Impuro Sangue Real - Capítulo 6
Acordamos tarde todos os dias. Pelo menos eu acordo. Os espetáculos duram a noite inteira e, quando acaba minha parte, gosto de assistir à apresentação dos demais. É impossível dormir antes disso.
Não há café pela manhã, não temos condições de manter isso. É sempre assim: o almoço e a janta são servidos em conjunto, e o café da manhã, individualmente… cada um que se vire como pode. Então, acabamos dormindo até tarde mesmo.
Lanches e petiscos são luxos demais, e geralmente, só temos as bebidas para nos distrair. Não podemos ficar bêbados o tempo todo, precisamos trabalhar e a senhorita Flinner nos mataria.
O dinheiro dos espetáculos, que não é grande coisa, precisa ser dividido entre as despesas do circo, alimentação e todos os outros gastos para as apresentações, como roupas, instrumentos e até mesmo para locomoção de um lugar para outro. Reparos no circo também custam caro, portanto não é à toa que estamos sempre no negativo.
Claro que, se fosse depender apenas do dinheiro arrecadado, o circo não se manteria em pé. Ainda assim, o que roubamos acaba sendo devolvido para o reino em forma de impostos e tributos aleatórios, mesmo que ocasionalmente acabemos encontrando métodos de trapacear nessa parte também.
Desde o fim do almoço, giro algumas vezes o caldeirão de poções ao ar livre, esperando o resultado da nova invenção. O líquido tem um cheiro incomum, mas não reconheço de onde, mesmo que seja algo que me agrade um pouco.
Estou testando uma poção da verdade, uma receita retirada do grimório. Segundo as instruções, quem tomar a poção só poderá dizer a verdade durante um dia inteiro. Não há feitiço conhecido que possa reverter seus efeitos, nem mesmo treinamento que os impeça.
Achei interessante, no entanto, como de costume, não possuo nenhum dos ingredientes listados no livro. Portanto, decidi testar com substitutos genéricos. Ou o que acho que sejam genéricos.
Quando a fumaça para de sair é sinal de que a poção está pronta, diferente da baba de dragão, essa não se bebe quente. Essa parte acertei. Mas, o problema é que ela deveria ficar transparente no final e não amarelada.
ㅡ Então… quem vai experimentar primeiro? ㅡ perguntei, servindo meio copo da poção e olhando para Triket e Markson. Eles já estavam cientes do que eu estava planejando. Ambos estavam sentados no chão, sem nada para fazer, enquanto eu me dedicava aos experimentos.
ㅡ Você ficou louca? ㅡ questionou Markson, fazendo careta. ㅡ Você quem deveria beber.
Triket voou e pousou no cabelo ensebado do elfo, o que me fez fazer uma careta. Que nojo, suas asas e corpo ficariam todos grudentos quando voltasse a voar. O chão está bem mais limpo, mesmo assim ela preferiu a cabeça do elfo.
ㅡ Covardes ㅡ falei, cheirando a poção. Realmente, o cheiro não era nada mal.
Sinto o líquido deslizar pela garganta, trazendo um frescor incrível, como se fosse algo gelado tocando nos lábios. Mas, não deveria estar frio. Pisco algumas vezes e coloco o dedo no líquido. Não estava gelado. Bebo mais uma vez e tento saborear melhor. Finalmente, reconheço o gosto e procuro no grimório algo que explique o sabor de cerveja.
No final das instruções de preparo, há uma parte reservada na folha do grimório descrevendo a cor, a aparência e a viscosidade que o produto final deveria ter. O aspecto que mais me surpreendeu é que a poção da verdade original deveria ser semelhante à água. Isso significa que, se fosse bem-sucedida, eu poderia misturá-la com praticamente qualquer alimento ou bebida, e o alvo nem mesmo perceberia o que estava consumindo.
Não consigo imaginar o que poderia fazer se isso desse certo… bem, na verdade, consigo sim.
ㅡ Vamos, façam alguma pergunta. ㅡ Pedi aos dois curiosos e covardes à minha frente, colocando mais um pouco do líquido no copo.
Aquilo era estranhamente bom, mas decepcionante. O líquido no caldeirão era totalmente diferente do que estava descrito no grimório, mas seria desperdício jogar fora sem testar o produto.
Pelo menos a bebida é boa, apesar de não ser como a água. Acho que ninguém no circo desperdiçaria uma boa cerveja gelada e poderia enganá-los dessa forma.
No mundo mágico, não há freezer, nada que conserve o gelo por muito tempo, exceto, é claro, a magia. A magia de gelo, no entanto, não é uma coisa que todos possam fazer. Você precisa ter uma linhagem ou saber o feitiço certo, além de ter um pouco de conhecimento sobre física e transformações de substância. É preciso ter também uma base boa de química e composições de matérias. Não são todos os que estão dispostos a aprender, e não é um conhecimento acessível a todos. É caro.
Markson e Triket pareciam mais curiosos que o habitual ao me verem repetindo.
ㅡ Eu primeiro! ㅡ Triket exclamou e se animou, batendo suas asas delicadas, mas sem sair do lugar. ㅡ O que você acha do Markson?
ㅡ Ele é incrivelmente talentoso ㅡ respondi rapidamente, sem esforço algum. O Elfo me encarou desconfiado, e eu bebi o restante da poção do copo. ㅡ Por que não deu certo? Pergunta mais.
ㅡ O que você mais gosta em mim? ㅡ Markson perguntou, cerrando os olhos.
ㅡ Da sua elegância, sabe, o quanto sua postura é impecável ㅡ disse ao encarar os pés sujos e descalços de Markson, subindo meu olhar para a roupa com os botões abertos, mostrando sua barriga suja de graxa. ㅡ É, realmente não deu certo.
ㅡ Para sua informação, eu acabei de terminar um trabalho! ㅡ o elfo gritou em sua explicação, percebendo que menti.
Markson era o responsável pelas reformas do circo, além de ser ferreiro. Na época anterior à dominação de Zilo, ele passou trinta anos estudando essa arte, mas, quando o caos foi instaurado, ele seguiu a maioria e preferiu ficar com a família, abandonando a sua antiga profissão.
A questão é que, se você não vendia para os ricos do norte ou já possuía um mercado estável, a maioria dos negócios se tornou insustentável para o centro e para o sul.
Ainda assim, não posso afirmar se ele era habilidoso ou não nisso, pois nunca se ofereceu para criar algo para mim. Além disso, pelo que percebo, o circo está constantemente quebrando e rasgando. Ele vive reclamando quando trabalha com fogo, de suas mãos ficarem calejadas quando martela, então me custa a acreditar que um dia ele trabalhou criando armas.
Armas encantadas, é claro, elfos conseguem transmitir parte de sua magia e encantamentos para objetos.
ㅡ Você consegue ao menos me elogiar direito?
ㅡ Claro ㅡ respondi, mas neguei com a cabeça, vendo a expressão de frustração no rosto do garoto enquanto cerrava os punhos.
ㅡ Então, eu também não conseguiria elogiar você ㅡ falou com certa arrogância, tanto na voz quanto no olhar. ㅡ Você não consegue fazer nada direito.
Mesmo sob o efeito da poção, eu continuava a mentir sem esforço, embora sentisse a queimação na garganta provocada pelo líquido. Era um efeito que eu já conhecia, mas não era a poção da verdade.
ㅡ Pelo menos a bebida é boa, ela é gelada e alivia o calor. Experimentem, o gosto parece cerveja.
Comentei, servindo mais dois copos, enquanto ponderava se poderia estar me enganando. E se, sem saber, eu estivesse falando a verdade? Se, no fundo do meu coração, eu realmente achasse Markson talentoso? E ao encarar a aparência desleixada do elfo ㅡ a sebosidade de seu cabelo e de sua roupa ㅡ, se, bem nas profundezas do meu subconsciente, eu o considerasse elegante? Este seria o último teste, para eliminar todas as dúvidas.
ㅡ Na próxima vez, as perguntas vão ser sobre você, Triket ㅡ declarou Markson, pegando os dois copos. Ele bebeu de um deles e colocou o outro no chão. ㅡ Finalmente, você fez algo que preste, mesmo que não seja a poção da verdade.
ㅡ Delicioso banho de bebida ㅡ proferiu Triket, dando um mergulho no seu copo. ㅡ É até melhor que não seja a tal poção. Você não tem limite, seria um caos.
ㅡ Está exatamente como no grimório. Não sei o que deu errado ㅡ disse uma mentira óbvia, voltando a analisar o livro, a parte em que só eu conseguia ler.
É… realmente, não estou enganada. A poção não funcionou nadinha, não estou falando a verdade sem saber. Apenas mentindo.
ㅡ Só não tomem muito ㅡ comentei, com o ar deprimido. ㅡ Isso é veneno.
Triket derrubou o copo no chão, ao se debater nas bordas em desespero. Enquanto Markson tentou cuspir tudo para fora, mas já havia bebido mais da metade.
ㅡ Sua maldita! ㅡ gritou o elfo.
ㅡ Vocês não vão morrer ㅡ disse, pensando sobre os possíveis efeitos posteriores da poção e no que eu fiz de errado para se tornar veneno.
Pode ter sido porque simplesmente ignorei as três gotas de sangue real e não coloquei nada para substituí-las. Sangue real aqui, sangue real ali, o grimório não diz o motivo para ter tanto sangue envolvido, como se fosse fácil conseguir algo assim. Queria saber como os criadores dessas poções conseguiam tantos ingredientes.
ㅡ Aqui, tomem. ㅡ Entreguei o balde com água e os dois me olharam desconfiados, deitados no chão, já sofrendo antecipadamente.
O efeito do veneno mal havia começado de verdade. Nada de muito grave, além da boca seca e a queimação na garganta que deveria estar acontecendo com eles. Eles ficaram se esfregando no chão e gemendo de dor, mas era apenas drama. Ninguém do circo veio acudi-los.
ㅡ É só água.
ㅡ Quem acredita em você? ㅡ indagou Triket, cheirando o líquido, com o rosto embravecido. ㅡ Sua rata desprezível.
ㅡ Então morra, farei sanduíche de você logo em seguida ㅡ respondi por impulso, ajustando mais uma vez a tiara em minha cabeça. Às vezes, esqueço que estou usando algo assim. ㅡ Olha só, parece que a poção começou a fazer efeito, não estou mentindo com minhas reais intenções.