Impuro Sangue Real - Capítulo 8
Para cada apresentação, montamos um acampamento ao lado. Por isso, sempre procuramos um espaço amplo e aberto nas cidades. Minha tenda não tem nada de especial, não precisa. É apenas o lugar onde guardo as roupas e tem um colchonete velho.
O restante das coisas ficam espalhadas organizadamente no chão. Mudei o veneno para uma garrafa mais elaborada. Ela é gordinha, com uma tampa de rolha. Agora, parece uma bebida importada, como as cervejas caras e caseiras que encontramos nas lojas chiques da cidade.
Observo-a de longe, pensando se vale a pena tomar apenas um gole nesse calor. Talvez mais tarde… E talvez mais tarde eu consiga entender qual dos ingredientes que usei fez a poção ficar gelada ao tocar na boca.
Agora, preciso separar as roupas para as apresentações. Uma dança com o vento. Não tenho magia e nem asas. Quando sou lançada às alturas nessa dança, sempre fico enjoada, sinto um frio na barriga só de pensar nisso. Mas mesmo assim, é divertido. Lá em cima, enquanto encaro todos, sinto que posso fazer tudo. O tema da apresentação é azul e eu só tenho uma roupa dessa cor. Já serve.
ㅡ Posso entrar? ㅡ perguntou Vult do lado de fora, e eu cedi ao pedido. Ele entrou em minha tenda. ㅡ Escolheu a roupa? Deixa eu conferir.
Vult era um feérico elegante, com muitos cachos no cabelo, perfeitamente arrumados. A sua pele, escura, não apresentava nenhuma imperfeição visível. Seu queixo, grande e frequentemente erguido demais, dava a impressão de que ele estava constantemente avaliando tudo com seu olhar sério e penetrante.
Sua postura era sempre ereta, com o rosto frequentemente fechado e ele, raramente, sorria. Além disso, era bastante detalhista. Por isso, a primeira impressão que ele transmitia era a de ter poucos amigos, ser arrogante e saber de tudo. No entanto, no fim das contas, ele não era exatamente assim… Talvez um pouco, mas não era como eu o definiria.
ㅡ Chegou na hora certa ㅡ comentei, exibindo a roupa.
Era uma enorme saia azulada que arrastava no chão, da cor do céu quando está completamente limpo. O pano era transparente, permitindo ver completamente a parte de baixo do mesmo tom. Um enorme corte no tecido subia até a coxa, puxando alguns babados, enquanto a parte de cima era um cropped simples, com uma alcinha charmosa e um decote em “V”.
ㅡ Não vai com isso ㅡ Vult disse seco.
ㅡ Não vou? ㅡ Recuo, franzindo o cenho. ㅡ Como não?
ㅡ Muito vulgar… Você é uma criança, vai mostrar tudo. ㅡ Sua resposta é direta, sem rodeios. Não consigo conter a risada ao ouvi-lo falar.
Não sei a minha idade exata, mas, segundo o Sr. Fixer, as primeiras roupas que ele fez para mim eram para crianças de dez a doze anos. Se já faz quase oito anos que estou aqui, eu tenho quase dezoito anos. No mínimo. Posso ter até mais. O problema é que Vult foi quem mais brincou comigo na minha infância, então ele não aceita que cresci.
Quando cheguei aqui, após um ano vagando sem rumo no mundo mágico, assisti a uma apresentação no circo e fiquei deslumbrada com cada espetáculo.
As danças provocativas, seduzindo a atenção de todos, as apresentações com instrumentos perigosos que tiravam o fôlego da plateia quando parecia que daria errado, as fadas cantando histórias e ilustrando como se um filme passasse diante de nossos olhos. As piadas de duplo sentido, que na época eu não entendia direito, mesmo assim ria contagiada pela alegria da plateia.
Tudo me encantou; tudo parecia novo e, estranhamente, mais bonito do que o normal. E todos no circo sempre pareciam tão contentes e despreocupados… Como os verdadeiros contos de fadas. Havia brilho por toda parte naquele show, além de luzes que apareciam e sumiam do nada. E no dia seguinte, quando novamente não tinha para onde ir, assisti novamente à apresentação, mas desta vez foi diferente…
Entendi o que estavam fazendo, como encantavam nossos olhos e hipnotizavam nossas mentes para tentar pegar algo de valor. E isso não me fez desacreditar ou ficar menos encantada com as apresentações. Pelo contrário, algo iluminou em minha mente e uma semente de uma ideia surgiu.
No dia seguinte, voltei ao circo para assistir outra apresentação. Dessa vez, quando chegou o momento, aproveitei para participar também. Vult me surpreendeu no momento em que tentei pegar as joias que ele mesmo já tinha roubado. O feérico me apresentou ao senhor Musk Arlon, que não se aguentou de tanto rir quando descobriu.
Como eu estava agindo por conta própria? Era para eu estar hipnotizada como qualquer um ali; foi o que me disseram. E me gabo disso até hoje, por ser difícil me enganar. Então fui convidada a participar do circo. Talvez tenham compreendido minha situação naquele exato momento e, quem sabe, ficado com pena. Ou, talvez, tenham notado algum talento em mim, seja roubando ou apresentando. Mas tudo começou naquele instante. Ou, era para ter começado.
Sempre achei difícil confiar em alguém, mais uma característica que não sei se herdei ou se fui ensinada. Passei mais de uma semana desconfiada de todos ali, e Vult sempre insistia em se aproximar, às vezes reclamando, outras sugerindo algo, ensinando alguma dança ou apresentação. Apontando os meus erros até finalmente acertá-los e, então, comemorando comigo.
Vult foi o primeiro a quem confiei, o primeiro a me ajudar de verdade. De certa forma, foi o primeiro a me estender a mão, ainda que tenha sido para me entregar ao Senhor Musk. Se eu fosse defini-lo, diria que ele é alguém extremamente protetor.
Conheço os passos da coreografia. Ele precisa me lançar para bem alto, para as estrelas aparecerem no topo do circo e, então, eu dançar com elas na corda suspensa. Mesmo assim, ele prefere me lançar baixo e fazer as estrelas aparecerem no chão.
Sem graça.
Ele acha perigoso demais, mas todos os dançarinos conseguem fazer igual. Todos aqui se arriscam dessa forma, e eu não sou diferente. Há um certo prazer em fazer isso, em conquistar os aplausos, como no fim de uma maratona em que você consegue completar o percurso.
Gosto do que faço e, mesmo quando caio, os aplausos chegam e não há com o que se preocupar. Faz tempo que não caio.
Lembro de duas quedas marcantes. A primeira vez que dei um passo em falso e me espatifei. Fiquei mais de uma semana sentindo dor sempre que me mexia, mas foi a primeira queda, eu nem sequer estava apresentando para alguém. Depois disso, me esforcei para aprender a cair. Ainda doía quando chegava no chão, é claro. O objetivo da dança não é cair. Então, doía bastante, mas, enquanto estamos no ar, temos tempo, mesmo que curto, para pensar no que fazer e assim aprendi a cair.
De tanto cair, acabamos otimizando esse tempo e escolhendo uma posição mais adequada para não machucar tanto. Às vezes, até pensamos em algo mais elaborado para escapar por completo. É nesse aspecto mais elaborado que surgem os melhores espetáculos, aqueles que arrancam o último fôlego da plateia, assim como arrancam o meu.
Lembro-me da última vez que caí do topo da corda, a qual é no mínimo a quinze metros do chão. Vult e o senhor Musk participavam dessa apresentação. No último momento, os dois me pegaram como se fosse apenas mais um passo da dança e rapidamente me ergueram novamente lá para cima.
Foi um momento de pura adrenalina e confiança. Como se tudo fosse ensaiado para acontecer daquele jeito, e a graça é que não foi.
ㅡ Por que não usa essa laranja? ㅡ Ele pegou um dos ternos femininos de tecido grosso e pesado que estavam entre as roupas do cabideiro. Era a roupa mais composta que tinha, impossível de usar no calor infernal da região central do continente da Lua. Era quase como uma roupa de frio.
ㅡ Laranja? ㅡ retruquei, segurando a roupa. A camisa de dentro, de cetim brilhante, era a única parte leve e mesmo assim, era quente. ㅡ E desde quando laranja combina com azul?
ㅡ Acho que combina.
ㅡ Não combina.
ㅡ Combina. ㅡ Ele insistiu.
Estávamos prestes a começar uma discussão por algo que certamente não fazia sentido. Eu já havia escolhido minha roupa.
ㅡ Fora que não dá para se mexer direito com isso ㅡ falei, devolvendo o terno ao cabideiro.
As roupas devem ser soltas para seguir os movimentos, sem parecer algo mecânico; essa é a essência da dança com as estrelas. Elas precisam ser sensuais para cativar o público, encantar os olhos e transportar a mente para outro lugar. No entanto, ele prefere que eu me vista como uma freira e perca toda a dinâmica da apresentação.
ㅡ Estou de terno também, vamos combinar.
ㅡ Então use você uma saia e um cropped para você combinar comigo ㅡ retruquei em tom jocoso. ㅡ Eu não vou usar nada que tenha ainda mais roupa do que a que estou vestindo agora. Está quente e, sinceramente, não consigo entender como você está suportando tanta roupa nesse calor.
ㅡ Porque fica bom! ㅡ ele exclamou com simplicidade e eu revirei os olhos. Pronta para concordar apenas para acabar com a conversa, planejava vestir a peça azul de qualquer forma na hora da apresentação. Então, veria seu ótimo rosto demonstrando o mais puro ódio e frustração, o que só me motivaria a fazer pior futuramente. ㅡ Vai ficar bom em você também.
E, antes que um sorriso transparecesse em meu rosto, vislumbrando a ideia que tive, nossa conversa foi interrompida por gritos e murmurinhos do lado de fora da tenda. Fomos imediatamente guiados para a fonte dessa bagunça.
Três guardas estavam próximos ao senhor Musk Arlon, todos vestidos com roupas de pano, mas ostentando coletes marcados com o símbolo da coroa. Eram todos feéricos, com partes de animais visíveis em seus corpos. O da direita tinha pelos cobrindo toda a superfície visível de sua pele e o rosto mais redondo que já vi na vida. O da esquerda exibia orelhas pontudas e asas de morcego, enquanto o do meio possuía chifres enormes, semelhantes aos de uma rena.
Eles estavam discutindo algo, mas pouco importava o conteúdo da conversa. Os membros do circo estavam agindo como animais caçadores, observando a conversa com atenção, aguardando apenas um sinal para avançarem.
Quando saí da tenda, como se estivesse participando de um efeito dominó, agarrei a adaga presa à minha cintura e, com os outros membros do circo, aguardei apenas o sinal do senhor Musk para avançar. Mesmo que isso significasse correr depois. Já que esses sentinelas nunca andavam sozinhos, e do lado de fora, mais carruagens com incontáveis guardas estavam esperando.