Impuro Sangue Real - Capítulo 12
Passamos meia hora nos encarando no centro de um acampamento improvisado, em um espaço aberto no meio de algumas árvores que começavam a aparecer à medida que progredíamos para o sul. Eram pinheiros como no mundo humano, mas coloridos em tons pastéis. Deveriam estar em cores mais vivas, mas, como já sabem, estão morrendo como tudo neste mundo.
Não queríamos provocar a paciência da cozinheira, que hoje era a senhorita Flinner. A comida estava acabando e foi o máximo que ela conseguiu fazer. Não que normalmente faça algo extremamente saboroso, mas hoje estava detestável.
A comida não tem cheiro ou sabor, e o aspecto na boca é borrachudo demais para conseguirmos mastigar apropriadamente. Precisamos nos concentrar ao máximo para não fazer careta enquanto colocamos a gororoba para dentro. Observo-a enquanto come, e tenho certeza de que está concentrada para esconder as reações. Ela não admitiria que fez algo ruim nem sob ameaça de uma arma. Eu sei disso, como sei que é impossível que ela tenha gostado de algo assim.
— Amanhã chegaremos a Tântalo. Não vamos ficar muito tempo, a cidade é pequena — disse o Senhor Musk Arlon, quebrando o silêncio, enquanto mais uma vez levantava uma folha enorme de papel, um jornal que havia conseguido com um dos Brownies. — Podem fazer alguns shows de rua enquanto pegamos os suprimentos.
— Amém… — murmurei, pensando em procurar algum tempero eu mesma, se depender da escolha de meus colegas, é capaz de tornarem a comida ainda pior. Então senti o olhar da senhorita Flinner sobre mim. — Estou falando dos shows de rua, não aguento mais ficar sentada.
— Eu não disse nada… Por que está se explicando? — perguntou a mulher ao meu lado, e eu voltei a comer, puxando algo grudento que estava na sopa. — Até pensei que estava falando da comida… Mas pelo jeito que come…
— Ela estava! — dedurou Markson, e eu o fuzilei com o olhar. — Essa rata, além de mentirosa, é uma folgada.
— Seu elfo anão, não se intrometa no que não foi chamado! — protestei.
— Pai, vai deixar ela falar assim comigo? — Markson cutucou o senhor Musk Arlon, que estava ao seu lado, mas o chefe apenas folheou uma das páginas do que estava lendo, fazendo seu filho ficar vermelho de raiva.
Markson pegou a colher, ele faria algo com a comida, mas parou ao observar o rosto carrancudo da senhorita Flinner. Então, soltou a colher e jogou em minha direção uma pedrinha que achou no chão.
Por reflexo, eu segurei a pedra com a mão antes que atingisse meu rosto, mas ela estava queimando como brasa. Um grito pequeno escapou da minha boca antes de soltar o objeto. Na verdade, aquilo era um pedaço pequeno de madeira, que se desfez em cinza assim que encostou no chão. Markson riu com desprezo.
A especialidade do elfo era fogo e metal. Ele aprendeu como ser um ferreiro e mexia exatamente com isso. Sabia como fazer, era uma magia fácil para ele, então não notei quando ele usou contra mim.
— Markson! — exclamou a senhorita Flinner, reclamando com o elfo, ao mesmo tempo que puxava minha mão queimada sem um pingo de delicadeza. Ela estava completamente vermelha, e eu não conseguia mexer direito, sentia que uma bolha estava prestes a se formar.
A ardência se tornou suportável quando a senhorita Flinner passou seus dedos sobre o machucado, curando. A bolha não chegou nem a se formar e a vermelhidão aos poucos deixava de existir.
— Controle mais seus filhos, Musk! — disse a senhorita Flinner. — A gente não consegue nem almoçar sem que eles façam uma bagunça.
— Eles estão se entretendo, a culpa não é minha — respondeu o senhor Musk Arlon, sem dar importância. — Deixa eles se divertirem.
— Sabe o suco que está tomando? — perguntei para Markson, em tom provocativo, ao observar ele beber de seu copo. — Fiz questão de fazer, especialmente para você. Espero que esteja delicioso.
Ele tentou cuspir o que havia bebido e quase se engasgou com o ato. Então, encarou Triket, que estava convenientemente deitada no chão, sem reação, próxima à bebida.
— Você a matou! — exclamou Markson, prestes a ter um infarto. Ele se levantou, e quando senti que avançaria em cima de mim, levantei também. Mas ficamos apenas nos encarando.
— Meu irmão, podemos organizar alguma apresentação de rua? — indagou Hasey, sem querer se intrometer na discussão, acentuando o ‘r’ em cada palavra. Arken concordou com a cabeça.
— Musk! Veja isso, eles vão se matar! — A senhorita Flinner se inclinou o suficiente para tomar o jornal do senhor Arlon. — Faça algo, se não, eu mesma vou fazer e não será com eles, será com você!
— Olha isso, Társila… saiu finalmente a foto do seu príncipe no jornal — apontou o senhor Musk para o papel que a senhorita Flinner segurava.
— Cadê? — perguntei, me inclinando para ver se achava alguma coisa naquela página, mudando completamente os ânimos.
— Eu escutei direito? Estamos falando de algum príncipe? — disse Triket prontamente, batendo as asas e voando para perto. Ela passou diante dos olhos de Markson enquanto se aproximava do jornal.
— Você também estava nessa, Triket? — perguntou o elfo anão, abanando o pó de fada que caiu próximo ao seu nariz. — Se fingiu de morta?
— Não faço ideia do que está falando — falou a fada com ar de indiferença, enquanto procurava comigo a foto do tal príncipe. — Estava apenas tirando um cochilo.
— Então você não colocou nada no suco? — Markson ainda questionava, mesmo que não fosse mais do interesse de ninguém.
— No suco? Não, nos copos… Eu ainda fiz questão de servi-los — respondi ao elfo, o sorriso crescendo em meu rosto. — Só que é melhor que não saiba o que foi, a ignorância é uma bênção.
— Você cuspiu no copo, não foi? — presumiu, fazendo careta e correndo para pegar mais água enquanto cuspia no chão. — Sua sebosa!
— Achei! — gritou Triket, apontando sem parar com seus pequenos dedinhos para a imagem do príncipe.
— Calma, calma, calma, eu quero ver também! — Hasey correu para perto com seu irmão e suspiramos todos igualmente.
Passei os olhos pelo jornal para ver se estava em preto e branco, mas não parecia o caso. Então aquele era o príncipe de verdade? Não era nada decepcionante, mas faltava cor em sua pessoa. A pele do rapaz era acinzentada, o cabelo completamente branco, tão longo que mal cabia na imagem e, ainda assim, incapaz de esconder as orelhas pontudas de um feérico.
Seu olhar sério parecia ameaçar qualquer um apenas com a foto, e a única cor que se notava era de seus olhos, um amarelo bem clarinho. Ele era lindo, mas faltava algo. Mesmo com o olhar maldoso da foto, parecia tão triste e apático, como se estivesse doente.
Estampado em negrito, logo abaixo da foto, estava o nome do príncipe: Dérium Desi. Eu não sei nem ler o número escrito ao lado, indicando o valor da recompensa.
— Parem de olhar! — exclamei, puxando o jornal para meu corpo, contendo o suspiro de todos e os encarando em um tom sério. — Antes mesmo de entrarem nesse jogo, já estava decidido. Ele é meu!
— Deixa de ser idiota. — Triket gargalhou. Eu não dei ouvidos, apenas me afastei um pouco mais daquele ciclo. — Ele é um príncipe, o que está pensando?
— Só que, se ele aparecer, eu também quero… Imagina casar com ele e ser uma princesa? — comentou Hasey, sonhando.
— Casar? — Arken indagou, incrédulo. — Você viu o valor de recompensa embaixo da foto? Seremos ricos se entregarmos ele com vida.
— Ah, meu irmão… quer comparar a coroa de um reino com dinheiro? — disse a feérica irônica.
— E você está achando que vai conseguir casar com ele assim do nada? — Arken respondeu no mesmo tom da irmã.
— Essa é a forma que pensou para acalmar os ânimos? — perguntou a senhorita Flinner para o chefe, que apenas confirmou com a cabeça e com um leve sorriso.
— Concordo com Arken, acho melhor trocarmos por dinheiro. — Triket deu sua opinião de maneira animada e gananciosa.
— Vocês estão surdos? — perguntei, enquanto terminava de rasgar o quadradinho com a imagem do príncipe, aproveitando o momento em que estavam distraídos.
— Társila, eu vou trocar esse jornal por outro! — Quando o senhor Musk Arlon falou, era tarde. Eu já tinha a foto do príncipe em mãos e não podia devolver.
Feitiços de reparos podiam ser simples quando se conhecia o material quebrado, mas eu certamente não entregaria o papel tão facilmente. Para mim, foi uma conquista justa. Ele deixou o jornal à mercê de algo pior nas mãos dos integrantes do circo. Por exemplo, estavam todos com os olhos gordos em algo que não lhes pertencia. Quem sabe o jornal não rasgaria sozinho por esse simples fato.
— A culpa é toda sua. — disse a senhorita Flinner, enquanto massageava as têmporas.
ㅡ Eu vou dizer de novo! Eu estou apaixonada por ele… amor primeira vista. Ele é meu! ㅡ falei, a voz doce e melosa, mas firme, tudo bem exagerado.
Enquanto guardava a foto dentro do grimório, não conseguia disfarçar a mentira que acabei de inventar, e o sorriso que permeava meus lábios completava o toque irônico do discurso:
ㅡ O sangue dele é meu, todo meu, não inventem de querer passar por cima. Vou passar por cima de vocês primeiro.
— Do que estão falando? — perguntou Vult, ao se aproximar do acampamento com o senhor Fixer e um punhado de lenha para aquecer a noite. Finalmente, a temperatura estava começando a esfriar.
— A Társila enlouqueceu de vez — mencionou Hasey, revirando os olhos.
Eu já estava distante.
— Príncipe Derium… — murmurei baixinho, quase em um suspiro.