Impuro Sangue Real - Capítulo 7
Tentei colocar o restante do líquido do caldeirão em uma garrafa transparente que encontrei vazia. O gosto era realmente ótimo e a sensação de ter algo gelado na boca, nesse calor insuportável, era simplesmente impagável.
Venenoso ou não é apenas um detalhe; não estou disposta a desperdiçar ou jogar minha tentativa fora. A poção já é tóxica, então não preciso me preocupar com a validade. Só vejo vantagens. Contudo, o detalhe do veneno começa a ser ainda mais perceptível quando termino de armazenar a porção.
Minha pele estava úmida de suor e o cansaço aparente, estava arfando sem ter feito esforço algum. Ainda que estivesse distante do espelho, podia imaginar claramente o reflexo que me aguardava: uma figura abatida, com olhos talvez vermelhos e lacrimejantes pelo início da exaustão. Efeito do veneno.
Procuro um lugar para sentar, mas a tontura me atinge e, por não encontrar nada, acabo sentando no chão mesmo. Estico as pernas e apoio as mãos para trás. Markson e Triket foram procurar ajuda com a senhorita Flinner. Enquanto isso, o restante do circo está ocupado preparando as apresentações para mais tarde, e eu estou aqui, olhando para o nada agora.
Pensando no que posso fazer para melhorar a situação, lembro que tenho um pouco de carvão ativado na bolsa. Isso deve servir para começar. Não é nada mágico, mas funciona da mesma forma. Minha mão treme e, então, percebo que talvez o veneno não seja apenas um detalhe que eu possa simplesmente ignorar.
Inspiro e expiro lentamente, meu corpo está acostumado com o veneno. Se eu conseguir aguentar a pior parte, o efeito inicial, meu organismo faz o resto e, com sorte, estarei bem o suficiente para, pelo menos, assistir às apresentações.
Quando encaro o chão, tenho a sensação de que a terra está balançando, que as pedrinhas estão flutuando e tremendo mais do que eu. No entanto, percebo serem apenas os passos pesados da senhorita Flinner se aproximando.
ㅡ Nem adianta fugir ㅡ falou a voz abafada, chegando aos meus ouvidos. Olho ao redor para ter a certeza se ela falava comigo. Minha visão começa a escurecer, meu corpo fica dolorido. Como ela acha que fugirei?
ㅡ Está bem ㅡ respondo, quase sem forças.
Se eu estivesse em condições, realmente tentaria fugir. Não gosto de conversar com a senhorita Flinner quando ela está tão irritada. Não há nada que eu possa dizer para acalmá-la; em situações normais, eu apenas esperaria que ela se acalmasse por conta própria.
ㅡ Eu já sei o que você fez! ㅡ exclamou, sua voz agora era mais firme, mais próxima de mim. Ela carrega um balde enorme de água e o coloca ao meu lado. ㅡ Envenenou Markson e Triket também, estão piores que você na cabana.
ㅡ Não forcei ninguém a tomar minha poção ㅡ retruquei, revirando os olhos, iniciando minha defesa.
A fada esfregava uma mão na outra, preparando-se para usar sua magia. Um brilho intenso na cor branca emanava de suas mãos enquanto ela as aproximava do balde. Permaneceu assim por um tempo, concentrada em sua prática.
A magia de purificação é fácil e simples de realizar, não requer muitos requisitos para aprender. Trata-se de um tipo de magia básica que quase todos aqui conseguem dominar, sendo o primeiro passo para adentrar o caminho da cura. No entanto, a maioria dos seres opta por não seguir esse caminho, pois se dedicar à cura implica dedicar-se aos outros. A falta de empatia no mundo das fadas é algo ridiculamente perceptível.
Eu a observo, com certa inveja.
ㅡ Também não contou que estava envenenada antes deles beberem ㅡ disse a fada, com os olhos faiscando de raiva enquanto continuava a purificar a água.
ㅡ Ninguém perguntou…
ㅡ E isso é motivo para omitir que estava envenenada?
ㅡ Eles me irritaram também! Falaram algo… que eu não gostei ㅡ respondi, tentando lembrar da cena. Sei que não foi isso que aconteceu; na verdade, eu só queria testar a poção e vê-los tomá-la sem hesitação, envenenando-se por conta própria. Foi algo realmente engraçado do meu ponto de vista. ㅡ Tanto faz…
ㅡ Tanto faz? ㅡ grunhiu, seu tom de voz foi aumentando gradualmente, o que poderia ser engraçado se minha cabeça não estivesse girando. ㅡ Você tem que se comportar, eles são seus amigos, companheiros, não pode sair por aí os envenenando.
ㅡ Eles sabem como sou, senhorita Flinner. Sabem das brincadeiras e fazem pior comigo. ㅡ Revirei os olhos, interrompendo a fala da fada. ㅡ Eu só não fico delatando por besteiras. Então, o problema é deles por caírem em algo tão óbvio como eu oferecer veneno. Não os mandei serem tão burros e ingênuos. Quantas vezes caíram nessa?
Reuni forças para me levantar, a fada que fazia o feitiço não conseguiu me impedir de ficar em pé. Se ela parasse do nada, quem sabe a água poderia ter o efeito contrário.
Quase cai de novo, mas consegui me sustentar. Antes de cambalear para longe, peguei as coisas ao meu redor: a garrafa com o veneno e um dos copos vazios.
Guardei a garrafa na bolsa e, então, mergulhei o copo na bacia com a água que ela estava purificando. Mesmo o feitiço não estando completo, arriscaria tomar mais veneno para evitar o sermão sem graça e inútil. Entretanto, só por garantia, peguei o carvão e coloquei o pó preto na boca, engolindo com a água meio purificada.
Apesar da dormência, consegui sentir a textura áspera das pedrinhas descendo pela garganta.
ㅡ Obrigada, senhorita Flinner. ㅡ Agradeci, com forças ainda para fazer a reverência de fim de espetáculo. ㅡ Depois a gente conversa mais.
ㅡ Társila! ㅡ ela gritou, com as mãos ainda no balde, mas eu nem sequer olhei para trás enquanto me distanciava.
Talvez eu devesse colocar mais veneno na água em que Triket e Markson estavam bebendo, ou até devesse fazer algo pior. Ninguém reclamaria por eles sumirem do circo. Aposto que não.
Não sei quando as provocações começaram, mas elas sempre existiram. Eu nunca deixei passar em branco, sempre revidei. Nunca preciso de um motivo para implicar com ninguém. E, quando são eles que começam, o troco tem que ser pior.
Certo dia, ao entrar na minha cabana, descobri que eles haviam vendido tudo e nem sequer me deram a minha parte do dinheiro. Em retaliação, fiz o mesmo com as coisas deles e acabei ganhando o dobro. Mesmo que as coisas de Triket fossem minúsculas.
Em outra ocasião, estávamos passando por um caminho repleto de esterco de cacunda e eles me empurraram da carroça, fazendo com que eu caísse bem em cima de um… Já sabem.
A textura nojenta e o fedor que impregnaram em minha roupa nunca saíram, e acabei perdendo um dos meus bores favoritos, um vermelho com uma sainha de tecido combinando. Coberto de pedras, inicialmente, prateadas, mas que mudavam de cor conforme eu me movimentava.
Então, não éramos amigos, nem sequer companheiros. Apenas tolerava a presença deles, porque não podia por fim neles, não sem permissão do senhor Musk. E duvido que ele desse autorização para matar Triket, embora eu odiasse admitir, ela era uma fada talentosa. Quanto ao filho dele, bem, no final das contas, era o filho dele.
No entanto, estava considerando os “acidentes fatais” que poderiam ocorrer misteriosamente.
ㅡ Társila! ㅡ Uma voz muito próxima a mim me chamou, tocando em meu pulso para me puxar.
ㅡ O que foi? ㅡ Enchi o pulmão para falar e a pessoa recuou um pouco. Era o senhor Musk.
ㅡ Só queria saber como você está? ㅡ perguntou em tom singelo, o que me fez sentir um pouco mal por ter sido rude.
ㅡ Bem… bem ruim ㅡ respondi. Vi os bancos e as mesinhas próximas à entrada do circo e, juntos, caminhamos até lá. Meu corpo relaxou assim que finalmente me sentei.
ㅡ Flinner mandou isso. ㅡ Ele entregou uma garrafa com água tão cristalina que parecia não ter nada dentro. ㅡ Ela ainda disse que ficou pronta assim que você saiu de lá, mas do jeito que estava, podia derrubar tudo no chão.
ㅡ Ela sabe que não desperdiço nada ㅡ retruquei, bebendo a água quase no mesmo momento em que a recebi. ㅡ Ela não veio me entregar por medo de quebrar a garrafa na minha cabeça.
ㅡ Talvez… Ela estava estressada, mas você também não ajudou ㅡ disse o elfo, arrumando a postura em um dos bancos e levantando uma folha enorme de jornal para ler. ㅡ Você deveria dançar hoje, mas acho melhor descansar.
ㅡ Não precisa.
ㅡ Amanhã você fará duas apresentações para compensar hoje ㅡ falou o senhor Musk Arlon, os olhos fixos no papel. ㅡ Já que, pelo que eu soube, a culpa é apenas sua por estar nesse estado.
ㅡ Eu não culpei ninguém ㅡ murmurei, tomando mais um gole de água. ㅡ O que é isso que você está lendo?
ㅡ Notícias…
ㅡ De dez dias atrás? ㅡ questionei, estreitando os olhos para ver a data do jornal.
ㅡ É a velocidade com que as notícias chegam para nós ㅡ respondeu o Sr. Musk, sem se importar, continuando a ler.
Poderia culpar Zilo por isso, mas esse sempre foi um problema do enorme continente da Lua. Uma massa grande de terra em formato de lua crescente. Então, para as notícias chegarem ao mesmo tempo, em todos os lugares, sem o esforço da magia de comunicação (o que é difícil, inclusive, de falar), só com a tecnologia humana e não usamos nada parecido aqui.
Não é necessário se alongar para explicar o motivo pelo qual a tecnologia humana não é muito bem aceita entre o povo mágico. O simples fato de ser humana já é motivo suficiente. Além disso, ela representa uma distância da natureza.
Certamente, a maioria das magias tem suas raízes na natureza, na terra e na conexão profunda que os seres mágicos têm com o mundo ao seu redor. Portanto, é natural abominarem qualquer tipo de distanciamento dessa fonte de poder. Ainda assim, apesar dessa aversão, há maneiras de obter informações mais rapidamente.
Aqui, no mundo mágico, os ventos sussurram segredos, as árvores compartilham fofocas e as raízes se entrelaçam, formando uma rede de comunicação constante. Aqueles que têm o dom especial da natureza são especialmente hábeis em extrair informações desse vasto ecossistema, as notícias imediatas são caras, quanto maior o intervalo de tempo mais barateadas ficam.
Não tenho nenhum dom relacionado à magia, tampouco algum dom peculiar. Contudo, se eu pudesse escolher, optaria pelo dom de consumir notícias. Imagine só, ter acesso imediato a todas as informações relevantes, ficar por dentro dos acontecimentos mais importantes e saber os segredos que circulam pelo mundo mágico. Seria uma habilidade valiosa e bastante útil, sem dúvida alguma.
É um dom raro.
ㅡ E o que elas dizem? ㅡ perguntei, abaixando a cabeça para descansar um pouco.
ㅡ O casamento da filha do Rei foi cancelado.
ㅡ Aquele homem tem filha? ㅡ Minha voz saiu embargada de sono, mas não deixei de fazer graça.
ㅡ Precisa se interessar mais sobre o mundo, Társila.
Começou em tom de sermão, mas eu não respondi. Estava cansada demais, provavelmente pelo efeito do veneno que ainda circulava em meu corpo.
Não é que eu tivesse desinteresse, o problema é que eu tinha interesse sobre tudo. E as notícias da capital sempre foram mais difíceis de achar do que qualquer outra. Além disso, sempre que se fala sobre a capital, é preciso desconfiar, não se sabe se é verdade ou uma grande mentira gerada por fofoca.
ㅡ Não temos muitas informações no jornal. ㅡ Ele folheava as páginas para falar. ㅡ Você sabe, todo aquele lance de proteção à coroa. Mas quando ele subiu ao poder, já tinha uma filha. Você era uma criança na época, não deve se lembrar dos boatos. A menina devia ter a sua idade na época… Ela deve ter a sua idade agora.
ㅡ Então, ela é nova para casar ㅡ concluí, tentando me manter atenta. Sem conseguir imaginar eu casando com alguém, mesmo que não exista isso de idade para casamento no mundo mágico, mesmo que eu já fosse maior de idade. ㅡ Tem dizendo por que o casamento foi cancelado, pelo menos?
ㅡ O noivo fugiu ㅡ disse o senhor Arlon, com um tom sério, quase solene.
Acabei soltando uma risada involuntária.
ㅡ Não ria da desgraça alheia! ㅡ reclamou o elfo, com uma expressão levemente reprovadora. ㅡ O noivo era um príncipe do antigo reinado.
ㅡ Certeza de que esse casamento era forçado. Estou comemorando por ele ㅡ falei sem conter a risada. ㅡ Nem sabia que havia um príncipe sobrando no continente.
Todos sabem que a coroa é enfeitiçada. Os descendentes das cinco grandes famílias, que fundaram os cinco reinos nos continentes do mundo mágico, são os únicos que têm essa prerrogativa para usá-la. Ainda assim, eles podem perder a qualquer momento, algo complicado com relação às tradições e gerações.
Por isso, Zilo não consegue colocar a coroa em sua cabeça, e nem conseguirá, a menos que queira ser amaldiçoado.
A não ser… se ele conseguir casar sua filha com o tal príncipe, ele colocaria a coroa na cabeça da filha, e dependendo da influência que possui sobre a garota, seria o mesmo que ter a coroa. Suponho que seja esse o plano… tão óbvio.
A coroa é cheia de regras e encantos mágicos, não são todos que podem usá-la. Eles foram previdentes ao usar uma magia perpétua e amaldiçoada para garantir isso, uma magia que liga as cinco coroas ao mesmo tempo.
Por isso, também, os continentes estão em guerra, porque, ao contrário de nós, eles ainda têm descendentes das cinco famílias no poder. A coroa é o que une as cortes. Se Zilo não conseguir colocá-la antes que algum outro reino consiga invadir, as cortes também vão cair.
A coroa também conecta o rei à terra e enriquece o continente com magia. Não é à toa que o continente da Lua está cada vez mais empobrecido. Sem um regente, nossos recursos estão se esgotando. Uma hora perderemos a guerra e, talvez, nos tornemos uma colônia de outro reino. Bom, pensando no bem da terra… Não parece uma ideia ruim.
Em poucos anos, se esse embate não for resolvido, toda a terra do continente da Lua estará morta.
ㅡ Se eu fosse ele, fugiria do continente, ou melhor, correria para o sul, o mais distante possível de Zilo.
ㅡ Impossível correr para fora, fronteiras fechadas ㅡ ele disse, eu pisquei devagar para conseguir raciocinar bem o que o elfo queria dizer, acho que dormiria ali mesmo por um tempinho. ㅡ Enquanto nas cortes do próprio continente da Lua, aposto que querem matá-lo também.
As cortes são formadas por irmãos e parentes de sangue do antigo rei, e eles só possuem o direito à coroa caso não existam mais parentes descendentes, ou seja, caso o principe morra.
ㅡ Então ele não tem chances. É questão de tempo até achá-lo.
ㅡ Você aposta demais, e é muito pessimista ㅡ repreendeu o elfo, como se eu fosse parar de falar desse jeito. ㅡ Pelo tempo da notícia, ele já foi capturado ou está aqui perto de nós. Embora arriscado, eu acho mais fácil ele descer o mapa do que sair do continente.
ㅡ Nossa ㅡ murmurei, fechando os olhos. Sonhando acordada. ㅡ Já imaginou se esbarrássemos com ele por aí? Não seria perfeito? Todo o sangue que ele poderia me oferecer para completar minhas poções!
ㅡ Se eu fosse ele, também correria para longe de você.
ㅡ Eu daria um jeito de escondê-lo dessa perseguição, tanto da morte quanto desse casamento.