Impuro Sangue Real - Capítulo 13
A cidade de Tântalo é feia, pobre e completamente infestada de gente com olhos grandes e esbugalhados, com a coluna torta e a barriga exuberante, com braços e pernas tão finos que parecem que vão quebrar a qualquer momento. Talvez sejam atingidos por alguma enfermidade decorrente da falta de magia.
A cidade é tão pequena que só existem duas ruas: uma que vai e outra que volta. Uma rotatória interliga essas ruas em uma das pontas, e se levantar bem a cabeça, consigo ver o final da cidade sem nem mesmo entrar nela.
Hasey e Arken caminharam um pouco, mas logo desistiram de fazer as apresentações de rua e voltaram como o restante, não há o que arrecadar em uma cidade como essa. Duvido que eles consigam entreter alguém aqui, mesmo que a apresentação seja incrível.
Senhor Musk Arlon e a senhorita Flinner são os únicos animados com alguma coisa, enquanto o restante do circo ficou em um acampamento improvisado um pouco distante das margens da cidade.
— Não temos muito tempo, então vamos ser rápidos ou vamos nos atrasar — disse a senhorita Flinner, olhando atentamente cada canto da cidade e caminhando em direção à rotatória. — É uma pena que os irmãos desistiram…
— Estou quase seguindo o exemplo deles… — murmurei, pensando se não seria melhor voltar para o acampamento também.
— Que cara é essa? — perguntou o senhor Musk Arlon, achando graça de alguma coisa em minha aparência.
— Nada — respondi, revirando os olhos enquanto caminhava ao lado do elfo e da fada.
— Se acha que não vai encontrar nada aqui, só voltar para o acampamento — disse a senhorita Flinner sem paciência e testando a minha.
— Concordo com ela… — cantarolou o senhor Musk Arlon, com o sorriso largo no rosto. — Mas vai perder a oportunidade perfeita de fazer uma boa troca com isso aí que tem na bolsa.
— Como assim? — perguntei com uma exclamação visível no rosto, aproximando a bolsa que sempre carrego para próximo do corpo.
Ele sabia que eu estava com o colar que Markson havia roubado? Tenho certeza que fui discreta com isso. Encarei o elfo perplexa.
— O que você quer trocar? — perguntou a senhorita Flinner, desconfiada, e eu engoli seco a pouca saliva que se formava em minha garganta.
Ela não aprovaria minha atitude de roubar um “colega”, nem se eu explicasse detalhadamente que o elfo anão estava pensando em passear desfilando com o colar roubado para se exibir, sendo burro o suficiente para estampar um objeto que obviamente não era dele para todos os visitantes do circo se questionarem.
— Tanto faz… pode ser qualquer coisa — bufei, desgrudando a bolsa do meu corpo. — Aqui não tem nada… como que vou fazer alguma troca?
Os dois ficaram mudos sem me responder. Os encarei com os olhos cada vez mais estreitos e eles apertaram os lábios como se guardassem algum segredo. Depois voltei a encarar a cidade feia e acabada, procurando a pegadinha por trás da animação de meus companheiros.
— No meio do nada… — murmurei, sendo observada pelos dois. — Como essa cidade se sustenta?
Se a terra fosse rica, a pergunta seria incabível. Muitas cidades eram autossuficientes antigamente. Viviam do que colhiam e, às vezes, tinham o suficiente para doar e presentear a coroa. Faziam festas quando havia visitantes, brincavam com estrangeiros, era algo cultural. Contudo, hoje, pensar nisso é ridículo.
Ser pacífico… ser tão pacífico foi o que levou o antigo rei à ruína, pelo menos é o que os boatos circulam. As cidades que tinham essa cultura sumiram, não existe gente tão pacífica assim no Continente da Lua desde que Zilo assumiu o poder.
Então, o que é isso? Mesmo se essa cidade fosse algum resquício do passado, não era assim que eu imaginava que seria. Não quero nada doado dessa gente, eles não parecem que têm nem para eles mesmos… aparentam estar doentes, cheios de brotoejas, a pele tão enrugada que as dobrinhas na superfície do corpo parecem um peso a mais que carregam. Seria o último lugar em que eu pensaria em passar para trocar algo de valor.
Nem guardas existem aqui para cobrar taxas e impostos que as cidades normais possuem. Devem ter repulsa de passar perto de um lugar como esse. Mesmo que os habitantes não estejam doentes de verdade e seja apenas uma lamentável característica física, a cidade é tão pequena que nem valeria a pena o esforço. Então, o que diabos viemos comprar aqui?
— Estou sendo enganada, né? — perguntei o óbvio, com um suspiro prolongado. O sorriso dos dois aumentou e eu comecei a olhar mais atentamente o lugar em que estávamos.
Os cidadãos não tiravam os olhos de nós, e mesmo acostumada a ter toda atenção nos palcos, não é legal quando isso acontece fora dele. Fiquei constrangida para encarar de volta. Assim, ficava difícil de encontrar outra coisa além dos defeitos e da feiura dessas criaturas.
Feios de aparência e mal vestidos com roupas aos farrapos. Observava cada vez mais os detalhes e fiquei arrependida de procurar quando comecei a notar as unhas tortas e os dentes amarelados, quando não estavam faltando. Eu continuava apenas encontrando mais e mais defeitos para os chamar de feios.
— Vou seguir vocês e trocar o que trouxe — disse impaciente, sem querer encarar mais as criaturas. Confiava no elfo e na fada que me trouxeram, já bastava.
— Vamos contar logo… — disse o senhor Musk Arlon, como se pedisse permissão para a senhorita Flinner. — Ela vai ser pega de surpresa.
— Contar o quê?
— A cidade é rota de três cortes importantes e aqui é o ponto de encontro. Tântalo é um dos maiores centros comerciais já existentes, desde o Antigo Reino — antecipou o elfo, quando paramos na ponta da cidade, onde fica a rotatória que dá acesso à rua que volta.
Há um espaço grande nesse lugar que parece uma praça, com bancos espalhados em algumas pontas e pequenas barraquinhas vazias. Passei rapidamente o olhar e observei que há mais dois outros visitantes que não querem chamar muita atenção, cobrindo o rosto com uma máscara simples, preta e sem detalhes, e a cabeça com um capuz, os dois vestidos completamente de preto. Deduzo serem visitantes, mesmo escondidos, eles contrastam com os moradores.
— Eu não estou vendo nada de mais — comentei. — Não era para a cidade ser rica?
— Os cidadãos são amaldiçoados… não podem comer ou beber e não possuem dinheiro para comprar nada — apontou a senhorita Flinner com certo pesar na voz. — Não importa quantas riquezas passem diante de seus olhos… não conseguem pegar, nem acumular um único centavo. E por serem imortais, essas criaturas que vivem aqui precisam conviver com isso pela eternidade, apenas nos observando.
— Que horrível! — exclamei sem pensar. — Então é pior do que imaginei, por que isso?
— Sim, horrível… mas esse é o melhor disfarce para essa cidade e existia muito antes de Zilo tomar o poder — apontou o Senhor Musk Arlon. Ele era o único entre nós que evitava olhar diretamente para os cidadãos.
— A cidade foi fundada com a coroa e praticamente com a coroa essa maldição foi criada — a senhorita Flinner continuou a explicação. — Acontece que Tântalo sempre foi essa rota comercial, e cresceu muito mais que a capital. Então eles queriam independência logo nos primeiros dias que a família real subiu ao poder. Eles não queriam aceitar ser governados… e naquela época a magia era tão abundante e discriminada que essa maldição foi lançada como castigo para os cidadãos dessa cidade.
— Estão presos aqui desde então — completou o Senhor Musk Arlon, com a voz mais tranquila e acostumada. — Com os anos, a cidade foi sendo esquecida e apenas viajantes, trocadores e comerciantes sabem desse lugar. Quando se ouve falar da boca de alguém de algo assim, acaba parecendo uma mentira. É difícil desmanchar uma rota comercial tão antiga, mesmo com um rei tão tirano no poder.
— Só que… — parei de falar, ainda observando os cantos da cidade. Estava caindo aos pedaços, e os habitantes pareciam cansados demais para serem negociantes. — Eu ainda não entendi como vamos comprar alguma coisa com eles, não tem nada aqui.
— Eles? — perguntou a senhorita Flinner como uma exclamação. — Não escutou o que eu disse? Não são eles os comerciantes.
Fiquei muda, cruzando os braços em seguida. Eu não estou vendo mais ninguém aqui, mas talvez eu tenha deixado algo importante da explicação passar despercebido.
— Ah! — Abri a boca quando finalmente entendi e a senhorita Flinner balançou a cabeça satisfeita. — Rotas Comerciais…
— Eles combinam para chegarem ao mesmo tempo, Társila — disse o senhor Musk Arlon, achando graça de alguma coisa.
— Muda todo ano, mas tenho certeza que esse é o horário certo. — A senhorita Flinner rodou no mesmo eixo, procurando por algo até encontrar. Então abriu um sorriso também. — Estão chegando.
E do Sul, do Leste e do Oeste, uma aglomeração de carruagens se formava. As tendas de feiras foram montadas tão rapidamente que ocuparam de maneira desleixada toda a cidade.
Havia tanta gente que não conseguia acompanhar com os olhos a agitação. Os comerciantes faziam negócios entre si e ignoravam as pequenas criaturas de olhos esbugalhados, donos da cidade.
Os cidadãos continuavam apenas observando, mas deixaram de chamar atenção. Só então percebi o quanto a cidade era silenciosa antes desses ambulantes aparecerem. A calmaria chegava a ser a única coisa realmente bonita na cidade. Contudo, particularmente, eu gosto mais desse caos comercial.