Ao voltar no tempo, tomou a decisão de não contar para ninguém sobre Atenas. Ele nunca mentiu para o amigo, pois nunca havia lhe perguntado.
Porém, agora, o rosto do homem estava ficando vermelho e os olhos molhados.
— Pare com o sentimentalismo. Você fez um bom trabalho, não? Fez até mais do que deveria.
Durante todo esse tempo, tentou não se apegar a ele, embora parecesse ser tarde demais para isso. Enxergava-o como um pai que nunca teve.
Abandoná-lo era algo difícil.
— Senhor… — Henry queria porque queria fazer a pergunta fatídica. Desejava entendê-lo, no entanto o olhar de Arskan, quando ele estava prestes a perguntar, era demais.
Olhos negros profundos e completamente vazios. Possuía uma certeza; caso perguntasse, obteria uma resposta clara e verdadeira. Desejava, porém, saber mesmo?… Achava que não.
— Será que a comida da Amazônia é boa? — mudou de assunto rapidamente.
— Hm. Deve ser.
❂❂❂
Arskan desceu do avião e, acompanhado do falante motorista, dirigiu-se para uma cidade vizinha; ainda mais distante da civilização e ainda mais próxima da floresta.
Enquanto ele passava pelos belíssimos lugares da região, o motorista agia como um turista louco. Tirava foto de tudo e queria tocar em tudo.
Brevemente, pegaram um ônibus, em seguida um trem e, por fim, um barco até a região mais isolada possível. Um resort que ficava de frente para a grande floresta.
Era um lugar sustentado pelos diversos turistas que visitavam a região isolada. O local possuía até uma maravilhosa vista para o Rio Amazonas.
Passaram a noite em um quarto do resort. Na manhã seguinte, Henry convidou Arskan para um passeio, mas ele se recusou.
Insistiu por um tempo, mas logo desistiu e foi visitar os pontos turísticos. Aproveitou com grande prazer as férias remuneradas.
Anoiteceu e ele retornou ao quarto em que se hospedaram. Viu, sentado perto do parapeito da janela, Arskan observando a floresta.
Aproximou-se de mansinho e acabou escutando alguns comentários: “Eu consigo sentir sua presença. Ele está lá.” Um arrepio percorreu suas costas e ele o deixou em paz.
Ele se jogou na cama e foi dormir.
Arskan levantou da cadeira e se recostou perto da sacada do apartamento. A luz da lua alcançava os seus olhos negros e reluziam no vazio deles.
A angústia, sentida ao olhar para a floresta profunda, fazia até o corpo tremer. Tremia por antecipação e não por medo.
— Vai acontecer em breve.
Durante a noite, alguns moradores locais disseram ter escutado e até visto coisas estranhas sobrevoando a floresta.
— Era um avião.
— Eu vi um helicóptero. Minha vizinha acha que são alienígenas.
No dia seguinte, eles não escutaram mais sons e ignoraram. Mais outro dia passou. Henry, já cansado de festa, chegou em Arskan com dúvidas.
— Senhor, quando iremos embora? — perguntou ele. — Não que eu esteja reclamando das férias, são ótimas, mas sinto saudades da minha família. Minha filha, o senhor sabe, vai ser a primeira a se formar na faculda…
— Amanhã. — Arskan o interrompeu. — Amanhã você poderá ir.
Henry abriu um sorriso e dançou alegremente, até que percebeu a expressão séria do seu senhor. Também notou o uso de “você” ao invés de “nós”.
— E o senhor?
— Eu ficarei.
❂❂❂
— Senhor… — Henry não conseguia dizer nada. Ele não sabia o que falar.
Estavam lado a lado e de frente para a grandiosa Floresta Amazônica. Um lugar que escondia segredos e perigos inimagináveis.
Arskan encarou a mata, reafirmou seus objetivos e deu um passo em frente, porém foi interrompido por um chamado.
— Espere! — exclamou o motorista. Olhos penetrantes, garganta seca e gestos com a mão, como se quisesse agarrar ele. — Q-quando… Quando o senhor voltar! Por favor, passe alguns dias comigo e minha família. A minha filha gosta muito de você.
Aquela não era uma situação que não havia encarado antes. Muitas vezes ele havia desaparecido, no entanto desta vez o sentimento de algo vazio o assombrava.
Arskan desaparecia por dias? Sim. Mas ele nunca saia avisando e nunca para um lugar como aquele. O que faria ali? E por quê? Por que sentia tal vazio?
— Adeus, Henry. — Palavras simples.
Henry de repente abriu um sorriso. Arskan era tão direto, como sempre foi.
— Adeus, Arskan!
Pela primeira vez em cinco anos, a primeira e única vez, Henry o chamou apenas pelo nome. Arskan abaixou a cabeça e apenas correu na direção da floresta.
Queria, também pela primeira vez desde que voltou no tempo, dar meia-volta. Queria, pela primeira vez na vida, passar alguns dias alegremente.
Ter um almoço em família pela primeira vez, conhecer e sair com uma garota pela primeira vez, e pela primeira vez na vida, dizer que estava feliz e satisfeito.
Passar os últimos dias do lado de um amigo. Apenas um desejo que guardou profundamente no peito. Arskan correu sem olhar para trás; precisava cumprir sua missão.
“Droga… ele me pegou.”
❂❂❂
Uma cobra rastejava em subida por uma árvore. Ela lentamente se aproximava de uma presa que estava a uma certa distância.
Pronta para dar o bote, uniu o seu corpo e jogou-se contra o alvo. Um som alto reverberou e pássaros saíram voando pelo ar.
A presa que a cobra caçava também fugiu. O som alto foi de uma lança que atravessou o corpo da serpente. De uma moita baixa, saiu um homem.
Arskan pegou a cobra ainda viva e rapidamente cortou sua cabeça. Chutou a ainda vivida cabeça para longe e jogou o corpo nas costas.
Continuou andando mais profundamente dentro da mata. Dias haviam se passado naquela empreitada. Ele estava cada vez mais fundo dentro da floresta.
Henry ainda havia aguardado alguns dias pelo retorno de Arskan, mas logo desistiu e voltou para casa. Viu sua filha se formar, comemorou e fez o que desejava.
Por outro lado, Arskan se entranhava mais e mais fundo na mata. Quando tinha fome, caçava. Quando tinha sede, bebia da chuva e dos rios.
Percorreu uma distância longa e finalmente se aproximava do destino.
Estava escondido no coração da floresta. Um espaço onde as árvores deram lugar as vinhas que cresceram com o passar dos milênios.
Um lugar onde nenhum outro ser humano pisou.
Pilares que se estendiam acima das copas das árvores, o chão era feito de uma pedra branca e lisa, com gravuras por toda a sua extensão, e estátuas também brancas de formas e tamanhos variados, mas que passavam facilmente dos três metros.
As gravuras na verdade eram runas indecifráveis que nenhum arqueólogo, nem mesmo um mestre, viu em sua vida.
No centro do espaço que era um viveiro para vinhas e cipós, havia sete estátuas em um círculo. As únicas no espaço que as plantas não haviam tocado.
Elas assumiam uma aparência humano. Eram de fato similares, mas havia algumas diferenças claras. O tamanho que passava dos quatro metros e os seis pares de asas.
Além disso, cada estátua carregava consigo um item e havia uma gravura na base, próxima aos pés.
Arskan aproximou-se e lentamente foi retirando a sujeira de cada estátua enquanto lia o que estava escrito na base.
A primeira era de um homem, o mais alto entre eles, cabelo cacheado, uma barba longa e uma armadura. Ela se apoiava no seu item: uma espada longa.
— Metraton, a Espada.
A segunda era de outro homem, o mais baixo. Cabelo liso e oleoso que escorriam pelo rosto, um corpo bem mais frágil que o antecessor e carregava o seu item na mão esquerda: um papilo.
— Ezequiel, o Sábio.
A terceira era de uma mulher. Longos e volumosos fios que desciam até a cintura, uma armadura completa, um olhar afiado, era a única com um sorriso e carregava na mão direita o seu item: uma caveira.
— Samael, a Morte.
A quarta era outra mulher, a última estátua feminina. Cabelo curto que chegava até o ombro com o formato de um onda quebrando, um olhar sério e vestes leves, mas possuía dois diferenciais: um elmo e uma bola de fogo.
— Uriel, a Chama.
A próxima estátua era a segunda mais alta e era de um homem musculoso. Usava apenas um peitoral que deixava os braços a mostra, tinha um bigode poderoso, sobrancelhas grossas e o seu item: um escudo.
— Miguel, o Escudo.
Para os dois últimos, Arskan deu uma atenção especial. Ele parou na frente de uma delas que diferente das outras não tinha cabeça; estava em pedaços.
Usava vestes longas que tampavam praticamente o corpo inteiro e a única características marcante era a cruz no pescoço.
— Rafael, a Cura.
Por último, ele não se sujeitou a olhar por muito tempo. Puxou do fundo da garganta e cuspiu na sujeira. Escorrendo lentamente, surgiu o nome.
— Gabriel, o Poder.
Um homem bonito, com um rosto fino e afeminado, um curto cabelo cacheado, olhos que queimavam com vida e ambos os braços abertos; não possuía nenhum item consigo.
— Braços abertos, ditos serem para abraçar qualquer e… esfaquear pelas costas. — Cheio de desprezo por Gabriel, Arskan se distanciou.
Sentou em um dos pilares quebrados; um de frente para Rafael e aguardou até o dia seguinte, alimentando-se da cobra; morta anteriormente.
Ao amanhecer, acordou e sentiu algo diferente. As árvores estavam mais murchas, um silêncio pairava e os animais pareciam ter desaparecido.
Subitamente, um fedor de enxofre percorreu os arredores.
Arskan bateu com o braço contra o ar para afastar um pouco o cheiro, abriu os olhos bem na direção da estátua.
— Rafael! — gritou ele. — Saia! Eu sei que você está aqui.
O pouco barulho de repente cessou de vez. Deu alguns passos cambaleantes para trás, quase caindo no chão, e a visão turvou.
Conseguia escutar o suor se formar e escorrer pela pele, cada respiração rápida, o som do sangue circulando pelas veias e, por fim, o coração a bater em um ritmo acelerado.
As plantas, já murchas, terminarem de morrer e secar, como se a vida lhes tivesse sido retirada a força. Não parando nisso, o fedor apodrecido de enxofre se intensificou.
Algo se escondia naquele lugar. Algo antigo e sombrio.
— Humano — soou uma voz grave e dolorosa aos ouvidos —, como sabe o meu nome?
Uma gosma negra e deformada começou a surgir da estátua. Ela foi crescendo, se debatendo, até que assumiu uma aparência humanoide.
Anjos, comumente vistos como seres divinos e de pura beleza etérea. Eram encarnações de tudo o que a humanidade acreditava ser belo.
Criaturinhas voadoras, com cabelos dourados e rostos infantis. O completo contrário daquilo na frente de Arskan.
Rafael era a personificação da morte e do tudo o que é ruim. A maior parte do seu corpo estava queimado. As asas estavam destruídas, em pedaços, e havia pus vazando por todo lugar.
— Rafael… — tinha até dificuldade em olhar para ele — você desceu ao buraco mais fundo.
Conheceu toda a magnitude de um Arcanjo e sabia que, para chegar naquele ponto, ele estava praticamente morto.
Uma aura pesada e obscura quebrou-se contra o corpo de Arskan.
— Como ousa me insultar, humano?! Quem é você e o que quer?! Diga de uma vez ou terá que passar por uma dor inimaginável!
— Você não é nada comparado a Gabriel. — O ambiente subitamente mudou outra vez. Os sons desaparecidos retornaram, pois todos os animais que se escondiam fugiram em bandos. — Neste momento!
Os dedos de Rafael estavam a milímetros do pescoço de Arskan. “Não vi ele nem se mexer”, pensou ele. Um pouco de sangue escorria pelos dedos esqueléticos vindo do seu pescoço e batiam em ordem no chão.
— O que você quer dizer, humano? — perguntou, pressionando um pouco a mão ainda mais na garganta dele.
— Eu vim para ajudar. Eu sei como te curar.
— Me ajudar? — A aura pesada cessou. — Eu sou uma das criaturas mais poderosas de toda a existência. Você não é nem uma formiga se comparado a mim.
A arrogância dos Anjos. Arskan a achava engraçada, embora não pudesse se dar ao luxo e ao tempo de rir
— Rafael, a Cura — proclamou —, posso conceder a você uma chance de vingança contra Gabriel. Posso ajudar você a se recuperar do Fogo Sagrado de Uriel…
Ao ouvir a pausa que se sucedeu ao final da frase, Rafael sabia que não seria de graça. Viveu milênios e sabia que, até aqueles que o louvavam como um ser divino, queriam algo em troca.
— O que quer, humano?
— A poção da Alma Pura e a Cura Sagrada. Somente essas duas coisas.
— Hahaha! — Risadas reverberaram.
— Acha que estou brincando?
— Não. Muito pelo contrário. Você sabe o valor que essa poção tem para nós Arcanjos? Existem somente sete delas em todo o universo, feitas a partir de nossas próprias almas. Além disso, há efeitos colaterais.
— Eu sei, mas ainda a quero. — Ele estava convicto e não daria para trás em um momento como aquele.
— Conte-me então como deseja me curar?
Arskan não tinha mais tempo a perder. Faltavam poucos minutos até que fosse invocado; precisava terminar com aquilo rápido.
— Você vai ter que confiar em mim. Entregue a poção primeiro.
Rafael arqueou uma sobrancelha irritado com a maneira grosseira de falar dele, porém não se deixou levar por isso. Pensou muito bem na proposta.
Demoraria dezenas de anos para que pudesse se curar por conta própria. Aceitar o acordo com um humano, que viveria no máximo mais um século, não parecia tão ruim
Caso fosse enganado, apenas aguardaria. Quando se curasse, arrancaria a poção das profundezas da alma do humano. Ainda precisava ter certeza de um coisa no entanto.
— Entrego-te, mas precisará beber aqui e agora. E saiba, que caso venha a me trair, caçá-lo-ei por toda a eternidade.
— Eu aceito.
O Anjo riu levemente.
— Começo a gostar de você, humano.
Ele abriu a sua mão esquelética. Num piscar de olhos, surgiu um pequeno frasco na palma dele. Nada de grandioso; uma simples aparição.
O objeto era pequeno até para um humano e ainda menor para as proporções de um Arcanjo.
— Aproveite a bebida. — Jogou o frasco que foi agarrado ainda no ar.
Arskan o pegou firme, retirou a tampa e tentou sentir o cheiro, mas não sentiu nada. Dentro, viu apenas um líquido sem cor e o bebeu em um gole.
O mundo instantemente deixou de existir para ele. Cada célula do seu corpo gritava em profunda agonia. Pareciam estar se suicidando uma a uma.
Um instante depois, Rafael lançou um cântico e exclamou:
— Cura Sagrada!
Os céus se abriram e uma gigantesco pilar de luz cortou para baixo, descendo sobre o corpo de Arskan, curando-o e estabilizando a sua energia interna.
Ele levantou respirando pesadamente. Os músculos que construiu desapareceram e estava muito mais magro que antes, mas a expressão era de satisfação no rosto.
— Poderia ter invocado o feitiço um segundo antes, não é? — reclamou.
— Óbvio, mas não teria sido divertido — debochou. — Sabe dos efeitos da Alma Pura?
— Sim. Uma dor excruciante, cada segundo que se passa é como ser esfaqueado por mil lâminas, a perda de metade dos meus atributos físicos e… — Ele abriu um sorriso. — A capacidade de diminuir os efeitos colaterais ao adquirir mais de uma classe.
— Você pesquisou bem. Acha que não sabe mais do que deveria? Mas isso não importa. Diga-me, como vai me curar?
Arskan virou na direção da mata. Ainda estava pensando se realmente deveria ajudar. Rafael era um traidor da sua própria raça; da própria família.
Ele deveria ter suas razões, mas não mudava o fato de ter traído seu irmão Gabriel e por isso foi queimado vivo por sua irmã, Uriel.
Os outros detalhes da trama, apenas os três sabiam. Por sorte, ou azar, conseguiu escapar para um mundo menor: a Terra.
Sendo um traidor, salvar sua vida era um problema. Depois de se curar, não havia nada que o impedisse de ir atrás de Arskan.
Entretanto decidiu cumprir com sua palavra e ajudar. “É melhor viver com a dúvida de uma traição do que com a certeza da morte.”
— Você precisa de almas e eu as darei para você. — Sobre os olhares atentos do Arcanjo, puxou um isqueiro. — É irônico, não? Você vir parar aqui por causa do fogo e só conseguir se curar por causa dele?
Em vários pontos da floresta, grupos de homens pagos por Arskan colocavam fogo na floresta que havia sido coberta de produtos inflamáveis há dias pelos aviões e helicópteros que a população havia avistado.
Arskan estava queimando a Amazônia.
— São tantas… — Rafael estava em êxtase — tantas almas!
Os ferimentos estavam sendo curados a olho nu e ele continuava absorvendo mais e mais como um buraco sem fim.
— Adeus, Rafael. Em mais um ou dois anos, você vai estar completamente curado. Espero que a gente não se reencontre nunca mais.
— Eu digo o mesmo, humano.
Um cheiro forte de mana percorreu o corpo de Arskan e ele desapareceu no ar. Todas as pessoas do mundo desapareceram.
Restaram apenas os animais, plantas, uma floresta em chamas e Rafael. Ele desejava nunca mais reencontrar aquele humano, porém sabia que era inevitável.
— Em que patamar ele vai estar quando nos reencontrarmos? Estou ansioso para ver.