Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 23
Arthur se movia o mais rápido que conseguia, seus sapatos grudando na lama a cada passo. Todos os fuzileiros posicionados ao longo da fila tentaram persuadi-lo a ficar dentro das carroças, nenhum deles sabia que ele era um dos voluntários.
Mas o garoto apenas os ignorou, e eles não tentaram ir atrás dele. A sensação de mau agouro que vinha do início do comboio era algo que só sentiu, em menor intensidade, uma vez em toda a vida.
Na noite em que atacaram sua casa, na noite em que quase toda a família morreu, na noite que aquela entidade sobrenatural comandou o exército de mortos e apagou a cidade inteira do mapa.
A “energia” que emanava da figura cadavérica comandando os corpos era semelhante a que sentia agora, mas a dimensão era totalmente diferente. Poderia ser o nervosismo causado pela situação, mas Arthur sentia que talvez seus próprios sentidos ficaram mais aguçados.
Normalmente, o mais novo dos Guerra não daria atenção a algo com um “pressentimento”. Apenas a lógica e a razão seriam seus guias. Entretanto, isso era antes. Antes de cadáveres voltarem a se mexer, antes de monstros que se desintegram na luz do Sol, antes de presenciar uma casa inteira ser reduzida a cinzas por um único indivíduo.
Ele sabia que, seja lá o que aconteceu com o mundo, tudo havia mudado. Sabia também que ele agora era parte desse novo mundo. Era frustrante pensar que tudo que sabia talvez tenha se tornado inútil em somente alguns dias.
Mas era ainda pior o sentimento de que seu irmão talvez estivesse em perigo. Jamais iria se perdoar caso algo acontecesse com Lucas porque ele não fez nada para ajudar. Não se consideravam próximos antes, mas agora ele era a única família que tinha sobrado no mundo.
A chuva continuava forte, limitando muito a visão do ambiente. O perigo era alto e a qualquer momento um vampiro poderia saltar das árvores em sua direção, mas Arthur seguiu adiante. Não era coragem pura, também era medo. Nada move alguém como o medo de perder algo importante.
No horizonte, enxergou o contorno do que deveria ser a primeira carroça do comboio. O rapaz parou por um breve momento, estreitou a vista e concentrou a magia nos olhos. Mesmo com a chuva, conseguiu enxergar parte do que estava lá.
“Parece que só tem duas pessoas na carroça…” Achou estranho, deveria haver bem mais gente no interior. Ouviu um único disparo. Procurou ao redor em busca de mais informações e encontrou um homem fardado, correndo na sua direção.
Arthur parou diante dele e perguntou: — Aconteceu alguma coisa?!
— Tem um demônio bem no meio do caminho! — O homem desviou de Arthur e continuou correndo. — Precisamos de todos os fuzileiros, senão todo mundo vai morrer aqui!
As pernas do garoto tremeram ao ouvir isso. Não pelo tom de pavor na voz do homem, ou pela possibilidade de “todo mundo morrer”, mas porque Lucas não estava com ele. Se não estava junto, então só poderia estar lá na frente enfrentando essa coisa.
Nicolas continuou correndo em direção ao centro do comboio, chamando os fuzileiros que encontrava pelo caminho.
Arthur viu essa linha de ação com maus olhos. Se o inimigo era tão problemático que precisariam juntar todos os fuzileiros, o que iria acontecer no espaço de tempo entre eles irem para o fim do comboio e depois voltarem?
“Vai demorar muito pra voltarem… Lucas e qualquer outra pessoa aqui na frente vão ficar sem ajuda.” Vendo que as coisas dependeriam dele, se concentrou em sua visão e seguiu adiante.
Além da chuva, um miasma violeta se espalhava diante da primeira condução. Ouviu mais disparos, dois em sequência e depois um terceiro, e então não ouviu mais nenhum.
Se não fosse a chuva incessante encharcar o garoto da cabeça aos pés, sentiria o suor frio escorrendo por suas costas. Pior do que ouvir tiros naquela situação, era parar de ouvi-los.
Na condução, viu os vultos de duas pessoas se debruçando sobre alguma coisa e discutindo algo que ele não conseguia ouvir direito. Não sabia o que estava acontecendo, mas o nervosismo só crescia. Seu coração parecia que ia sair pela boca e respirar tinha se tornado um desafio por si só.
Correu para a traseira da carroça e se pendurou nos degraus para ver o que acontecia do lado de dentro. Por uma fração de segundo, sentiu que seu coração, o mesmo que batia irrefreado, parou por um instante. Queria dizer alguma coisa, mas parecia que sua garganta não obedecia.
Diante de seus olhos, viu Lucas imóvel no chão da carruagem. Um grande ferimento no peito revelava a violência do ataque que tinha sofrido.
Os dois passageiros restantes pareciam prestar socorro, sem notar que Arthur estava ali.
Um velho se ajoelhou ao lado de Lucas e dobrou as mangas de sua camisa. — Irei começar a compressão no paciente. Que Deus nos ajude.
Viu o homem que deveria ser médico começar uma massagem cardíaca em seu irmão. Sem conseguir dizer ou fazer qualquer coisa, desceu de onde estava. Seus pés afundaram na lama, enquanto tentava processar o que estava acontecendo.
Não poderia ajudar e também não havia muito espaço para acompanhar as tentativas de salvar Lucas. Ao mesmo tempo, o miasma maligno se espalhava pela estrada ao redor. A sensação de perigo crescia, se espalhando pela pele de Arthur como um veneno pegajoso.
O jovem ergueu sua bengala e saiu de trás da condução. Um tronco de árvore bloqueava parcialmente a estrada. Diante da árvore caída, uma mulher caminhava lentamente em direção aos cavalos.
O cabelo vermelho, os olhos que brilhavam na cor roxa, as roupas estranhas e as marcas de sangue já seriam suficientes para uma pessoa comum ter medo. Mas para Arthur a visão era cem vezes pior.
A energia que se espalhava da figura lembrava algo entre os tentáculos de um polvo e as pernas de uma aranha gigante. Se espalhava com violência, como a fumaça de um incêndio incontrolável, e transmitia a sensação de algo pior que a morte.
Com um movimento veloz de cada braço, a mulher cravou as mãos nos pescoços dos cavalos presos à carroça. Os animais se debateram por pouco tempo, até que a figura desconhecida arrancou suas gargantas de uma única vez.
Os equinos caíram ao chão, imóveis, conforme a vida deixava seus corpos. A mulher encarou Arthur e esboçou um sorriso enquanto lambia o sangue que escorria pelos dedos.
Um calafrio percorreu o corpo todo do jovem. Suas pernas queriam lhe trair, enquanto recuava instintivamente para trás — seu corpo gritava com todas as células que aquele ser era perigoso! Seus olhos nervosos encontraram os olhos sobrenaturais da criatura, eram repletos de malícia e nojo.
“Isso deve ser… Um Vampiro Superior.” Lembrou-se do livro e das palavras que leu: “…uma casta única, criada através de um processo muito antigo e desconhecido.” Nem mesmo aquele artefato misterioso possuía informações suficientes sobre a coisa diante dele.
O brilho púrpura que irradiava das íris da mulher se intensificou, assim como o miasma que emanava do restante de seu corpo. Como quem não se importa com aquilo que vê, ela desviou o olhar para a carruagem.
Um único passo do monstro foi o suficiente para o garoto acordar de seu transe. A criatura estava indo na direção de seu irmão, agora completamente indefeso.
Os olhos de Arthur Guerra se incendiaram e uma energia flamejante percorreu seu corpo inteiro. Com o cabo de sua bengala apontado na direção do vampiro, gritou: — Se afaste!
Não houve tempo para respostas, quando uma profusão de fogo se expandiu em direção ao monstro.
A criatura desviou por puro instinto, saltando para longe, mas as chamas a perseguiram sem clemência. A cada salto que dava para trás, o fogo acompanhava, obrigando-a a recuar ainda mais.
Como se tivessem vida própria, as chamas serpentearam violentamente na direção da vampira. Mandando o monstro cada vez mais para longe da carruagem.
Até que veio um passo em falso. Um dos pés do monstro afundou em um grande buraco no caminho, coberto com a água da enchente provocada pela chuva. Este breve lapso foi o suficiente para que o ataque devastador atingisse o inimigo que ameaçava a humanidade.
Sem ter como desviar, o monstro se protegeu usando os braços no último instante. Quando as chamas alcançaram a carne do monstro, uma explosão digna de um festival de ano novo iluminou a estrada, vaporizando todos os pingos de chuva que caiam naquele instante.
O garoto ainda estava se acostumando com aquela energia estranha que fluía no corpo, tentando refinar o controle. Não sabia como usar tão bem, tampouco sabia seu limite para manipular o fogo.
Acender velas e cigarros são apenas truques que poderiam muito bem ser feitos de forma convencional. Enfrentar um monstro usando esse poder, por outro lado, é completamente diferente. O ataque que atingiu aquela criatura enorme no quilombo foi praticamente um milagre.
E nenhuma pessoa sensata apostaria sua vida contando que milagres aconteceriam novamente. Arthur Guerra era uma pessoa sensata, porém dessa vez não poderia se dar ao luxo de recuar.
Quando as chamas, o vapor e a fumaça desapareceram, o vampiro continuava ali. Seus braços em carne viva, ainda incandescentes pelo ataque. Porém a expressão estampada em seu rosto não era de dor, muito menos de medo. Era raiva pura.
Uma raiva direcionada para Arthur. E ele sabia disso, sentia na própria pele a intenção assassina da vampira. Entretanto, não se deixaria ser sobrepujado.
Contrariando a ameaça da vampira, seus próprios olhos brilharam como chamas inextinguíveis, emanando tanta inteligência e ferocidade que até mesmo um guerreiro experiente sentiria medo.
A escuridão agressiva da tempestade parecia recuar diante de sua determinação, tornando a natureza testemunha de uma confrontação não apenas de força, mas de vontade.
Encarando o garoto, o monstro entendeu que as coisas não seriam tão simples quanto imaginava.
A partir desse momento, Arthur Guerra iria lutar até o fim.
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