Impuro Sangue Real - Capítulo 5
Quando comecei a narrar esta história, percebi que deixei passar despercebido alguns pontos importantes. Embora acredite que mencionarei em algum momento, acho válido reforçá-los agora. Por isso, reservei este pequeno espaço para destacá-los, antes que eu os esqueça novamente.
Um dia, eu acordei em um buraco, algo como um alçapão, em uma casa muito destruída. Passei dois anos completamente sozinha, sem memória alguma, antes de encontrar a passagem para o mundo mágico. E não, não é necessário morrer para acessá-lo. Não sei o motivo, mas essa ideia sempre parece uma possibilidade na mente de algumas pessoas.
Eu apenas segui um dos Brownies, e acabei chegando aqui. Não são todos os que conseguem transitar entre os mundos; é necessária uma chave específica, e não tenho ideia de onde a encontrar. Já tentei roubar, mas as chaves sempre retornam para seus donos.
A questão é: quem, em sã consciência, seguiria Brownies ou qualquer ser mágico? Na verdade, quem, em sã consciência, seguiria qualquer pessoa desconhecida? Hoje em dia, consigo perceber o quão problemático isso poderia ter sido.
Para ser sincera, admito que o meu senso de perigo sempre foi um pouco falho, e isso continua até hoje. Na época então… Achei aquelas criaturas fofas e sempre fui solitária quando criança, queria apenas brincar.
Faz cerca de oito anos que estou neste mundo mágico e, ainda assim, estou constantemente aprendendo coisas novas. Então, não adianta tentar absorver tudo em tão pouco tempo. Além disso, não sou ótima em explicar as coisas, então não esperem muito de mim nesse sentido.
Já que reservei este espaço, creio que seria bom compartilhar um pouco mais sobre mim, ainda que não seja nada que me agrade. Apesar de gostar de chamar a atenção, não me sinto confortável ao me colocar nesse tipo de destaque, especialmente porque não lembro quem sou de verdade; isso me faz sentir estranha ao falar sobre mim. De qualquer forma, aqui vão alguns pontos sobre minha personalidade.
Não me desculpo com tanta facilidade, sou um pouco egoísta e, por fim, tenho o hábito de reclamar sem necessidade, apenas pela vontade.
Me gabando? Não, nada disso. Estou apenas falando, pois, infelizmente, a maioria do circo me acha chata para conviver em grupo. Acabo tendo poucos amigos e minha pior qualidade é me divertir com o estresse alheio e não me importar com o fato de precisar envenenar meus colegas para testar algumas poções.
Nada tão grave quanto parece, é pelo bem da ciência. Além disso, eu também testo as poções em mim mesma, não tenho problema com isso, mas… às vezes não é suficiente.
Eu nem sei como foram meus primeiros anos de vida para explicar o motivo real de eu ser assim. Também não posso afirmar se isso tem alguma influência, já que não me lembro de nada. No entanto, se fosse para especular o motivo de ser tão chata, eu diria que prefiro fazer alguém chorar do que chorar por esse alguém.
Queria ser mais delicada, acho isso bonito. Porém, até o jeito que ando me faz parecer desleixada, mas é só porque vivo procurando ingredientes gratuitos quando passamos pelas florestas, ou no chão das cidades. Mas a isso, culpo os meus colegas. São todos trogloditas e ignorantes que não me ensinaram boas maneiras quando eu era criança. Agora, reclamam porque me tornei quem eu sou.
Há algum tempo, percebi que as coisas que me interessam são completamente opostas às de outras pessoas. Não quero ser rica, não ligo para a interação social e pouco me importa se consegui causar uma boa impressão de primeira. Só quero aprender a fazer minhas poções da melhor maneira possível e, quem sabe, poder dominar a magia.
Nem mesmo o fato de não ter memória me incomoda tanto… me incomoda é claro, só não tanto… é que não consigo consertar isso e fico com raiva quando penso muito nesse detalhe, então esse buraco que existe em minha mente… decidi que o melhor a se fazer por enquanto é ignorar. Talvez alguma pista de quem eu sou apareça ao decorrer da minha vida e se não aparecer… pelo não serei alguém frustrada que passou a vida inteira procurando e perdeu as melhores oportunidades no percurso.
Como eu disse, minhas prioridades são um pouco diferentes. E não adianta dizer que estou fazendo a escolha errada, já ouvi várias vezes que deveria me preocupar mais comigo mesma, procurar descobrir o que me aconteceu e de onde vim. A questão é que já tentei, mas não encontrei respostas, pistas e nem nada que me motivasse a continuar. Não sou tão paciente para ficar insistindo em algo que não sai do lugar.
Tem mais uma coisa importante antes de encerrar. Eu quase esqueci de falar da Senhorita Fliner. Parecerá uma mudança brusca de assunto, mas… talvez seja isso mesmo.
Ela é a dona do bar caseiro, que sempre viaja ao nosso lado no circo.
Uma fada do meu tamanho, com cabelos brancos, mas com rosto de boneca, seus olhos são de um tom tão azul-claro, que parecem pratas e combinam perfeitamente com seu cabelo.
Foi a senhorita Fliner que me proibiu de entrar na taberna, mas foi ela também que me ensinou tudo que sei sobre poções. Afinal, ela mesma cria as poções com sabores exóticos… as famosas bebidas do bar.
Ela me ensinou truques, como carregar sacos de coleta, luvas de couro para manipular ingredientes e uma pequena adaga para cortar as raízes difíceis que encontro pelo caminho.
Admito que a acho uma fada incrível, mas o que ela tem de incrível tem de estressada. Às vezes, me pergunto se parte do meu gênio difícil não foi por conta do grande convívio com ela. Mas, quando penso muito nisso, seria injusto culpar apenas um fator, entre tantos que já apresentei.